“Deus os entregou a paixões vergonhosas: as suas mulheres mudaram as relações naturais em relações contra a natureza. Do mesmo modo também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderam em desejos uns para com os outros, cometendo homens com homens a torpeza, e recebendo em seus corpos a paga devida ao seu desvario. Como se não se preocupassem em adquirir o conhecimento de Deus, Deus entregou-os aos sentimentos depravados, e daí o seu procedimento indigno. São repletos de toda a espécie de malícia, perversidade, cobiça, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade. São difamadores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, soberbos, altivos, inventores de maldades, rebeldes contra os pais. São insensatos, desleais, sem coração, sem misericórdia.”
“É com esta mensagem que nos despedimos. Que Deus esteja convosco.”
Fervilhando de humanos sedentos de fé, o encontro dominical encerrou-se. Ao menos para os fiéis.
O homem de meia-idade atravessou a rua em direção a uma casa; decente, nada mais. O cenário, mais do que previsível: igreja; ruas; veículos; casas; árvores, umas poucas; humanos; mendigos: estes, como se não fizessem parte do grupo anterior.
O homem adentra no recinto familiar. Cena corriqueira: a filha, terminando de comer; a mulher, quem saberá?
— Vá se deitar, filha. Já vou dar-lhe a bênção.
E ela foi. Seus passos, grosseiros e leves, como se já suportassem o peso da responsabilidade; seus olhos, inexpressivos, tão mortos quanto os de um idoso; os cabelos, lindos: não fossem os piolhos.
Do outro lado da rua, o padre retirava de um armário de madeira uma caixa de sapatos. Dentro dela, a inevitável hipocrisia.
Hipocrisia essa que já se tornou um chavão moderno, destes que estampam capas de revistas ditas informativas. Seu verdadeiro significado, quase esquecido; ou seria convenientemente oculto?
Tanto faz como tanto fez.
Deitada sobre um colchão mofado, no escuro, a garotinha esperava, ansiosa, pelo pai. Nem tão ansiosa; o que viria a seguir ela já conhecia.
Embrenhadas nos densos matagais da memória, cenas da pré-concebida felicidade eram reconhecidas.
“Mãe, o que é aquilo?”
“É um arco-íris, filha.”
“E por que ele tem essas cores?”
“Porque são essas cores que dão vida ao mundo.”
Ao ranger da porta, a garota encolheu-se. E, ainda que timidamente, indagou:
— Vai doer?
— Menos, espero eu.
Ao som de roncos ensurdecedores, em um quarto de motel, uma moça admira-se no espelho; lamenta-se, seria o correto.
A imagem idealizada por ela era o perfeito estereótipo da perfeição: uma criança loura, sorridente; os dentes, ainda por nascer; a roupinha rosa, estampada com flores multicoloridas; e os olhos, ah, os olhos, azuis, cintilavam a tradução de sua felicidade imensurável. A imagem refletida era o oposto: uma jovem, suja, com os poucos dentes que lhe sobram há mais de semana sem ver uma escova dental; os cabelos, outrora loiros, estão cá desbotados e empastados; o corpo, mutilado: não no sentido literal, mas, mutilado.
O choro já secara; nem lágrimas eram mais produzidas. Que sentimento poderiam elas traduzir? A humanidade já se perdera há muito. Dignidade, palavra desconhecida: tanto moral quanto gramaticalmente.
E os olhos: roxos, inchados; azuis, qual fosse o caso. A dita porta da alma já fechada e trancada; e a chave, perdida.
Não dormiu; não conseguiria. Namorou a noite. À noite toda.
Já em um jardim, a ambição humana alcançara, literalmente, outros patamares. Honra-se a expressão “nuvens de algodão”. Quem dera fosse eu a flutuar nestas nuvens de amor; ou de algodão.
Jaqueiras; céus de goiabada. “Jurema no céu com pedregulhos.”
E o idealizador ouvindo sua música preferida; ó, doce música. Aquela que nos traz as mais diversas sensações.
O dito idealizador, membro célebre de um hospício à beira de uma favela, contemplava a mesma. O olhar vago; vivendo o irreal, naquele paraíso utópico, sob uma salva de tiros mais do que melódicos.
A dita loucura do sonhador, desconhecida. Fosse doença mesmo ou vontade própria, sorte tinha o louco; o que poucos conseguiam sequer imaginar, ele via todo dia. Vivia naquele paraíso.
Sobre a cama de um hospital, um jovem debruça-se sobre uma figura: feminina, imagina-se.
— Mãe?
— Diga.
— Me perdoa?
Um sorriso brotou de seus lábios. O sorriso do mais ácido sentimento.
— Vá se foder.
E com uma pontada no que já foi meu coração que vos digo, amargurado: já fui o padre; o pai; o desalmado; o louco; e o jovem. Fases diferentes de minha (antiga) vida.
E depois de tantos personagens, em que me tornei?
Malditos são aqueles que vivem no mundo real; e fortes são aqueles que assimilam o mundo real e ainda querem viver.
Depois de ter vivido tudo o que vivi, despeço-me da vida. Nada mais me prende a ela. Que Deus abençoe o editor da minha revista favorita; que minha filha apague-me de suas memórias e consiga ser o que não fui; que a moça a quem não tive coragem de abusar recupere o antigo brilho de seus lindos olhos azuis; que a idosa jamais abandone sua forte personalidade; e que o louco, a quem tudo foi negado, consiga, enfim, morrer em paz.