Capítulo Doze
Apollo
Carlin era frequentemente chamada de “A Cidade das Mulheres”. Quase todos os viajantes – e não eram poucos – que passavam por ali citavam a expressão pelo menos uma vez antes de partir. O curioso é que quase ninguém sabia exatamente o porquê daquilo. Quando indagados, os aventureiros desconversavam ou diziam que era porque quase todos os trabalhadores locais eram do sexo feminino. Na realidade, Carlin recebia aquele duvidoso título devido à antiga guerra que separou-a de vez de Thais. Quase todos os homens morreram naquele terrível episódio, e sobrou para as mulheres reconstruírem a cidade, que prosperaria tanto quanto a grande capital. A tradição de empregar apenas mulheres foi mantida em honra à memória das pioneiras da cidade, mas mesmo assim havia alguns homens trabalhando por ali.
Grande centro econômico e um refúgio muito popular, Carlin vivia apinhada de gente todos os horários do dia. Era praticamente impossível passar pelas ruas de pedra da cidade e não encontrar um bolinho de amigos falando sobre dragões ou negociando penas de galinha. A cidade que nunca se cala, quem diria, seria a primeira a fechar a boca perante o que acontecera, um ano antes. Alguns amigos que estavam conversando no meio da rua avistaram um forasteiro estranho, totalmente encapuzado, como se tivesse vindo do deserto. Ele nada disse aos amigos, sequer se identificou. Em ocasiões normais eles teriam relevado aquilo. Mas decidiram reportar às autoridades no momento em que viram, marcado na capa vermelha que o indivíduo usava, um pentagrama amarelado.
A Brigada Feminina de Carlin, responsável por manter a ordem na cidade, entrou em ação imediatamente. Revistaram todos os cantos da cidade buscando o misterioso homem. Ele nunca fora encontrado. Rumores disseram que ele teria passado pelo castelo, o que fez todas as guardas da cidade correrem até lá e erguerem uma vigília que duraria toda a noite. Quando amanheceu, as honrosas cavaleiras carlinenses viram sua cidade revirada, corpos inocentes atirados ao chão e fogo espalhando-se por todos os lados. Mas sua rainha estava salva. E ela, sábia como era, daria um jeito de resolver o que os supostos baderneiros fizeram. Foi só no dia seguinte que chegou à cidade a notícia de que o rei Tibianus III fora achado morto. E nos demais dias da semana, mais e mais notícias similares percorreram as ruas da Cidade das Mulheres. A brigada não precisou pensar muito para perceber o ocorrido. O maldito forasteiro fora enviado até lá para eliminar a rainha Eloise, mas falhara miseravelmente. A partir do dia em que aquela tenebrosa descoberta havia sido feita, Carlin nunca mais seria a mesma.
Um ano e alguns meses depois, a cidade jazia deserta. Raramente se viam pessoas andando, mais raramente ainda se via pessoas conversando e em ocasiões de absurda raridade era possível ver sorrisos nas faces das mulheres. Mas quem podia culpá-las? Carlin sofrera mais do que qualquer outra cidade quando o Pentágono de Yöer florescera, estendendo seus braços nodosos por cada canto daquela terra desolada. Estava vivo na memória de todos os habitantes da cidade o momento em que um elemento baixo, extremamente branco e de expressão assombrosa invadira o castelo, mandara prender a rainha e sentara-se no trono, proclamando Carlin como a capital do Condado do Norte. E o homem que andava apressadamente pela parte baixa da cidade tinha nojo de se lembrar do modo sarcástico com que ele falava.
Catura.
Apollo era alto, magro, com ombros largos e um corpo invejável. Possuía cabelos louros desgrenhados no alto da cabeça, que lhe davam uma expressão divertida. Andava com um porte impactante, arrancando o ar das pessoas ao seu redor. Em troca, Apollo lhes dava energia. Todos que o conheciam tinham de admitir que ele transmitia uma segurança impressionante. Além disso, Apollo era conhecido por sua alegria inabalável e esperança inesgotável. Não que ele gostasse de ser lembrado de tal forma, apenas orgulhava-se de seu trabalho, e era através dele que queria figurar os livros de história. Ele era o general das tropas da Unie que estavam em Carlin naquele momento. Em outras palavras, era a maior autoridade local depois da própria rainha.
Ele não era um homem de poucas palavras. Falava o tempo todo, sobre tudo que pensava, e um de seus passatempos favoritos era ficar andando em círculos no pátio da sua casa recitando em voz alta suas incertezas e seus planos para o futuro. Geralmente quem passava pela rua nesses momentos o encarava com uma espécie de caridade pela sua aparente insanidade mental, mas Apollo simplesmente se divertia com isso.
Ou eu rio, ou eu caio no choro, pensava ele todos os dias. A situação atual do planeta não permitia tanto otimismo, mas ele sabia que ficaria louco se não risse um pouco.
Enquanto caminhava decidido pelas ruas da cidade, demorando-se ora ou outra para apreciar a já conhecida arquitetura local, Apollo notava ainda a depressão transmitida pelas ruas vazias. Era como arrancar o caroço de uma maçã. Carlin perdera toda a sua energia no momento em que Catura ascendera ao trono. Na época, Apollo era um soldado de Thais. Ele detestava lembrar de como fora frustrante descobrir que o rei havia sumido e que fora encontrado morto um dia depois. Ele, como soldado e como cidadão thaiense, estava destruído. Prometera jamais permitir que os responsáveis tomassem uma cidade. E com esse ideal foi um dos primeiros a se alistar ao movimento revolucionário que surgia na capital, a Unie. Em pouco tempo o movimento cresceu, mudara-se para Venore e se estabelecera como a maior esperança contra o Pentágono de Yöer. Atualmente, quase todas as raças do mundo eram aliadas da revolução.
Apollo cumprira sua promessa quando Ahamed, que logo tornara-se seu melhor amigo, promovera-o ao cargo que atualmente ocupava. Ele e seus homens invadiram Carlin e combateram bravamente os mortos-vivos que haviam dominado a cidade. Expulsaram Catura num momento de tensão e foram louvados como os salvadores. Mas cerca de dois meses depois, Catura voltaria com mais aliados e iniciaria uma longa guerra apenas finalizada recentemente, com uma apertada vitória da Unie. Mas o Lorde-Que-Tudo-Sabe ainda não havia desistido. Estava escondido em algum lugar, provavelmente Folda, esperando a hora certa de atacar novamente. E o comunicado que recebera momentos atrás fazia Apollo acreditar veementemente que chegara a hora de uma nova batalha.
Um dos seus homens, Perseu, procurara-o na taverna subterrânea da cidade, aonde ele desfrutava de um bom vinho e de um momento de paz. Dissera-lhe que haviam descoberto alguma coisa sobre o prisioneiro que haviam feito recentemente. Perseu correra apressado de volta ao local onde ele estava sendo mantido, e Apollo ia vagarosamente atrás. Pensava de seria algo sério.
Será que finalmente descobriram seu nome ou a quem trabalha? A curiosidade invadia-o só de lembrar como o elemento era excêntrico. Fora achado quase morto perto do portão norte cerca de uma semana antes, com diversos ferimentos pelo corpo e implorando por comida. Fora recolhido, cuidado e alimentado, mas após estourar os miolos de um dos soldados, fora preso e estava sendo interrogado sem sucesso desde então. Apollo detestava admitir, mas a figura lhe transmitia um interesse mórbido.
Devo estar ficando louco.
Chegou ao grande prédio da Brigada. Era uma edificação simples, de tijolos, localizada diretamente ao lado do portão leste da cidade. Com um teto baixo de madeira apontando imponente para o alto, o prédio podia ser visto alguns quilômetros longe da muralhas, o que facilitava muito para os guardas recém-chegados.
E também para ataques inesperados. Apollo não gostava da idéia de ter seus prisioneiros ali, afinal o prédio podia muito bem ser reconhecido e estourado à distância. Mas para não ser acusado de preconceito, resolvera permitir que a brigada mantivesse-os ali. Logo que chegou, dirigiu-se a um homem alto e de aparência forte, que usava uma armadura cinzenta e que tilintava alto quando ele se movia. O homem sorriu quando o reconheceu.
- Ficou observando a beleza da cidade de novo, general? – Indagara Perseu, com uma vozinha pouco apropriada para seu porte ameaçador. Apollo concordou com um leve aceno de cabeça, passando os olhos pelo braço esquerdo do guarda até chegar a sua mão, que segurava um livro de capa negra de aparência duvidosa.
- Gosto de pensar que está tudo inteiro apesar da guerra. Fizemos um trabalho bom em preservar as edificações e em levar os piores combates para fora das muralhas. – Dissera com sua voz sonora e segura, que parecia fazer o prédio gigantesco atrás dele diminuir de tamanho e tremer levemente. – Por que me chamou? O vinho estava bom.
Perseu soltou uma risadinha involuntária. Logo se recompôs, escorando a longa lança de dois metros que trazia na outra mão à parede,
- Bom, interrogamos mais um pouco
aquilo – Apollo não gostava que se referissem ao prisioneiro com aquele termo, mas concordava que era de fato, uma entidade muito esquisita. – e... Bem, como era de se esperar, não nos disse nada que não soubéssemos. Mas não deu sequer uma pista a respeito do nome, idade, afiliação, cidade natal. Mas hoje... bem, aquilo falou de um modo que parecia que conhecia a Unie. Espantou-se quando lhe dissemos que Ahamed era nosso líder, mas espantou-se como se já o conhecesse. E falou alguma coisa sobre um corvo... Não fez sentido para mim.
Mas Apollo tinha a péssima impressão de saber exatamente aonde tudo aquilo ia dar.
Corvo... Será que está se referindo ao... Engoliu em seco e fitou Perseu com seus olhos castanhos faiscantes.
- Quero ir até a cela. Eu mesmo farei o interrogatório. Se o que me disse é verdade... Meu interesse cresceu muito. Mas não quero causar movimentação... A cela está aberta?
Perseu assentiu, relutante.
- O último guarda que esteve lá deve estar saindo agorinha. Se correr talvez chegue antes que ele tranque a porta.
Apollo concordou e virou-se, murmurando um adeus quase inaudível. Avançou para dentro do prédio, cuja porta estava aberta. Quando um de seus pés tocou o mármore que revestia o piso interior, sentiu que Perseu o havia segurado. Virou-se e viu-o estendendo o livro negro que segurava.
- Senhor... Encontramos isso na mochila que apareceu junto com aquilo. – Seu tom de voz era baixo e ele parecia demasiadamente assustado com a idéia de revelar aquilo para alguém. Apollo pegou o livrinho e apenas leu o título, que fora escrito em vermelho. Quando o fez, sentiu um longo e tenebroso arrepio dançar pela sua espinha. Murmurou um xingamento e correu para dentro do prédio sem falar mais nada. Virou-se quando alcançou uma mesinha de madeira e correu para as celas que estavam no térreo. Passou por duas delas, normais, com grades enferrujadas, até chegar ao lugar que procurava. Uma salinha de ferro espesso com poucos metros quadrados. Não possuía grades, apenas uma porta azulada e do mesmo material que as paredes. Um guarda ia girando a chave na maçaneta quando Apollo chegou. Ele correu e impediu-o, o dispensando em seguida. Então, respirou fundo e destrancou a porta, entrando rapidamente e com uma expressão incomummente séria na face.
- Quem, em nome de Banor, você pensa que é? – Disse isso indicando a capa do livro para o vulto que estava deitado em uma cama improvisada do outro lado da sala. Categoricamente ele ficou em pé, estalando os dedos. A porta atrás de Apollo bateu. Ele respirou fundo mais uma vez, tentando manter a calma que raramente perdia. Não havia luz na sala, mas mesmo assim ele podia ver claramente os sapatos de casca de coco e as vestes alaranjadas se mexerem quando a mulher de cabelos desgrenhados baixou os olhos para o livro. Soltou uma praga baixinho e então virou-se para Apollo. Tinha olhos cinzentos inquisitivos que pareciam o despir profundamente. Ela sorriu lentamente e estendeu a palma de uma das mãos na direção da porta.
- Desista. A sala é isolada magicamente,
bruxa. Não pode explodir a porta. – Ele disse, certo de que a colocara em uma situação complicada. Mas a bruxa se limitou a gargalhar.
- E quem disse que é a porta o meu alvo? – Ela se adiantou, agarrou Apollo e o puxou para junto de si, apontando a palma da mão para a cabeça dele. Pegou a sua espada presa ao cinto e jogou-a longe. Apollo sentiu uma onda de terror inexplicável tomá-lo quando a mão dela começou a esquentar. – Vamos dar uma volta. Você e eu.