Capítulo Um
Raven
Wyda está morta. A verdade cruel e completamente indigesta rodopiava pela mente de Angela enquanto ela encarava o corpo inerte da companheira. Mesmo naquele estado, sua face já velha transmitia uma paz inabalável, uma plenitude a ser invejada até na hora da morte. O único consolo naquela situação, se é que poderia haver um, era que ela morrera em paz.
Angela não devia nada à Wyda. Não fora ela que a acolhera, que a ensinara, que a educara com os princípios éticos ou a protegera. Wyda simplesmente fora a única pessoa em anos que Angela encontrara para conversar e debater idéias sobre magia, assunto em que ambas eram peritas. Viveram por muito tempo isoladas no pântano, longe das demais bruxas cruéis e seguidoras de magia negra que viviam ao norte. Liam e debatiam todos os dias, compartilhavam ervas e poções, mas sem nunca ultrapassar a linha tortuosa e pessoal chamada de passado. De fato, Angela conseguia ver perfeitamente que nunca conhecera o âmago de Wyda.
Mas isso não importava mais. Toda uma nova era construída no pântano fora perdida para sempre. A casa ia se consumindo no fogo mais estranho que ela já vira – fruto de magia negra, com certeza – e sua melhor amiga estava morta. Não tinha mais onde morar ou a quem recorrer: O Pentágono caçara e matara todos os magos amigos de Angela, provavelmente por acreditar que feiticeiros pudessem representar problemas.
E eles não sabem como.
Ela nunca tivera problemas com Yöer. Não gostava nem desgostava da situação. Contanto que pudesse continuar a fazer suas poções e suas pesquisas, não importava o que acontecesse ao mundo exterior. Seu mundo particular era sua vida mágica. Mas a partir daquele instante, a situação virara de ponta cabeça.
Destruíram minha casa. Mataram Wyda. Arruinaram minha vida. Mas por quê? Talvez achassem que ela fosse uma ameaça. Talvez tivessem se enganado. Talvez tenha sido um ato inconseqüente. Mas já não importava mais o porquê. Importava que estava feito, e precisava ser retribuído. E na mesma moeda.
Angela suspirou. Levou anos para aprender a controlar as emoções e não era agora que deixaria o mais sujo de todos os sentimentos – o ódio – tomar conta de seu corpo. Fechou os olhos e buscou um ponto de fuga em sua mente. Encontrou-o no verdadeiro único consolo que possuía: seja lá quem tivesse feito aquilo, não encontrara suas pesquisas e poções mais ocultas. Quando sentiu o corpo relaxar e os ânimos melhorarem, abriu os olhos. Procurou evitar pensar no passado. Tinha que garantir o futuro. Não sabia exatamente o que fazer, não tinha idéia de como estava a situação do lado de fora do pântano. Mas sabia perfeitamente que o Pentágono estava chegando, e que se isso de fato ocorresse, ela não conseguiria se segurar.
Atravessou o pequeno pátio de grama morta localizado no meio de poças e mais poças de um pântano venenoso e fétido, saindo do meio de algumas plantas retorcidas para chegar aos pés dos restos fumegantes da casa. Ela fora construída sobre vigas resistentes, ficando suspensa sobre todo o lugar. As vigas haviam sido quebradas, aparentemente com extrema facilidade, derrubando toda a edificação. Nesse instante Wyda devia ter saído para fugir, mas fora pega e morta. Depois, o assassino usou magia para atear fogo nos restos e foi embora. Se havia encontrado o que procurava ou não, não importava.
Chegou logo aos pés do que uma vez fora sua casa e moveu algumas toras e pilhas de tijolos. Logo encontrou o que buscava: um simples bueiro. Ficava bem perto de algumas plantas – já carbonizadas – e por isso era quase impossível encontra-lo se você ainda não o tivesse visto antes. Angela tirou a tampa e tateou às cegas, buscando um pequeno item comprido de prata com uma safira incrustada na ponta achatada. Com a chave em mãos, voltou ao ponto de partida e cavou com as mãos, sujando suas unhas pintadas de preto com a terra do seu lar. Logo encontrou uma grandiosa plataforma de ferro com uma única fechadura mínima.
Enfiou a chave lá e rapidamente destrancou a entrada. Ergueu a tampa com facilidade – era muito mais leve do que aparentava – e viu-se diante da longa escada de mármore que descia em espiral rumo ao desconhecido. Adentrou rapidamente na escuridão e escorou o tampão em uma pedra que chutou para perto.
-
Utevo Lux. – Murmurou. Suas mãos encheram-se de um brilho amarelado familiar. Era mínimo, mas o suficiente para atravessar o breu puro que a esperava lá embaixo. Segurando-se à parede, foi descendo degrau por degrau, com as mãos guiando seu caminho por meio de sua luz mágica. Passados minutos que se confundiram com eternidades, Angela se viu no meio de uma enorme sala repleta por estantes e mesas de carvalho, todas cobertas com livros em idiomas perdidos e pergaminhos escritos por ela própria. Frascos e mais frascos habitavam diversos dispositivos de ferro, alguns ainda ferviam com chamas azuis abaixo deles. Ervas e outros ingredientes bizarros lotavam potes e potes de cerâmica jogados displicentemente pelos cantos da sala subterrânea. Alguns lampiões vermelhos e velhos jaziam apagados em alguns pontos estratégicos das mesas, junto com algumas caixas com óleo para acendê-los. No centro da sala circular jazia um enorme caldeirão de cobre puro, pendendo sobre uma fogueira apagada e sem nada dentro.
Angela ficou ali revivendo seu passado de um jeito melancólico e perturbadoramente nostálgico. Ao passar os dedos nodosos por cada um dos livros e papéis vinha-lhe à cabeça a lembrança perfeita de quando e como a escrevera. Ela não precisava abri-los ou ler os seus títulos para saber do que tratavam. Quando pousava os olhos cinzentos sobre cada frasco sujo e vedado de poções nas estantes ela recordava-se com precisão o nome, o que o fluido fazia e como fora concebido. Amava esse que era seu hobby.
Chegou a uma enorme mesa de pedra onde estavam várias e várias pesquisas e substância estranhas. Angela sabia perfeitamente que aquilo era uma pesquisa que ela estava fazendo sobre ervas encontradas no sul do pântano. Fazia à pedido de Faluae, um certo elfo que vivia muito longe dali, ao norte, na cidade élfica de Ab’Dendriel. Faluae mantinha um interesse oculto e insaciável por magia, e desde que ambos se conheceram, frequentemente trocavam ingredientes e informações.
Angela vasculhou tudo que havia ali, relembrando como fora descobrir cada informação com precisão exemplar para estabelecer sua análise. Seus olhos brilharam com lágrimas, mas nenhuma delas chegou a cair. Era inexplicável que o assassino não tivesse encontrado nada daquilo.
Será que o que ele buscava estava aqui? Angela caminhou mais um pouco até chegar à borda da mesa e lá encontrou sua varinha, companheira de vocação mágica e de longas aventuras. Estava suja, mas conservava ainda de leve o brilho original: era longa e de uma cor branco-prateada energética, rodeada em diversos pontos por argolas rosas, roxas e amarelas, que nem tocavam no cabo frio. Na ponta da varinha havia uma forma retorcida que entrelaçava mais e mais argolas em torno de uma pequena esfera branca energisada, que brilhava com intensidade ofuscante. Era uma das únicas fontes de luz ali embaixo.
Então, vindo distante, do outro lado do laboratório, um baque surdo ecoou e tirou a bruxa de seu devaneio.
Desconfiada, temendo pelo pior, Angela pegou a varinha e arrumou o xale laranjado e desfiado que usava por cima dos ombros. Deu alguns passos arrastados, erguendo poeira que impregnou seus sapatos duros feitos com cascas de coco e seu enorme vestido surrado da mesma cor que o xale. Levou as mãos à uma estante de ferro que impedia sua visão da escada em caracol e de lá pegou um chapéu típico de bruxos, mas também de um laranja berrante de certo modo engraçado, com um topázio circular do tamanho de uma maçã preso nele por uma fita vermelha. Jogou os cabelos ralos para trás, deixando a face branca e ossuda livre para enxergar. Pousou o chapéu sobre a cabeça e segurou mais firme ainda na varinha, não movendo-se em momento algum.
Espero ser uma paranóia.
Nada mais ocorreu. Saindo de trás da estante, Angela cancelou o feitiço de luz, tornando-se oculta nas sombras. Caminhou mais um pouco até atravessar a sala e chegar junto à escada. O alçapão de ferro ainda estava erguido, apoiado na pedra. Nada estava fora do lugar. Quando estava pronta para convencer sua mente de que tudo estava bem, Angela a viu.
Era grande e aparentemente muito leve, de uma cor negra como as trevas. A pena, mesmo em sua simplicidade, emanava uma crueldade paralisante, que deixou os olhos da bruxa vidrados.
Não há corvos nessa região. Fez uma pausa e analisou melhor o artefato.
Muito menos desse tamanho!
- Bu. – Disse uma voz grossa e fria em um tom de deboche. Com uma cascata de tremores percorrendo o corpo, a mulher de laranja se virou para dar de cara com um elemento altíssimo, que usava uma armadura roxa com detalhes em um ouro apagado cobrindo os braços e o peito. Uma calça preta e folgada cobria as pernas até terminar no lugar aonde
deveriam existir dois pés. Mas o que havia ali eram patas cinzentas e com garras negras e afiadas, lembrando as de um corvo gigante. Saindo das costas do ser misterioso estavam duas asas negras e gigantescas, agora largadas para baixo, soltando penas. Na cabeça ele usava uma máscara que protegia o que parecia ser um bico, sendo esta da mesma cor e material da armadura. A única entrada na máscara eram para seus olhos triangulares e vermelhos. Fios de um cabelo estático e negro saíam de trás da proteção facial. Angela não sabia
o que era aquilo, mas definitivamente não era humano. Seus olhos desceram um pouco mais até avistar uma cauda parecendo um espanador coberta de penas saindo dele. Mas o que verdadeiramente a perturbou foram as duas espadas curtas e pretas que ele trazia, uma em cada mão cinza e grande.
- O que... Quem é você? – Indagou ela, tentando manter o controle sobre o pavor que sentia. Não era de seu costume temer qualquer ser vivente, mas
aquilo transpirava pavor. Ergueu a varinha para proteger o peito, tentando prestar atenção nos movimentos da criatura. De alguma forma cruel ela sentia que ele era o responsável pelo que acontecera à sua casa.
O monstro soltou uma gargalhada penosa que fez algumas folhinhas de grama do lado de fora morrerem.
- Aquele que vai levá-la para longe daqui. – A calma com que ele falou a deixou transtornada. Não parecia estar brincando.
- Vai me matar? – Ela avançou de ré para fora da sala, até sentir que suas costas batiam com a placa de ferro que escondia a entrada. O monstro devia estar escondido só esperando ela aparecer e revelar aquele local para emboscá-la.
Estou cercada.
A criatura gargalhou de novo, dessa vez parando abruptamente e falando com frieza:
- Não. Morta você me é inútil.
- Que quer de mim? –
Preciso sair daqui!
- Não lhe interessa. Agora coopere – O caçador ergueu uma de suas lâminas e a colocou rente ao corpo de Angela – ou eu a farei cooperar.
Angela rangeu os dentes e percebeu que o monstro se satisfazia com sua situação. Respirou fundo e logo encontrou sua saída.
- Nunca, assassino maldito! – Ela se abaixou com um movimento rápido e fez menção de se atirar da escada, mas o monstro era muito mais ágil: quando percebeu suas intenções, baixou sua arma e cravou-a no vestido de Angela, atravessando as resistentes pedras daquele degrau e prendendo-a ali. Em um reflexo impensado, Angela se virou e apontou a mão para a face do ser, gritando: -
Exori Flam!
Uma bola de fogo do tamanho de uma bola de futebol e de cor alaranjada criou-se do nada na palma de sua mão, seguindo com velocidade crescente rumo ao alvo. O movimento pegou o homem-corvo de surpresa, mas não o bastante. Ela simplesmente saltou e pairou no ar alguns instantes, enquanto a esfera colidia com um estrondo na parede do outro lado. Ele pousou no mesmo lugar e gargalhou.
- É só? Ouvi falar que era uma grande maga, mas estou decepcionado.
Angela praguejou e olhou para a espada que a prendia.
Detesto fazer essas coisas... Mas é preciso! Olhou com calma para o inimigo e estendeu a mão. Ela pode perceber uma leve flexão nos “joelhos” dele, como se houvesse uma preparação para um salto. Um sorrisinho se formou em sua face. –
Exori Flam!
O disparo quente preparou-se, e como era previsto, o mercenário saltou. Mas no último instante, Angela ergueu a mão, largando o ataque na direção do homem em pleno ar. Ele grasnou quando a magia o atingiu no peito, queimando algumas penas e derrubando-o ao chão. Um cheiro de carbonização forte invadiu as narinas de Angela enquanto o ser rolava as escadas. Sem pensar duas vezes ela deu um puxão que largou o vestido com um rasgo da lamina e se lançou para fora, rolando na grama. Começou a correr na direção da casa – que a essa altura já parara de pegar fogo. Mas não teve tempo: em questão de segundos a criatura emergiu, voando, do buraco que era a entrada do laboratório. Pousou com um baque bem na frente de Angela.
- Colabore, bruxa do pântano. Não será tão ruim assim.
- O que o Pentágono quer comigo?
Ela teve a impressão que ele sorriu. Mas não podia ter certeza por causa da máscara bizarra.
- Saberá quando a hora chegar.
Angela procurou uma saída. Encontrou-a quando seus olhos pousaram na companheira, Wyda, caída sobre aquela pedra, morta, mas com uma serenidade torturadora estampada na face. Uma força inenarrável invadiu e percorreu cada centímetro do seu corpo quando as memórias de cada instante que passaram juntas vieram à tona. Apontou as mãos trêmulas para o caçador, e com uma fúria que não conseguiu controlar, murmurou dolorosamente as palavras do encanto que ela descobrira com sua antiga amiga.
- Exana Ani!
Uma força rápida e invisível saltou de suas mãos, guiando-se impetuosamente na direção do elemento. Ele arregalou os olhos, mas não conseguiu saltar. A força atingiu-o bem na testa, e com força, derrubando-o no chão. Ele berrou e tentou se erguer, mas não podia mover as extremidades. Pouco a pouco foi sentindo o corpo endurecer e o brilho nos olhos sumir.
Angela suspirou e jogou a varinha na grama, caindo de joelhos, ofegante. Olhou uma última vez para o corpo paralisado do assassino de sua amiga e começou a pensar no que faria para se livrar dele antes que saísse da magia. E enquanto fazia isso, nem pensou naquela que era a única solução para o impasse geral no qual ela se metera: ela precisava urgentemente abandonar Venore.