Cap. V
O barulho das lâminas batendo em aço, de um machado esmagando uma cabeça, de um cavalo correndo em solo duro, tudo parecia mais alto. Perdido em meio ao campo de batalha, vi-me despido e indefeso: sem espada, sem escudo, sem armadura.
Os movimentos rápidos que faziam minha cabeça duravam uma eternidade para terminarem e o ambiente esfumaçado e sanguinolento estava cada vez mais onduloso, saliente. As flechas voavam numa velocidade estonteante, resvalando em meus ouvidos e lançando um som de mudez inigualável.
Mudez essa que se alastrava para todos os ruídos. As lâminas batendo em aço só produziam faíscas, o machado esmagando uma cabeça só produzia sangue e o cavalo correndo em solo duro só produzia medo; até os gritos de desespero ou fúria se tornaram mudos.
Até que, em meio a fumaça de horror, uma figura negra de andar firme apareceu caminhando até mim, quebrando o silêncio daquele espetáculo mudo com sua respiração cortada pelo metal de seu elmo. Os passos lentos daquele cavaleiro enevoado cadenciavam meu desespero, que inutilmente tentava me fazer sair do lugar, mas a cada passo que dava, mais forte a angústia se tornava e mais perto da imagem ficava.
Quando a respiração já era ensurdecedora, virei para contemplar o espectro que deixara de ser abstrato e tornara-se algo real. Toda sua armadura era negra e estava totalmente colada em sua carne, como se tudo fosse parte de sua pele; seu elmo cobria toda a cabeça, deixando varias frestas finas para seus olhos negros. Seu porte e sua presença davam a impressão que dois gigantes estavam prontos para me matar e o cheiro de morte que exalava de seus movimentos esfriava todo meu organismo.
Num movimento brusco, a figura demoníaca pegou seu machado e atacou-me de baixo para cima. Mas, quando a arma estava prestes a penetrar meu corpo, tudo se desfez. Como um castelo que desmorona aos tiros de uma catapulta, o ambiente girou, ondulou e balançou até meu organismo não agüentar e lançar tudo que tinha de restos pela boca.
- Ah, desgraçado!! Vai limpar a droga do meu chão!!
Com a vista totalmente ofuscada, recobrei minha consciência e admirei a cara feia e revoltada de Dleunar, que continuava gritando:
- Seu bastardo! Não agüenta a bebedeira e desmaia...
O ar quente que saiu e queimou meu esôfago vibrou as cordas vocais secas, resultando numa voz rouca e fraca como resposta:
- Cala a boca!
- Calar a boca? Você foi último a levantar e ainda suja o meu chão!
Sem responder, levantei lentamente devido às dores por todo meu corpo, mas ao visar o estado do bar, percebi que a minha situação não era tão ruim. Minha pequena poça de vômito avermelhado parecia água em meio à desordem do lugar: as cadeiras estavam todas caídas, duas mesas estavam quebradas, o cheiro de luxúria e suor era forte e a quantidade de bebida que havia no chão era o suficiente para outra noite de festa. Todos os outros que estavam no bar já haviam sumido e, provavelmente, já pensavam em seguir com suas vidas normais. Só restara Dleunar e eu, o taverneiro e o primo desocupado do rei.
- É, dessa vez eu fui o último a acordar... – conclui para meu amigo.
- E ainda por cima dormiu sozinho, sem mulher alguma.
- Mulher nenhuma é melhor que aquela prostituta dos infernos que te abocanhou.
- Pelo menos alguém me abocanhou!! – brincou Dleunar com um sorriso largo no rosto.
Provocações e brincadeiras mantiveram a conversa durante horas e, independente do assunto, nenhum dos dois queria sair dali, daquele bar fedido, daquele antro de pecados. Aquela era a nossa casa, o nosso lar.
Quando a conversa estava diminuindo e o eco das risadas só rebatia em nossas próprias cabeças, os olhares de Dleunar começaram a fugir dos meus, seus pés começaram a bater o chão e seus dedos não paravam de batucar suas coxas.
- O que foi? Aconteceu alguma coisa enquanto eu dormia? – perguntei, mas não houve respostas. - ... Dleunar, aconteceu alguma coisa? – continuei um pouco mais sério.
- Não. Ou melhor, sim... Sim, aconteceu sim... Na verdade... É. Na verdade, estão dizendo que o que aconteceu é até um pouco culpa sua.
- Minha?! – as palavras dele me espantaram. – Como eu tive culpa de algo que nem sei o que é?
- Calma, calma! Eu falei ‘um pouco’, não ‘totalmente’. – falou Dleunar de forma tranqüila. – Sabe aquele seu amigo? O que te ajudou no campo de batalha?
- Sei. O F... Fa.... Enfim, aquele guerreiro. Sei sim, simpático ele. – nesse momento eu soube como não conhecer seu nome fizera falta.
- Ele tentou assassinar teu primo e foi expulso hoje de madrugada da cidade enquanto a gente dormia. – falou rapidamente, com um pouco de desapontamento em seu semblante.
Por um momento, pensei em duvidar de suas palavras, mas nem as melhores mentiras camuflam a verdade de um olhar... E os olhos dele não são uma exceção.
- E o rei? Como ele está?
- Nada grave... Ainda bem. Mas sobre te culparem, estão falando que você tramou com ele o assassinato do seu primo, já que você é o herdeiro do trono por enquanto.
- É, eu bolo planos enquanto estou desmaiado de bêbado... – desdenhei sem dar muito valor às acusações, o que foi errado, porque sofrer tais acusações só mostrava que Eleno não confiava em mim. De qualquer forma, não falei mais, minha cabeça já estava submersa em meus pensamentos...
As palavras de ódio indagadas em direção ao rei, a expressão fechada e misteriosa, o jeito agressivo de guerrear e, por fim, o sonho. A suposta visão que tive enquanto dormia ainda era clara na minha cabeça: os olhos negros e a áurea pesada e hostil daquele guerreiro eram realmente distintos para mim.
Tudo se encaixava ou era só uma paranóia de minha cabeça, mas o rei realmente havia sido atacado... E o homem do meu sonho foi o responsável.
- Não vai acontecer nada... Esse cara vai sumir. – falei para Dleunar e para mim mesmo, tentando espantar os pensamentos inúteis.
- É bom mesmo... Principalmente para o rei e para você.
* * *
Dezenas de metros distantes dos muros de Lonsam, uma figura caminhava pela planície de grama alta enquanto era assolado pelos fortes raios do magnífico sol que brilhava sobre sua cabeça. Seu corpo inteiro suava, sua armadura refletia toda luz diretamente em seus olhos e sua garganta gritava por água. Ele sabia que um rio estava próximo, sabia que fora tolice passar horas tentando entrar na cidade e sabia que desmaiaria se não derramasse água em sua boca em pouco tempo. Mas tanto ele sabia que a realidade não era mais relativa, a única coisa que ele se concentrava era em seus pensamentos.
Estes, inundados em um redemoinho de sentimentos, deixou o guerreiro de machado alvo sem saber o que sentir, sem saber o que concluir. Raiva, indignação, vingança, amor... Se for tudo isso ou apenas um ou nenhum desses, nem ele sabia.
Quando, finalmente, o astro alcançou o seu apogeu no céu claro, os passos mecanizados do guerreiro cessaram. Suas pernas fracas cambalearam e o vento forte desmanchou seu corpo. Os olhos se fecharam e as pupilas deixaram de captar luz. Um desmaio.
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