Continuação...

A noite caiu, úmida e fria, rajadas de ventos balançavam as árvores na entrada da cidade. Argos pensou na penitência que o padre Hobbe exigira.

Será que o sangue era autêntico? Seria ele mesmo de um deus tão poderoso como era Crunor? Argos achava que ele era verdadeiro. Seu tio acreditara nisso, e seu tio, embora pudesse ter sido um louco, nada tinha de tolo. E o frasco parecera antigo, muitíssimo antigo. Argos costumava rezar para Crunor, mas já não o fazia mais com tanta freqüência, e aquilo o fez sentir-se culpado, e assim caiu de joelhos ao lado da carroça velha e pediu ao deus que o perdoasse por seus pecados, que o perdoasse pelo assassinato do escudeiro e por fazer-se passar por um frade. Eu não pretendo ser um mau sujeito, disse ele, mas é muito fácil esquecer o céu e os santos. E se o senhor quiser, rezou ele, eu encontrarei o vosso sangue, mas o senhor tem que me dizer o que fazer com ele. Será que ele deveria devolvê-lo a Filars Porl que, até onde Argos sabia, já não existia? Ou será que deveria devolvê-lo a quem quer que o tivesse possuído antes que seu avô a roubasse? E quem era o seu avô? E por que seu tio se escondera da família? E por que a família tinha ido atrás dele para pegar o frasco com o líquido rubro de volta? Argos não sabia e, nos últimos três anos, não se importara, mas de repente, no pátio da taberna, viu-se consumido pela curiosidade. Ele tinha uma família em algum lugar. Seu avô fora soldado e ladrão, mas quem era ele? Seu pai seguira os passos de seu avô e também fora soldado para proteger Thais, mas morrera de uma doença grave pelo que sua falecida mãe contara. Argos acrescentou uma oração a Crunor, para que lhe permitisse descobri-los.

- Rezando para que chova, padre? – sugeriu um dos rapazes de estrebaria. – Eu acho que vamos ter chuva. Nós precisamos dela.

Argos poderia ter comido na taberna, mas ficou subitamente nervoso com o salão cheio em que os soldados do duque e suas mulheres cantavam, contavam vantagens e brigavam. Tampouco podia enfrentar as suspeitas ardilosas do proprietário. O anão estava curioso por saber por que Argos não ia para o mosteiro, e ainda mais curioso por saber por que um frade iria viajar com uma mulher bonita.

- Ela é minha prima – disse Argos ao homem, que fingira acreditar na mentira, mas o arqueiro não queria enfrentar mais perguntas e, por isso, ficou no pátio e fez uma refeição pobre com o pão seco, cebolas rançosas e queijo duro, que eram os únicos alimentos que pegara na carroça que viajavam.

Começara a chover lá fora e ele se retirou para dentro da carroça e ficou ouvindo os pingos baterem no piso acima. Pensou em Jeanette e seu filhinho sendo alimentados com iguarias açucaradas servidas em pratos de prata antes de dormirem entre lençóis de linho limpos em algum quarto com tapeçarias penduradas nas paredes, e então começou a sentir pena de si mesmo. Ele era um fugitivo, Jeanette era sua única aliada e ela era muito nobre e poderosa para ele.

Sinos anunciaram o fechamento do portão da cidade dos anões. Vigias caminhavam pelos becos, à procura de ladrões. Sentinelas tremiam de frio em cima dos portões e os estandartes do duque Charles pendiam do topo da cidadela. Os anões eram mais receptivos do que contavam as histórias, Argos estava entre seus inimigos, protegido por nada mais do que pela inteligência e por uma batina de dominicano. E estava sozinho.



Argos Fall, o padre.

Sem mais;
Asha Thrazi!