Capítulo 3 - Gelo em uma ilha tropical
Aquela era a festa mais chata na qual já estivera, pensou Sara Benson, ao perscrutar com seus intensos olhos azuis a cena que se desenrolava diante de si no salão. As pessoas eram chatas. Os assuntos eram chatos. Até a comida era chata e sem gosto. Mas de qualquer forma, ela ponderou, era muito melhor do que mais uma noite se revirando na cama, suando frio, e temendo o momento de fechar os olhos. O medo de seus sonhos acompanhava Sara onde quer que estivesse.
Por um momento, ela se perguntou se deveria pegar seu cetro discretamente e começar a atirar feitiços nas pessoas, para animar as coisas. Então franziu o cenho, irritada, ao se lembrar de que não estava com ele. Não porque o esquecera. Havia sido impedida de trazê-lo. Era como ter saído de casa sem um braço.
– Você vai ficar aí emburrada a noite toda? – Perguntou de repente Jenna Elsher, se aproximando.
Jenna era sua única amiga naquele lugar e o único motivo de Sara estar ali: era o aniversário dela. Jenna também parecia ser a única pessoa ali que apreciava a sua presença.
– Caso não tenha percebido, eu não sou muito popular por essas bandas – respondeu Sara, cruzando os braços por cima de suas madeixas loiras escorridas.
– Bobagem – Jenna retrucou, mas sem muita confiança. Tinha cabelos tão compridos quanto os de Sara, mas cacheados e da cor de grãos de cacau. Suas feições adolescentes - tinha dezesseis anos, a mesma idade de Sara - começavam a demonstrar claros sinais de sua origem thaiana: as maçãs do rosto e o queixo pareciam se tornar mais salientes e quadrados a cada dia. Todos os thaianos continentais, ou seus descendentes, pareciam compartilhar essa característica. Aquilo tornava até mesmo as mulheres thaianas muito masculinas, na opinião de Sara. Seus dois irmãos mais velhos, Wil e Jan, saíram ao pai, e tinham aquele mesmo rosto quadrado. Ela agradecia secretamente por ter puxado tanto à sua mãe, que havia sido carliniana, e portanto ter traços mais delicados.
– Você não sabe nem mentir – falou Sara, com desprezo, mas com um leve sorriso brincando nos lábios finos e pálidos.
Jenna suspirou: – Eu sei. Me desculpe por isso. Mas eu precisava que você estivesse aqui para me salvar. Fui muito egoísta?
– Foi – Sara respondeu. – Mas tudo bem, eu teria feito a mesma coisa – e então, sorriu, de repente se animando com um pensamento. – Ei, que tal darmos uma escapada lá para fora? Está um calor dos infernos, de qualquer forma.
– Aquele seu guarda-costas não vai causar problemas? – Jenna inquiriu, com uma expressão de dúvida.
– Jacques? Oh, ele não está mais aqui. Com muito custo, consegui convencê-lo a voltar para casa. Afinal, ele entendeu que não corro risco de morrer - a não ser de tédio. A nobreza pode ser enfadonha.
Jenna riu.
– Até mesmo eu?
Sara fitou-a com seus grandes e penetrantes olhos claros. Os olhos de sua mãe.
– Não, você é tolerável.
E então, começou a rir. Jenna juntou-se a ela um segundo depois.
– Venha, vamos dar o fora – chamou a aniversariante.
A propriedade da família Elsher era imensa e rica; um casarão de madeira de ipê no alto da colina norte da Baía da Liberdade, que era como se chamava a principal cidade na ilha de Vandura, localizada nos mares ao sul de Thais. A casa havia sido construída à moda da capital, com a mesma arquitetura sóbria e sem muitos detalhes que era apreciada no continente. O local onde a festa de Jenna estava acontecendo, portanto, era um grande salão austero de celebrações e banquetes no centro da mansão, onde dezenas de nobres colonizadores de Thais apinhavam-se, conversavam trivialidades, e lançavam olhares de desprezo na direção de Sara.
Portanto, a jovem não precisou que Jenna a chamasse novamente para ficar de pé sobre os delicados sapatos de seda. As duas tentaram sair do salão de fininho, mas sentiram vários olhares desaprovadores atravessando-as enquanto escapuliam. Sara tentou o máximo possível não olhar para trás e fazer cara feia para os pomposos ao sair, mas falhou. Acabou torcendo o pescoço enquanto estava sob o batente, fazendo a melhor cara-de-quem-vê-um-rato-morto que conseguiu. Acabou se arrependendo, pois percebeu no último instante que uma das pessoas que a encaravam asperamente era o pai de Jenna, o lorde Elsher.
Jenna era da nobreza thaiana. A família Elsher, apesar de não ser uma das maiores, mais tradicionais, ricas ou poderosas famílias de Thais, ainda gozava do status e do prestígio de ter nascido com o sangue certo no grande reino do sul. As primeiras famílias thaianas que colonizaram aquele pedaço de terra tropical e quente como o inferno nos mares do sul, a ilha de Vandura, fundaram a cidade da Baía da Liberdade e mantiveram o mesmo sistema do continente. Portanto, a Baía seguia os moldes da maioria das grandes cidades do reino, inclusive da capital, Thais: a nobreza morava - ou no mínimo, possuía propriedades - em uma cidadela fortificada com grandes muros de pedra na zona norte, onde ficavam suas mansões residenciais principais, enquanto toda a parte plebeia da cidade se esparramava aos arredores e na direção dos portos ao sul.
Sara e sua família não eram da nobreza, e um observador pouco perspicaz poderia pensar que era esse o motivo pelo qual os hóspedes da festa de Jenna a olhavam com desprezo. No entanto, essa era uma pequena parte da história.
Os nobres thaianos podiam suportar um plebeu facilmente. O que não podiam suportar era um plebeu que fosse tão ou mais rico do que eles.
Sara Benson usava roupas finas e caras como as de Jenna. Também morava em uma casa que rivalizava as maiores mansões da Baía; uma propriedade mais afastada, à leste da cidade, cujas paredes de tijolos brancos eram como um canvas sobre os quais floresciam plantas trepadeiras de todas as cores e formas, criando frondosos jardins horizontais e verticais, à moda carliniana.
Seu pai, Rotter Benson, enriquecera explorando o comércio nas rotas marítimas que haviam sido estabelecidas por Thais nos mares do sul. O continente de Darama, a sudeste, já era conhecido e habitado há muito tempo, mas mais recentemente - no último século - o reino havia se expandido e conquistado as ilhas diretamente ao sul do continente, que até então se pensava serem inconquistáveis. As Ilhas Proibidas, como eram chamadas as selvagens Goroma, Talahu, Ramoa, Malada e Kharos, continuavam inóspitas, mas a descoberta da ilha de Vandura e suas riquezas naturais na forma de cana, cacau e metais preciosos fora o pote de ouro no fim do arco-íris para Thais.
O reino mandou seus nobres e muitos servos para colonizar Vandura, e eles dominaram o pequeno assentamento humano que havia ali, antes conhecido como Summerhaven, e o rebatizaram de Baía da Liberdade. No entanto, os novos mercados e oportunidades eram grandes demais para serem controlados somente pela nobreza. Muitos plebeus industriosos enriqueceram com as colônias do sul; dentre eles, Rotter Benson. Hoje, o pai de Sara possuía uma pequena frota de navios mercantes que iam e vinham por aqueles mares tempestuosos, transportando mercadorias e cultura entre Tibia, Darama e as Ilhas Quebradas.
– Onde é que está aquele seu cetro? – Perguntou Jenna, enquanto as duas se esgueiravam em busca da porta de saída da mansão, que felizmente se encontrava deserta fora do salão.
– Jacques não deixou que eu o trouxesse – respondeu Sara, franzindo o cenho. – Mesmo que meu pai nunca esteja aqui para controlar tudo que faço, ele deu um jeito de continuar fazendo isso indiretamente, através de Jacques.
Jenna riu:
– Ah, não seja tão malvada! O Jacques parece que se importa mesmo com você.
Sara suspirou.
– Se importa, sim, e eu tento me lembrar disso sempre. Eu só gostaria que os dois às vezes me deixassem viver mais a minha vida.
As duas chegaram, enfim, à área externa da casa de Jenna. O frondoso jardim que a rodeava era muito parecido com os que, Sara ouvia dizer, eram cultivados na capital: simétrico, organizado e bem aparado. Porém, as palmeiras, ipês, mangueiras e hibiscos, todos abundantes, eram próprios da ilha de Vandura e seu clima quente.
O calor, no entanto, era amenizado por uma brisa estival agradável que acariciava a pele e as plantas, fazendo a folhagem balançar mansamente. Foi um alívio para Sara pisar fora da casa, não só por ter escapado do ambiente hostil, mas também por se livrar do calor. Seu rosto e busto estavam úmidos de suor.
– Ei, quer dar uma volta lá fora? – Perguntou ela.
Jenna respondeu, com um ar de dúvida: – Eu duvido que os criados nos deixem sair da propriedade.
– Você não pode simplesmente mandar eles olharem para o outro lado e fingir que não viram nada? – Continuou Sara, levantando uma sobrancelha.
– Papai não me dá nenhuma autoridade – respondeu Jenna, bufando. – E todos eles têm medo do grande lorde Elsher, claro.
– Tem uma coisa que podemos fazer – disse Sara, com um brilho nos olhos, subitamente animada. – Mas não prometo nada. Ainda estou praticando.
– Você vai querer usar alguma magia doida de druida em mim, não é?
Sara sorriu.
– Não vai doer nada. Prometo. E eu vou usar em mim primeiro, de qualquer forma.
– Essa eu quero ver – disse Jenna.
Sara fechou os olhos, tentando recobrar suas aulas de magia. Ela não era uma druida de verdade - era preciso passar pelas academias oficiais do reino para pertencer verdadeiramente a uma das quatro guildas. De qualquer forma, seu pai nunca permitiria que ela fizesse aquilo. Mas estava tendo aulas - sem exatamente ter pedido permissão a ele - com aquela que era, na sua opinião, a melhor druidesa de Vandura. Ou talvez, do mundo.
Ainda era um pouco difícil para Sara canalizar sua mana. Demorara um tempo até que conseguisse de fato perceber que a mana era uma coisa que ela tinha dentro de si, e que não era apenas algo que existia nas histórias. Era sempre algo engraçado, mergulhar naquelas reservas de energia mágica. Ainda mais complicado era de fato conseguir utilizar partes daquela força, em conjunto com as palavras certas, para produzir o efeito desejado. Também seria mais fácil se estivesse com seu cajado, mas ele estava longe, em sua casa, trancado em um baú. De qualquer forma, concentrou-se, e falou:
–
Utana vid.
Imediatamente, olhou para suas mãos pálidas e delicadas, a fim de ver se o efeito funcionara. Imediatamente, sua pele começou a ficar translúcida, até desaparecer completamente. Ela soltou uma exclamação de vitória incorpórea, pois havia ficado invisível. Jenna soltou um ligeiro suspiro de surpresa.
– Eu não sabia que você tinha aprendido até a fazer isso – exclamou ela.
– Isso foi tranquilo – falou Sara, levantando as mãos em um gesto de dispensa que não foi visto por ninguém. Na verdade, estava aliviada. Nunca havia feito aquilo fora dos treinos controlados que tinha com sua mestra, nos bosques a nordeste da cidade. – Mas agora, vem a parte mais complicada. Posso tocar em você?
Jenna assentiu, e em seguida falou, quando sentiu as mãos invisíveis de Sara sobre os seus ombros: – Isso é muito esquisito. Mas confesso que parece legal.
Sara se concentrou, e buscou suas reservas de mana novamente. Suspirou, tentando limpar a mente. Uma coisa era lançar magias de efeito instantâneo sobre si. Outra bem diferente, era tentar canalizar aquela força na direção de outro objeto ou pessoa.
–
Utana vid sio – Sara sussurrou.
Imediatamente, Jenna começou a desaparecer, e Sara produziu outra exclamação de sucesso. Ela havia se atirado a fundo em seus estudos druídicos nas últimas semanas, e era bom vê-los pagar dividendos na prática.
– Talvez eu acabe aceitando aquela sua oferta de ir visitar o bosque e essa famosa Hemme – disse Jenna, impressionada, referindo-se à mestra de Sara pelo nome.
– Ia ser ótimo! Você podia ser minha parceira de treinos – respondeu Sara, entusiasmada. – Mas agora vamos, vamos sair de fininho.
As duas então foram se esgueirando para fora da propriedade de Jenna, tomando o cuidado de não fazer muito barulho. O único guarda postado no portão principal, ladeado por grandes muros brancos, não deu muita atenção quando as duas fantasmas adolescentes passaram por ele.
– Enfim, liberdade – Sara disse baixinho, quando se encontravam na estrada em frente à casa de Jenna. – Para onde, agora?
– Não podemos ir muito longe, também – disse Jenna. – Eu ainda quero ser capaz de ouvir a comoção na casa caso alguém dê falta de mim. Assim, posso voltar de fininho e fingir que só fui tomar um ar. Você consegue cancelar a invisibilidade, se necessário?
Na verdade, as pequenas reservas de mana de Sara já estavam sob apuros com o esforço de manter dois efeitos de invisibilidade em duas pessoas ao mesmo tempo, e provavelmente teria de desfazê-los em breve. Assim que se afastaram um pouco da casa e da visão do guarda pouco diligente, deixou que as duas voltassem ao normal, respirando aliviada.
– Estou com fome – disse ela.
– Você não acabou de comer horrores ali no salão? – Questionou Jenna, com os olhos arregalados.
– Usar a mana cansa tanto quanto correr uma ladeira acima!
– Que tal sentarmos naquele banco, então? – Disse Jenna, apontando para um banco branco sob uma mangueira em uma pequena praça próxima à casa.
Era uma praça central na área da cidadela, onde a maioria da nobreza tinha propriedades. A casa de Sara não ficava dentro daquele lugar, mas também ficava numa parte alta e afastada das áreas comuns do sul da Baía da Liberdade. De qualquer forma, ela já havia visitado a cidadela inúmeras vezes, desde que começara a cultivar sua amizade com Jenna - o que ocorrera dois anos atrás, quando ambos os seus irmãos mais velhos haviam partido da pequena Vandura para seguir seus caminhos diferentes, e ela se vira só, pela primeira vez.
– E agora? – Indagou Jenna, quando ambas se jogaram confortavelmente sobre o branco na praça, que estava deserta.
Sara olhava pensativamente para a noite que agora se estabelecia definitivamente no firmamento. Os últimos raios dos sóis iam sumindo no horizonte ocidental, levando com eles os vestígios minguantes de vermelho, amarelo e cinza, e deixando as estrelas reinarem absolutas sobre o pano de fundo negro que era o céu noturno. As estrelas e a noite sempre faziam Sara lembrar-se da mãe. Fora numa noite como aquela que ela partira para sempre, e seus sonhos começaram.
– Agora, você me diz que irá finalmente começar a ir comigo visitar Tia Hemme, depois dessa incrível demonstração de meus poderes – Sara respondeu, não querendo falar sobre seus pensamentos íntimos naquele momento. Novas gotas de suor brotavam em sua testa, pois o vento havia parado momentaneamente, e sua ausência permitia o retorno do calor.
Jenna, no entanto, demorou alguns instantes para se manifestar. Olhava atentamente para a amiga, como se tivesse adivinhado o que se passava em sua mente. Sara às vezes desgostava de ser tão transparente.
– Você sente a falta deles, né? – Perguntou Jenna.
– Deles quem? – Sara devolveu.
Jenna revirou os olhos.
– Dos seus irmãos, é claro.
Sara riu. A amiga chegara perto.
– Sinto, demais. Mas na verdade, agora estava pensando na minha mãe.
Jena levantou uma sobrancelha.
– Você nunca falou muito sobre ela.
– É um hábito familiar – Sara disse, fitando o céu. – Nossa mãe é uma lembrança muito preciosa para ser compartilhada assim, à toa.
– Então eu sou qualquer uma?
– Não, boba – Sara riu. – Eu só não estou preparada para falar sobre isso agora.
Jenna assentiu.
– Voltou a fazer um calor dos infernos. Às vezes eu gostaria de ser carliniana e de ter ido colonizar Hrodmir com a minha família. Dizem que lá para o norte do mundo eles têm gelo todos os dias.
– Eu gosto do clima daqui – disse Sara, sorrindo. – Me dá um motivo para exibir outro dos meus poderes druídicos – e então, sem pestanejar, a jovem exclamou: – Exori frigo.
De repente, o banco onde estavam sentadas começou a desenvolver uma fina camada de gelo sobre sua superfície, como se, milagrosamente, houvesse geado em Vandura.
Jenna pulou do banco com um sobressalto e uma exclamação.
– Você precisa avisar antes de fazer essas coisas!
– Mas aí eu não teria te dado um belo susto.
Jenna censurou-a com o olhar antes de responder:
– Eu vou começar a treinar com essa Hemme de quem você tanto fala, e aí é você quem vai ver.
– É disso que estou falando! – Sara exclamou, jogando os braços para o ar, e posteriormente abraçando a amiga em um gesto efusivo. – Você vai ver. Nós iremos dominar Vandura.
Apesar da animação, um pensamento mais sombrio dominava o fundo de sua mente. Não era a melancolia devido à falta da mãe ou dos irmãos, ou a frustração com as ausências do pai. O motivo pelo qual Sara queria tanto que a amiga a acompanhasse até o bosque a nordeste de Vandura tinha uma pitada de egoísmo: Sara não gostava de ficar sozinha, nunca. Quando estava só, não podia se distrair de seus pensamentos.
Uma gota de suor frio escorreu por sua testa, mas aquela não era devido ao calor vandurano. Era porque sabia que logo teria de ir para casa, e quando deitasse em sua confortável cama, seus sonhos sombrios a encontrariam novamente.