Opa. Enquanto eu tento recuperar o ânimo pra terminar as coisas que deixei pela metade aqui na seção, resolvi escrever uns contos pra recuperar a forma e desenferrujar minha escrita (ta foda bicho, meses sem abrir o word hahaha).
A ideia inicial é que cada conto dure 1 capítulo só e que cada um deles seja independente. Caso algum precise de mais capítulos pra ser desenvolvido eu avisarei, mas essa não é a intenção. Ah, e eles serão fortemente influenciados pela obra do brilhante Inio Asano (Solanin e Subarashii Sekai, mais especificamente).
Espero que se interessem em ler e, caso lerem, espero que gostem. Boa leitura!
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HISTORIE
ÍNDICE:
Prólogo: neste post;
Primeiro cenário: Marionetes neste post;
Segundo cenário: O salto;
Prólogo
Historie: do alemão, termo que é usado genericamente como significado de "história", mas em sua origem se refere a "narrativa daquilo que aconteceu". É um termo poético, subjetivo, plural. Historie é o cotidiano, os lugares, as pessoas. Também é os acontecimentos, tragédias, conquistas, batalhas. Historie é a vida, é você, sou eu. Acima de tudo, é a forma como as histórias são contadas. O objetivo dessa coletânea é tentar se aproximar ao máximo desse conceito: retratar a vida, as pessoas e tudo o que acontece em volta delas. Se há algo a ser narrado, historie estará presente.
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Primeiro cenário: Marionetes
O homem secou o suor da testa com as costas da mão. A chuva fina do lado de fora da casa trazia consigo o cheiro aconchegante de terra molhada; porém, a situação ali era tudo, menos aconchegante. Ele olhou de relance para o garoto desmaiado a alguns metros dele – ele deveria ter no máximo cinco anos. “Preferia não ter que nocautear crianças”, pensou, balançando a cabeça negativamente e desviando o olhar.
— Arrependido, senhor?
O homem voltou sua atenção para a mulher agachada ao seu lado. A senhora, já num caminho bem avançado para a terceira idade, vestia roupas simples e bem limpas, e tinha uma expressão neutra e apática no rosto. Ela era uma espécie de governanta da casa, responsável desde a faxina até a criação do garoto. Com a ausência dos patrões naquele dia, apenas ela e a criança estavam na casa além do homem.
— Eu não faria isso se o garoto ficasse calado. Não tive escolha.
— Você não tem que se justificar com uma simples refém como eu, senhor.
O homem bufou, desviando o olhar dela. Odiava ter que manter pessoas em cárcere, mas ele precisava fazer aquilo. “Será que ele já entrou?”, pensou, observando o céu escuro da noite pela janela entreaberta ao lado deles.
Ele agora se lembrava do momento em que seu comparsa havia contado a ele sobre o plano. Vivendo numa pequena vila portuária ao nordeste de Carlin por algumas semanas, os homens conseguiram coletar informações suficientes sobre os moradores para montarem estratégias e possíveis alvos. O comparsa então veio com um plano ousado: aproveitando que a guarda da cidade era formada majoritariamente por jovens sem muita experiência em crimes, um deles invadiria uma casa e manteria os residentes como reféns, assim chamando toda a atenção dos guardas e da população, enquanto o outro invadiria outra casa e roubaria tranquilamente o que quisesse.
O homem foi convencido a fazer o papel mais perigoso, afinal, seu comparsa também era seu grande amigo de infância. O outro prometeu que daria um jeito de salvá-lo após realizar o roubo. O homem duvidava, mas não conseguia recusar nada para o comparsa. Assim, ele acabou naquela situação: Numa das maiores casas da vila, agredindo uma criança, mantendo uma senhora como refém e com dezenas de guardas ao redor do lugar, hesitando para tomar alguma atitude.
— Senhor...
A mulher seguia com o semblante inerte, mas seus olhos passavam uma leve expressão de curiosidade.
— O senhor tem alguma experiência com assaltos?
O homem refletiu por alguns instantes. “A resposta é não. Mas eu...”, pensou.
— Alguma.
— Entendo. Achei um pouco estranho o senhor não ter roubado nada. E não parece que tem alguém te ajudando.
A mulher estava certa, mas o homem não pôde deixar de se sentir frustrado. Era única e exclusivamente uma isca. Uma isca que agride crianças e senhoras.
— Posso ser inexperiente, mas esses guardas são mais. — Disse, tentando manter a expressão calma. — Se fossem bons já teriam invadido e me prendido.
O homem ergueu o corpo lentamente, se aproximando um pouco mais da janela para tentar observar a formação dos soldados. Esticou a cabeça por alguns instantes, recuando-a bruscamente assim que uma flecha atirada por um dos guardas passou a pouquíssimos centímetros de seu rosto.
— Pelo visto a mira deles não depende de experiência.
O homem, ofegante, voltou a se abaixar para a posição que estava; aos poucos foi normalizando sua respiração. “Ela tem razão. Subestimei demais esses guardas.”, pensou. Por vários minutos em seguida o silêncio tomou conta do ambiente. O som da movimentação dos soldados do lado de fora podia ser ouvido claramente, mas dentro da casa ninguém fazia nenhum barulho. O homem começou a ficar ansioso, incomodado com o clima tenso.
— Senhor...
Ele virou o rosto para a direção da senhora, indicando com a cabeça para que ela prosseguisse.
— O senhor não vai mesmo roubar nada?
O homem suspirou. Não tinha nenhuma razão para contar o plano para ela, mas também não havia nada que o impedisse de dizer. Para tentar amenizar a pressão do ambiente, resolveu falar. A senhora escutava atentamente a história do plano, mas seu rosto seguia inexpressivo.
— Você não parece ser um homem tolo o bastante para acreditar que vai conseguir escapar livre daqui. — A senhora voltou o olhar para o homem, arqueando as sobrancelhas e balançando a cabeça suavemente para os lados. — Seu comparsa te sacrificou, senhor.
O homem desviou os olhos da mulher, virando-os para cima e observando a escuridão quase absoluta que havia na altura do telhado da casa. Manteve-se em silêncio por alguns segundos, respirando lentamente, até que fechou os olhos e abriu um pálido sorriso de canto.
— Eu sei.
Sua voz soou tão débil quanto o semblante que ele assumia no momento. A senhora ouviu aquelas palavras com um longo suspiro, voltando em seguida a assumir a expressão neutra que a acompanhava durante todo o cativeiro.
Outro período de silêncio se estendeu entre os dois, enquanto do lado de fora da casa os guardas seguiam tentando se organizar para dar uma resolução ao cárcere da mulher. O homem agora observava firmemente a pequena fresta da janela que o permitia ver algo de fora sem arriscar-se a ficar na mira das flechas dos guardas, mas tudo o que era possível enxergar dali eram os pés impacientes de alguns poucos soldados da linha de frente. Tentou estimar rapidamente se seu comparsa já estaria finalizando o roubo e saindo de cena, mas ele não sabia ao certo há quanto tempo os guardas estavam ali; decidiu que seguraria aquela situação o máximo possível. “Melhor errar pra mais do que pra menos, nesse caso”, pensou.
— Então. Eu acho que já sei por que não estou com medo.
A súbita quebra de silêncio que a fala calma da senhora trouxe afastou o homem de suas conjecturas. Ele se limitou a observar a mulher com olhos inquisidores, inclinando a cabeça levemente e aguardando que ela concluísse o raciocínio.
— Sabe, eu tenho... — ela interrompeu a fala bruscamente, assumindo em seguida um tom de voz mais sóbrio — tinha um filho. Era um bom rapaz, mas sonhava alto demais. Resolveu que seria soldado e, já que o exército de Carlin não recruta homens, foi tentar a sorte em Thais. Conseguiu entrar para a tropa só pra ser morto por um bando de orcs em sua primeira batalha. — Seu semblante murchava como uma planta fora do vaso a cada palavra dita. Ela fez uma longa e reflexiva pausa após a última frase, seus olhos pesados fitando o chão de forma dispersa.
— Continue. — O homem disse, curioso com a mudança de atitude da mulher.
Ela o olhou de relance, logo desviando o olhar novamente. Ajeitou-se no chão e apoiou seu rosto na parede, como que tentando encontrar as palavras para continuar.
— Hoje a noite é o funeral dele em Thais. — Disse finalmente, com a voz retraída e baixa. — Meus patrões também estão na cidade para um baile na casa de algum nobre de lá. Disseram que gostariam muito de me levar para despedir-me do meu filho, mas a criança deles teria que ficar aqui. Eu não posso deixá-lo sozinho, eles disseram. O garoto só fica quieto comigo, eles disseram. O túmulo do meu filho vai continuar lá para sempre, posso vê-lo a qualquer hora que puder, eles disseram. Sim, senhora... Eu disse.
O homem ouvia atentamente as palavras densas que a senhora dizia, sentindo o peso de cada uma delas nos sentimentos daquela mulher. Era raro para ele sentir empatia com outras pessoas, mas, naquela situação, era como se ele conseguisse entender perfeitamente a angústia que ela carregava consigo. Desviou o olhar dela, coçando a cabeça e refletindo se deveria dizer algo naquele momento.
— Seus patrões são uns desgraçados.
Para a surpresa do homem, a mulher riu breve e nervosamente após ouvi-lo.
— Eu sei. — Ela manteve o sorriso débil e baixou ainda mais o tom de voz.
O homem não conseguiu evitar assumir uma expressão de piedade, e preferiu não olhar diretamente para a senhora. “É isso”, pensou, “nós somos iguais”.
Do lado de fora parecia que finalmente a impaciência dos guardas havia superado a falta de experiência dos mesmos. O som de passos e vozes diversas deixava claro que eles estavam mudando a formação, talvez se preparando para invadir a casa a qualquer momento. O homem franziu o cenho, levantando-se com cuidado para não ficar exposto e tentando ter uma visão melhor dos soldados. “Merda”, pensou, “ainda está cedo demais”. A mudança de posição não o ajudou em nada: ele seguia praticamente às cegas quanto aos movimentos dos guardas. Tendo apenas a audição como aliada, o homem ainda conseguiu perceber que os soldados se aproximaram da casa, embora ainda hesitassem para invadir. “Se eu estivesse numa cidade grande já teria sido pego há muito tempo”, refletiu, sentindo-se um pouco aliviado com o tempo que ganhou pela indecisão dos guardas; porém, esse tempo não duraria muito mais.
Desistindo de ver algo pela janela, o homem encolheu-se na parede, sentindo que agora só poderia aguardar e ser capturado, além de torcer para que seu comparsa tenha terminado o roubo a tempo.
— Senhor.
A tensão havia feito com que ele se esquecesse momentaneamente da mulher. A voz dela retornara ao tom calmo de antes, e trouxe de volta a atenção do homem.
— Ainda dá tempo de melhorar sua situação.
— Melhorar? — O homem franziu as sobrancelhas, confuso e ansioso ao mesmo tempo.
— Sim. É melhor se entregar antes que eles precisem invadir e acabem te matando.
— Não. Eu tenho que ganhar o máximo de tempo possível para...
— Seu comparsa escapar. Eu sei. — A mulher o interrompeu, seu rosto tinha uma expressão firme e resoluta. — Você não precisa fazer isso.
Ele não conseguiu responder imediatamente às palavras da senhora. Parte dele concordava com a mulher e tinha consciência de que não era sábio continuar com aquilo. Outra parte simplesmente não cogitava a possibilidade de trair seu comparsa, mesmo que o próprio houvesse traído primeiro. Elas estavam em conflito naquele momento. O homem olhava para várias direções alternadamente, sem focar em nada específico; confusão era o que sintetizava seu rosto.
— A gente sai por aquela porta e você denuncia o roubo do seu comparsa. Tenho certeza que vão diminuir sua pena com isso.
— Eu... Não consigo. — Sua expressão confusa se alterou para um sorriso amarelo. Ele cruzou os braços e fitou a mulher com um olhar sem brilho, inerte. — Eu vou esperar até invadirem e ganhar o máximo de tempo que der pra ele escapar. No fim, eu sou apenas uma marionete dele. Patético, não?
A senhora, pela primeira vez desde o começo do cárcere, sorriu sinceramente para o homem.
— Não... Tudo bem. Não se culpe por isso.
O homem, mais uma vez surpreendido pela reação da mulher, sorriu involuntariamente de volta para ela.
— Sabe... Eu vou tentar conversar com os guardas. Ao menos posso conseguir que poupem sua vida, rapaz. — Ela mantinha o sorriso, seu tom de voz agora era quase maternal.
O homem relaxou o corpo com as palavras gentis que recebeu. Retribuiu o sorriso da melhor forma que pôde, e voltou a desviar o olhar para cima. A noite havia se clareado um pouco, e alguns tímidos feixes de luz da lua atravessavam as frestas do telhado da casa. “Talvez ainda haja esperança”, pensou.
— Depois de tudo a vida me manda essa... — Disse, voltando o olhar lentamente para a direção da mulher. — Senhora, obriga...
Ele não conseguiu terminar a frase. A senhora aproveitou-se do seu momento de distração e jogou o corpo na direção do homem, empurrando-o para frente da janela e, consequentemente, para a mira dos soldados. Dois segundos bastaram para um dos guardas reagir. Não bastaram para o homem entender o que houve e se mover dali. Quando deu por si, já havia flechas atravessadas em seu peito.
A mulher se abaixou, aproximando-se do corpo caído do homem. O som de passos mostrava a ele que os soldados entrariam em poucos instantes para concluir o resgate: era fim de jogo. A senhora aproximou-se do rosto dele, seu semblante voltara a ser impassível e sóbrio como esteve na maior parte do cativeiro.
— Perdão. — Ela sussurrava. — Eu sou tão patética quanto você. Não consigo perdoar alguém que invadiu a casa dos meus patrões e agrediu a criança deles. Posso odia-los, mas... Eu não consigo. Nós somos iguais, senhor. Adeus.
A consciência do homem aos poucos desaparecia, e sua visão embaçada só enxergava a sombra da mulher se afastando lentamente. Pensou no passado, de sua infância, de seu amigo... “Desde quando ele deixou de ser meu amigo e virou meu comparsa?”, pensou, sentindo-se ridículo por pensar algo assim em seus últimos momentos. “Espero que ele consiga”. Num último fôlego, conseguiu dizer algo para a mulher, mesmo sabendo que ela não o ouviria.
— Obrigado...
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