Spoiler: Comentários passados
Segundo cenário: O salto
O brilho intenso dos sois num céu sem nuvens cobria completamente a área de uma pequena zona rural a leste de Thais. Se dentro dos muros da capital do reino a cidade era efervescente e movimentada, seus arredores eram marcados pela pobreza, pela vida monótona e pela constante insegurança a respeito de bandidos, trolls e todo tipo de criatura hostil que habitava as planícies daquele continente.
Numa dessas pequenas áreas miseráveis, numa fazenda quase completamente improdutiva, dois jovens irmãos terminavam a confecção de um rústico caixão, usando lascas de troncos e palha torcida.
A garota, mais velha, tinha cabelos loiros tão pálidos quanto a palha que cobria a base do caixão, além de usar roupas surradas e cheias de remendos; seus olhos, no entanto, eram grandes, negros e brilhantes. Com seus apenas quatorze anos, precisava enterrar o próprio pai e assumir o controle da fazenda. Apesar da situação pesada, ela mantinha a expressão firme e se concentrava agora em acomodar o caixão num buraco previamente cavado, cobrindo-o de terra com a ajuda de uma pequena pá.
— Mana, que que a gente vai fazê?
O irmão mais novo era um garoto franzino e de pele bem clara, uns três anos mais jovem que a irmã. Suas roupas eram tão surradas quanto as dela, e seus cabelos eram negros, num tom idêntico ao do seu falecido pai.
A garota olhou de canto para o irmão, mas continuou no ritmo lento com o qual enterrava o caixão improvisado. O menino tinha os olhos inchados e avermelhados pelo choro, e seu pequeno corpo parecia ainda mais mirrado e encolhido do que de costume.
— Chora tudo agora, mano. Daqui pra frente é só nois dois sozinho. — A garota tentava manter sua postura firme, mas a voz engasgada e as mãos trêmulas que seguravam a pá mostravam o contrário.
— Tá. — O menino tentou imitar a irmã, secando as lágrimas e ajudando a jogar terra na pequena cova com as próprias mãos nuas. No entanto, seu corpo era mais sincero ainda quanto aos seus sentimentos, e logo a terra abaixo dele ficou úmida com suas lágrimas.
— Deixa que eu termino aqui. Vai comê alguma coisa, saco vazio num para em pé.
Em silêncio, o garoto obedeceu a irmã. Dando uma última olhada para o pedaço do caixão que ainda estava à vista, ele se levantou e saiu andando lentamente. A garota, assim que o menino saiu de seu campo de visão, deixou grossas lágrimas rolarem no seu rosto, enquanto cavava a terra com mais força.
O garoto pegou um dos raros pedaços de pão minimamente comestíveis na despensa e subiu no telhado por uma abertura entre as telhas, sentando-se na beirada com as pernas suspensas. Do outro lado daquele telhado, na mesma altura, mas separado por um vão, ficava o teto de um antigo galinheiro, que naquele momento só guardava a pequena produção de milho que a fazenda teve na última colheita. O menino e sua irmã costumavam tentar pular de um telhado para o outro, aproveitando-se que as construções eram baixas e o chão era de terra fofa, tornando as quedas seguras. Nunca, porém, eles conseguiram atingir o outro teto com um salto apenas.
Ainda em meio às lágrimas, o menino terminou de comer o pão seco, forçando-se a engolir cada pedaço dele. Depois, retirou do pescoço um cordão de prata que seu pai costumava usar, o qual era o único bem de algum valor que eles possuíam; a luz solar refletia nos elos do cordão, maximizando seu brilho. Ele observava aquele objeto de forma fixa, a luminosidade dele agindo de forma quase hipnótica na mente do garoto. Seu fascínio era tão forte que ele quase não percebeu alguém subindo até o telhado.
A garota subiu rapidamente pela abertura, colocando-se de pé e com a cabeça abaixada no lado oposto ao que o menino estava sentado.
— Mana?
O menino, com a voz fraca, tentou chamar a atenção da irmã, mas ela não pareceu escutar. A garota cerrou os punhos e, de forma bem ágil, correu todo o comprimento do telhado em um segundo, saltando um momento antes de seus pés tocarem a última telha, ao lado do irmão. O menino observou, surpreso, o instante em que a irmã tocou a ponta dos pés no limite do telhado do lado oposto, endireitando o corpo e se colocando de pé sobre as telhas, triunfante.
— A gente vai dá conta, maninho. O pai vai tê orgulho da gente de onde ele tiver, pode apostá! — A menina disse, enquanto erguia a cabeça na direção do irmão, os olhos ainda cheios de lágrimas e um sorriso largo brotando no rosto.
O menino, ainda bestializado pela irmã ter saltado tão longe pela primeira vez, enxugou as lágrimas com a manga da camisa, forçando um sorriso e acenando positivamente com a cabeça para ela.
~~
Dois anos depois...
— Vai demorá dessa vez, mana?
— Nada. Três dia e eu tô de volta, maninho. Cuida dos milho direito.
— Tá. — O garoto disse, enquanto tirava a corrente de prata do seu pai do bolso e a colocava em volta do pescoço da irmã. — O pai vai cuidar docê.
A garota sorriu, passando a mão na cabeça do irmão de forma suave, e logo depois se virou, seguindo a estrada que ia em direção a Thais.
O menino observou a silhueta da irmã até ela desaparecer no horizonte com o coração apertado. Desde que o pai dos jovens morreu por uma doença súbita, a mesma que levara a mãe deles alguns anos antes, a garota buscava fundos para sustentá-los de uma forma perigosa: trabalhando para um grupo de mercenários. De tempos em tempos ela saía em missões, ora a serviço do governo de Thais, ora para organizações obscuras. Mesmo que ela sempre tenha voltado ilesa, o garoto não deixava de ficar aflito todas as vezes que via a irmã saindo para os serviços.
— Num adianta pensá nisso. Logo ela volta. — O menino disse em voz alta, como que tentando se convencer daquilo que falava.
O céu estava nublado naquele dia. Por alguma razão o menino gostava daquele clima encoberto, por isso foi para o telhado de casa observar o céu. As nuvens eram tão densas que ele não conseguia distinguir onde uma começava e a outra terminava, porém o ar não transparecia que iria chover em breve. “Pai, manda uma chuvinha pra gente aí. Os milho tão precisando”, o garoto pensou, enquanto olhava para as nuvens com o rosto esperançoso. Depois que se cansou de observar o céu, o menino levantou-se, andando até a borda oposta do telhado e se virando, encarando o teto do galinheiro do outro lado do vão.
Ele ajeitou o corpo e correu na direção do vão, pegando impulso e saltando em busca de alcançar o outro lado. Entretanto, como aconteceu todos os dias desde que sua irmã conseguira o feito, ele falhou, caindo desajeitadamente na terra fofa logo abaixo.
— Ainda tô um ano mais novo que ela quando deu conta de pulá. Uma hora consigo. — Ele disse em voz alta, rindo da própria falha enquanto ajeitava o corpo na terra. Ele adormeceu ali mesmo, sentindo-se mais tranquilo quanto à saída da irmã.
Semanas se passaram. A colheita de milho, graças ao bom volume de chuvas, foi surpreendentemente farta naquela estação; o pai dos jovens atendera bem ao desejo do filho. Entretanto, a garota ainda não havia voltado.
O menino, quando não estava cuidando da colheita, passava os dias e noites a fio sentado no telhado, observando o mesmo horizonte por onde vira sua irmã pela última vez. Já havia chorado todas as lágrimas que possuía e perdido quase todas as esperanças de ver a irmã novamente, mas seguia ali, aguardando por ela.
Num dia ensolarado, o clima idêntico ao dia da morte de seu pai, o menino finalmente viu uma silhueta se aproximando por aquele caminho. Logo ele notou que não era sua irmã, mas sim um homem de meia-idade de aparência rústica e mancando de uma perna. O garoto desceu dali de forma lenta, indo ao encontro do visitante com a expressão inerte.
O homem se apresentou como o líder do grupo de mercenários que sua irmã fazia parte. Pelo seu relato, a última missão foi mal sucedida, e a maior parte dos membros acabou morta. Sua irmã não foi uma das exceções. O menino ouvia aquilo de forma apática, parecendo já saber cada uma das palavras que o homem dizia, porém, um objeto brilhante que o homem retirou do bolso fez com que seus olhos lacrimejassem.
— Ela pediu pra te entregar antes de morrer. — O homem disse de forma indiferente, entregando o cordão de prata para o garoto e logo se afastando. — Boa sorte, moleque. Seja forte igual sua irmã. — Ele acenou e seguiu lentamente pelo mesmo caminho por onde chegara.
O menino ficou parado ali por vários minutos. O sol potencializava o brilho daquele cordão que ele pensou que nunca mais veria, e agora estava em suas mãos. Mesmo com a confirmação da tragédia que no fundo ele já previa, a simples presença daquele objeto aqueceu seu coração. O garoto secou os olhos e seguiu de volta para o telhado.
Ele ficou de pé sobre as telhas, olhando fixamente o telhado do galinheiro além do vão. Atrás dele era possível enxergar a silhueta do homem que trouxera o cordão desaparecendo lentamente. O garoto fechou os olhos e respirou fundo. Segurando o cordão firmemente, correu o mais veloz que pôde na direção da borda do teto. Sem abrir os olhos, ele parecia sentir a presença de cada telha ali como se fossem velhas conhecidas, indicando o caminho para ele. O garoto saltou, num impulso quase desproporcional ao seu corpo franzino, mas não aterrissou firmemente no outro lado; seus pés tocaram as telhas, mas escorregaram. Ele não desistiu. Jogou o corpo contra a parede, esticando os braços ao máximo e agarrando-se com força nas telhas da beirada. Num impulso, jogou o corpo para cima, quebrando as telhas onde havia segurado, mas conseguindo se alçar para o teto.
Ofegante, ele deixou o corpo dolorido se esparramar sobre o telhado, abrindo os olhos lentamente. A luz ofuscante dos sois machucou-os, fazendo com que ele lacrimejasse. Mas o menino sorriu. O sorriso mais sincero desde a morte de seu pai.
— Tá vendo, mana? — Ele disse, com a voz trêmula, enquanto erguia o cordão de prata para cima, na direção do sol. — Eu também consigo!
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