Spoiler: Respostas
CAPÍTULO 6 – PRESSÁGIO DE MORTE
Ao se sentar diante daquele homem excêntrico e de aparência peculiar, Lúcifer demorou para se convencer de que aquela era uma das mentes mais brilhantes do novo continente. Ele se veste como um palhaço, pensou, quase se arrependendo, mas decidindo seguir a pista que lhe fora dada por Cain.
O homem, chamado Spectulus, usava um sobretudo de cores branca e rosa, um chapéu pontudo também branco e carregava um cajado puído e gasto. Seus olhos estavam um pouco fora de foco, e sua barba comprida tinha diversas falhas.
— Suponho que o senhor controle uma quantidade razoável de feiticeiros…
— Bruxos — corrigiu o velho, quase que instantaneamente.
O Anjo Caído contou até três, flamejando de vontade de queimar aquele homem até que pulverizasse seus ossos. Do contrário, deu-lhe um sorriso forçado; tinha a intenção de que fosse condescendente, mas o conflito de sentimentos fez parecer que ele tinha tétano.
— Bruxos — concedeu. — Controla vários bruxos.
Spectulus franziu os lábios e sacudiu a cabeça para lá e para cá, como quem dissesse “talvez”. Só agora, Lúcifer se dava conta de que o olho esquerdo do velho era ligeiramente opaco, como se contivesse alguma deficiência – catarata, talvez.
— Conheço alguns dos maiores bruxos da era moderna. Melchior, o Comerciante; Oldrak, o Monge; Padreia, a Xamã; Edward e Lorraine Warren, os Demonologistas…
Lúcifer franziu a cara como se tivesse lambido um limão, mas não interrompeu o homem.
— Eclesius, o Louco; Rachel, a Pacifista; Xodet…
— Certo, entendi. Todos eles são filiados da Academia de Magia de Edron?
O velho arregalou os olhos e os relanceou para os arredores, registrando prontamente o excesso de parafernálias que mantinha na sala mais alta da torre central da Academia de Magia de Edron. Era um homem de aparência peculiar e muito excêntrico; podia ter cometido suas falhas em um passado não muito distante, com uma sucessão de dispositivos mágicos que simplesmente deram errado, mas havia algo componente de seus maiores sentidos que nunca falhava: sua intuição.
O assistente Jack havia levado aquele homem até ali, e, se Spectulus acreditava que se vestia de maneira chamativa, nada se comparava ao ridículo smoking com gravata borboleta que trajava aquele aborto da natureza. Inobstante, poucos eram os que conheciam com exatidão o trabalho da Academia de Magia de Edron, e ninguém havia perguntado, nos longos 160 anos de vida de Spectulus, se ele exercia controle sobre bruxos, ou coisa que o valha.
Aquela conversa poderia significar uma de duas coisas: requerimento de aliança ou tentativa de oposição de controle. Ainda que se visse um pouco mais tentado pela primeira opção, seria de bom grado que decidiria não aceitar nenhuma delas.
— São filiados de diversas academias — respondeu, evasivo.
Lúcifer piscou duas vezes, surpreso.
— Se não tivesse sentido a aura de seu poder mágico, Spectulus, diria que está disfarçando, como costumam dizer.
O bruxo sentiu uma fugaz gota de suor percorrer o início de sua coluna, sob os cabelos brancos e malcuidados. Um único movimento poderia ser fatal.
— Desculpe-me pelo questionamento, mas qual é o seu interesse na Academia?
Lúcifer piscou mais uma vez e relaxou os ombros, recostando-se na cadeira bamba.
— Gostaria de realizar um aporte financeiro razoável. Uma contribuição para o desenvolvimento das atividades aqui.
— Em troca de…?
Ele franziu o cenho, as pupilas se dilatando.
— Francamente, Spectulus. Não exijo nada em troca. Sou um novo investidor e, como um fã da magia…
— Bruxaria — Spectulus corrigiu automaticamente.
Lúcifer revirou os olhos por dentro.
— … da bruxaria… simplesmente gostaria de financiar parte de suas atividades. Entendo que o senhor seja um bruxo incompreendido e, em diversas ocasiões, inadvertida e inadequadamente julgado pelos cidadãos desta ingrata cidade.
Finalmente, o Anjo Caído percebera que atingira o ponto-chave do ego do outro. Spectulus inflou como um balão e respirou profundamente várias vezes, antes de se recompor. Aparentemente, a fama do bruxo em Edron não era das melhores e, a julgar pela forma como se portava, não era exatamente um fã dos demais habitantes da cidade, em igual medida.
Os olhos de Spectulus brilharam. Era a hora de tomar uma decisão.
*
De volta à enfermaria, Heloise levou um certo tempo para compreender o que havia acabado de acontecer. Encontrara-se com o Criador em pessoa e, agora, ele lhe fornecera qual seria a intenção de Lúcifer no próximo movimento que faria. Dentro do biombo de Jason Walker, Ed e Lorraine Warren ainda conversavam em voz baixa, mas a conversa deles não mais interessava à rainha.
Ela se virou e se dirigiu para a saída da enfermaria, imersa em pensamentos. A noite já caía suave e o céu, salpicado de estrelas, brilhava como se aquela fosse somente mais uma crise à qual a humanidade deveria se submeter, em seu combate eterno contra as forças da escuridão. A cabeça da rainha girava. Precisava tomar uma decisão.
Quase que convenientemente, John Walker apareceu, sujo da cabeça aos pés, mas inteiro.
— Como ele está?
A rainha sacudiu a cabeça em sinal negativo. John respirou fundo, deliberando.
— Randal desapareceu — informou o incandescente. — Não o encontrei em lugar algum. Ele fugiu da prisão e tenho razões para crer que trocou de corpo, embora não tenhamos encontrado seu receptáculo original.
— Edward e Lorraine Warren também acham que isso aconteceu — a rainha fechou os olhos por um instante. — Que tal é Randal?
Naquele momento, John estava dividido. Ele havia considerado em muito a possibilidade de que Randal era simplesmente bom demais para existir, mas fugir da prisão era uma atitude suspeita e tanto. Se não houvesse nada a temer, não deveria ter escapado.
Bambi Bonecrusher apareceu de repente, um pouco afoita.
— Senhora, requerimento de comunicação por um canal seguro — informou. — Para o senhor também, John.
Por um instante, Heloise se lembrou de quando estivera em Svargrond e Bambi tentara contatá-la por um “canal seguro”. Não era tão seguro assim mas, dadas as circunstâncias, teve que valorizar a bondosa intenção da capitã.
Heloise e John foram até o castelo, passando por diversas campanas que tratavam de alguns dos feridos. A rainha foi saudada mais vezes do que gostaria e, em justa medida, todos pareciam crer que se a cidade não perecera, havia sido por conta da atuação ostensiva de sua comandante. Ela discordava, porque, em seu íntimo, acreditava que foram Svan, John e Leonard os responsáveis por salvar a cidade, mas não era exatamente o momento para que tivessem discussões do gênero.
Na sala do trono, que nada mais era do que um aposento com carpete vermelho e trono de madeira acolchoado, Bambi trouxe a eles uma terrina cheia de uma substância leitosa, da qual Heloise e John se aproximaram devagar.
Flutuando na superfície haviam dois rostos muito desconhecidos e, ao mesmo tempo, muito semelhantes entre si. O homem tinha cabelos curtos e espetados, quase dourados, e feições firmes sob a barba por fazer. Seus lábios eram finos e os olhos azuis, perspicazes. A mulher era linda, na acepção do termo. Tinha cabelos castanhos divididos ao meio, lábios cheios e olhos também castanhos e nariz pontudo. A semelhança entre eles residia mais no formato do rosto do que em qualquer outra coisa; eram novos demais para que fossem pai e filha, ou mãe e filho, mas tinham idades compatíveis para que fossem irmãos.
Nas mãos do homem, Heloise identificou um baita de um trabuco, que provavelmente funcionava com pólvora e balas. A mulher carregava uma besta. Era impossível desviar os olhos de seu busto, que era farto e chamativo. Ambos usavam roupas de couro apertadas, que somente salientavam a forma física de cada um deles.
— Rainha de Carlin? — perguntou o homem, de forma profissional.
Embora a voz fosse etérea, era muito clara. Heloise assentiu uma vez, curiosa.
— Chamo-me Gretel Grimm, e este é meu irmão, Hansel Grimm — disse a mulher. A sonoridade em sua voz era agradável aos ouvidos. — Fomos contatados por um certo ser, cuja característica não interessa, chamado Gadreel. Ele nos trouxe uma mensagem de Crunor.
Heloise e John trocaram um olhar, surpresos. Por uma questão de conveniência, a rainha escondera de John a informação de que se encontrara com Crunor, porque o incandescente parecia suficientemente revoltado, e achava que causar nele outro acesso de raiva poderia ser prejudicial.
A rainha voltou os olhos para a terrina.
— Sim, Crunor comentou — ela alteou a voz para suprimir o olhar de indignação de John. — São caçadores.
— Somos caçadores de bruxas — corrigiu Hansel, com firmeza. — Crunor acredita que Lúcifer tentará recrutar a Academia de Magia de Edron em seu próximo movimento, e nos pediu para engrossar as fileiras de defesa de Carlin.
— Quais são as condições?
— Não há — Gretel arqueou as sobrancelhas. — Somente precisamos de um espaço de descanso digno, porque meu irmão padece de uma doença grave que depende de tratamento nos horários certos. Se o exército decidir por nos recrutar, estaremos em Carlin antes do raiar do sol.
Heloise deliberou por um instante. Ainda estava muito reticente quanto a aceitar qualquer ajuda de Crunor, especialmente porque ele se negava veementemente a interceder em favor de Jason Walker, mas, a bem da verdade, se enfrentariam o desconhecido, era melhor que tivessem especialistas ao seu lado.
Hansel e Gretel davam a impressão de corresponder àquele tipo de caçador que não brinca em serviço. A fala, o porte e até mesmo o olhar de ambos eram muito profissionais e concentrados.
— Aguardo vocês aqui — decidiu a rainha, finalmente.
— Desligamos — disse Hansel, e a conexão se desfez.
Rapidamente, Bambi ressurgiu para tirar a terrina da presença dos dois. John olhou para a rainha, inquisitivo, mas resolveu falar antes de perguntar.
— Não quero saber de nada sobre eventuais contatos seus com Crunor — disse, consignando sua opinião de pronto. — Inobstante, não podemos descartar os irmãos Grimm. São exímios caçadores de bruxas, e bruxos, e seus feitos são conhecidos até por quem não participa do ofício. Só tenho uma dúvida pendente…
“Hansel e Gretel são depois do nosso tempo. Eles surgiram na Idade Média moderna, e atuavam firmemente no pedaço de terra que virá a ser conhecido como Reino Unido, e na Prússia. Não sei qual é o objetivo de Crunor ao trazê-los para a nossa era mas, a bem da verdade, eles parecem ter sido muito bem informados. Embora venham depois do nosso tempo, seu conhecimento sobre a nossa cultura é notório. Talvez possamos usá-los, se Lúcifer realmente estiver recrutando os bruxos de Edron.”
Heloise manteve o silêncio por um longo momento, sentindo, momentaneamente, um assomo indizível de gratidão por Crunor. Ele intercedera em favor dela, ainda que de forma indireta, e a rainha acreditava que John o julgava mais do que era necessário.
Todavia, agora, tinha condições de construir uma linha de frente um pouco mais poderosa. Com Jason ou sem Jason, o plano de atacar Lúcifer em seu território precisava ser executado o mais depressa quanto fosse possível.
É a nossa única chance, pensou a rainha, aflita.
Publicidade: