Bom, já sabem as regras. Não revelarei quem escreveu cada texto, só no final, além do mais, desejo boa sorte na hora de votarem nesses textos hiper grandes que fizeram meus dedos doerem de tanto arrastar o mouse
Spoiler: Texto 1(Grande pra caceti)A Erva Sangrenta do Pântano
No dia que eu o encontrei, Thais estava como sempre. Aquela cidade nunca muda. As pessoas mudam, e a expressão em seus rostos muda; mas não a cidade. A grama verdeja e amarela, mas o pavimento das ruas é sempre o mesmo. O verão traz o calor, e o inverno o leva embora; mas os muros da cidade continuam, inabaláveis, no mesmo lugar. Não importa quanto tempo passe, quando volto para Thais, ela está do mesmo jeito. Como que a me esperar, feito amiga saudosa.
Deixei-a naquela manhã, já sabendo que a encontraria do mesmo jeito quando voltasse. Isso me dava forças para superar a saudade, cada vez que botava o pé na estrada para aventurar-me pela vasta terra. É preciso coragem para lançar-se numa aventura, é verdade; mas é preciso mais coragem ainda para deixar a cidade que amamos. Apesar da certeza que a veria novamente, sempre me entristecia sua lembrança quando estava em terras distantes. A lembrança dos meus velhos pais, que tão bem me queriam, e dos meus poucos, mas fiéis amigos, a cada passo, tornava-se mais dolorosa. Só quando estive bem longe de minha terra natal, pela primeira vez, fui entender verdadeiramente o que significava sentir saudades. Machuca muito menos quando lemos nos livros ou ouvimos alguém contar. Afianço-lhes; este sentimento só é poético quando não o sentimos. Hoje entendo que este deve ser o combustível dos poetas e escritores que dedicam-se a narrar tais tristezas da vida humana; o sentimento de dor que precisa ser, de alguma forma, expressado, ainda que não seja devidamente entendido pelos seus leitores.
Mas no dia que o encontrei, eu já era um experiente aventureiro, acostumado a lidar com a saudade e dificuldades da estrada — outra coisa que só se entende quando se experimenta. Deixei Thais, como fizera tantas e tantas vezes, esperando encontrar grandes aventuras e aumentar minha experiência como aventureiro. Mas não imaginei, em momento algum, em que espécie de aventura estava prestes a me lançar. Se soubesse, confesso, talvez não teria sequer cruzado a ponte da cidade naquele dia. Mas isso porque ainda não o tinha conhecido. Se já o conhecesse, lançar-me-ia em perigos até maiores, corajosamente. E nunca fui sujeito dos corajosos. Se fosse, talvez, teria superado antes o terror das lembranças, e escrito mais sobre aquela enorme aranha. Sem dúvida, é uma das minhas melhores histórias. Mas seu desfecho não me animava em nada escrevê-la, principalmente na parte que tocava ao meu caro amigo.
Devo estar sendo um tanto vago, reconheço, sobre essa pessoa, que é, na verdade, o motivo principal desta história existir. Se não o houvesse conhecido, poderia até acabar escrevendo contos e histórias — sempre admirei os bardos e contadores de aventuras —, mas duvido seriamente que tais contos seriam escritos com a mesma emoção com a qual escrevo este. Talvez esteja sendo vago numa vã tentativa de postergar a dor que, por certo, sentirei ao narrar os fatos. Já sabia disso, porém, desde o momento em que tomei pena e tinta para escrever esta história.
Vi-o pela primeira vez próximo à Torre Triangular, que está situada após o riacho, próxima ao deserto. Eu tinha acabado de vencer alguns esqueletos que, por alguma magia desconhecida, são animados novamente, e lutam como se estivessem ainda em vida. Já imaginando que seria uma boa história para escrever e aumentar minha coleção de contos, sentei-me junto ao ribeiro, à sombra da grande Torre, para descansar da batalha. Distraído como estava, não vi quando ele se aproximou, até que chegou bem próximo de mim, e disse de chofre:
— Tens algo de comer?
Surpreso com aquele pedido tão repentino, olhei melhor aquele rapaz que sequer se apresentara ou me desejara uma boa tarde; devia ter uns vinte e tantos anos. Envergonho-me ao dizer que não me lembro muito do seu semblante. Queiram os leitores me perdoar por isso; pergunto-me se esse esquecimento foi obra do tempo, ou deve-se ao fato de que apeguei-me muito mais à sua história do que suas características físicas. Recordo-me, porém, que tinha cabelos castanhos, e que quase sempre trazia o cenho franzido, como se vivesse de mau humor. Espero que essa humilde descrição seja o suficiente por enquanto.
— E quem és tu, para chegares pedindo um favor como quem ordena algo a um subordinado? — disse-lhe eu, aborrecido com a falta de cordialidade do meu interlocutor. — Se és tão afiado com as palavras, usa-as para derrubar alguns animais. Quanto a mim, não darei sequer um gole d'água a alguém que sequer deseja uma boa tarde a um aventureiro cansado.
— Deixa disso, essa coisa de desejar boas tardes ou o que quer que seja — respondeu-me ele, com o mesmo tom arrogante de antes. —Apenas dá-me algo de comer, se o tens. Se não o tens, cala-te logo e deixa de tomar meu tempo, que irei em busca de alimento.
— Come, infeliz — disse-lhe eu, lançando-lhe um pão com violência, o qual ele evitou que caísse no chão com certo esforço, após algum malabarismo. Estava por demasiado irritado com a rudeza do meu interlocutor. Continuei: — Tens sorte que eu não nego a quem precisa.
Como esperado, ele não me agradeceu. Limitou-se a mastigar o pão e olhar para o leste, em direção ao pântano que existe nas redondezas de Venore, com um olhar um tanto vago, mas ao mesmo tempo, decidido. Comia o pão com certa voracidade, indicando que já não comia havia algum tempo. Compadeci-me dele, e isso aplacou um pouco a minha irritação.
— Que pretendes, viajando por aí sem ao menos trazer comida contigo? — disse-lhe eu, esperando iniciar algum diálogo para descobrir mais sobre aquele rapaz. — Vejo-te completamente despreparado.
— Isso é lá assunto meu — disse-me, com a mesma aspereza de sempre.
— Apenas os fugitivos e bandoleiros escondem para onde vão, porque seus destinos são obscuros, assim como suas intenções — disse-lhe eu, insistindo. Queria arrancar-lhe algo, qualquer informação. — Os viajantes sinceros nada têm nada a esconder.
— Vou para os pântanos — disse-me. — Não há por que dizer nada mais.
— Pois é para lá que estou indo — disse-lhe eu. Mentia; na verdade, eu tencionava seguir para o Norte, até Carlin, e depois, pra as ilhas geladas. Mas aquele rapaz deixou-me profundamente curioso, de modo que decidi mudar o destino da minha aventura. Com o pretexto de acompanhá-lo, podia descobrir mais sobre aquela figura instrigante. — Sugiro que vamos juntos, então. A estrada é perigosa para os que caminham sozinhos. Há muitos salteadores por essas bandas. Juntos, estaremos mais seguros.
Ele olhou-me demoradamente antes de responder, provavelmente ponderando se eu não o atrapalharia em sua jornada. Pelo jeito, preferia ir sozinho e julgava-me um fardo, mas percebeu que eu tinha razão ao mencionar o perigo dos salteadores das estradas. Quando abriu a boca, estas foram as palavras que saíram:
— Que seja. Então, vamos logo. A noite não tarda.
Levantei-me, pus a mochila, o arco e a aljava às costas e comecei a andar. Ele ia ao meu lado, sempre calado, com aquela expressão de mau humor que me deixava ainda mais curioso. O que deixava aquele rapaz tão irritado com tudo, áspero com as pessoas? Prometi a mim mesmo que descobriria.
— Por que a pressa? — indaguei-lhe. — Os pântanos não vão mudar de lugar. Estão sempre lá.
— Tenho pressa — foi tudo que ele me respondeu. Obviamente não respondia a minha pergunta, era praticamente uma repetição do que eu lhe indagara. Apenas me deixou mais confuso ainda.
Decidi não fazer mais perguntas por enquanto. Logo a noite caiu, e sugeri-lhe que acampássemos, pois viajar durante a noite poderia ser perigoso. Como não protestou, imaginei que devia ter concordado, e logo tratei de escolher um local para passarmos a noite.
Não trocou palavra alguma comigo desde então. Dormiu um tanto afastado de mim, virado para o outro lado, como se quisesse a todo custo, em qualquer circunstância, dar provas de que não me queria atrapalhando em seus assuntos. Quanto mais ele evitava minha amizade, porém, mais curioso eu ficava. Não entendia o que ele poderia querer esconder. Até cheguei a pensar que deveria ser algum rico, que, a fim de proteger-se dos interesseiros e saqueadores, fingia ser pobre e nunca dava informações sobre si.
No dia seguinte, quando despertei, ele estava sentado sobre a grama, a alguns metros de distância, sempre olhando para a direção dos pântanos. Revirava meus pertences em busca de algum pão ou fruta, quando ele percebeu que eu já estava acordado.
— Dá-me algo de comer — disse, com a mesma expressão carrancuda de sempre.
— Não — disse-lhe bruscamente, de modo que ele se surpreendeu.
— Negar-me-ás alimento? — indagou, arrogante.
— Não tenho dever de ficar provendo alimentos a alguém que desconheço — disse-lhe, instigando-o a dar com a língua nos dentes. — Não sei quem és, nem de onde vens. És todo escuso e nada falas sobre ti. Pois bem; se és tão cheios de mistérios a ponto de evitar, a todo custo, a minha companhia e amizade, então suponho que sejas corajoso e habilidoso o suficiente para buscar tua própria comida.
— Não vês que não trago arma alguma comigo? — disse-me, como se insinuasse algo sobre minha inteligência.
— Mais um motivo para não te portares feito um moleque mal educado — disse-lhe eu. Estava decidido a arrancar-lhe, de uma vez por todas, alguma informação. — Ajudei-te, mas me retribuis apenas com desfeitas e arrogância. Não aceitarei mais tais malcriações. Diga-me logo quem és, e te ajudarei no que precisares. Do contrário, parte logo, e não mais me atormentes com tuas insolências.
Não sei se minhas palavras tiveram algum efeito sobre ele, ou se foi apenas por causa da fome que sentia, mas a partir daquele momento, começou a portar-se melhor. Disse-me que se chamava Celoth e viera de Fibula.
Dali em diante, conforme se passavam os dias, começamos a desenvolver certa camaradagem. Ensinei-o algo do manejo da espada, e logo ele pôs-se a caçar alguns animais menores. Sua expressão, sempre carrancuda, começou a abrandar-se. Contava-me, de vez em quando, alguma coisa sobre a cidadezinha, e eu fingia ouvir como se fosse um estrangeiro que nunca pisara naquela ilha. Gostava de vê-lo falar. Sentia que ele estava, finalmente, livrando-se daquele jeito arrogante de ser. Mal sabia eu que nossa aventura estava prestes a encontrar um desfecho inimaginável, graças à uma das mais terríveis criaturas que habitam esse continente... as aranhas gigantes. Àqueles que nunca viram uma dela, desejo-lhes que continuem assim. Nunca as procurem. Talvez este temor seja uma das coisas que só se pode compreender plenamente ao vivenciar. Se soubessem do que são capazes, aqueles monstros...
Depois do segundo dia, começou a citar, de quando em quando, sua família. Sempre que me falava de um irmão, porém, a narrativa cessava, e ele passava a contar outra coisa, como se desejasse, ainda que inconscientemente, mudar o rumo da prosa. Isso me deixou intrigado, e logo fiquei convencido de que aquele irmão tivera um papel importante na viagem de Celoth.
Logo já éramos como amigos, conversávamos e ríamos bastante juntos, contando todo tipo de histórias e falando sobre muitos assuntos, dentre os quais preferido era, de longe, contar anedotas um tanto maldosas sobre as demais cidades. Muitas vezes, a estrada é carente de novidades, de modo que os assuntos mais tolos tornam-se os mais divertidos e rendem ótimas gargalhadas, que talvez nunca existiriam, se a mesma narrativa fosse contada em ambiente mais civilizado.
Por mais que desenvolvêssemos uma genuína amizade, porém, havia algo misterioso em seu olhar quando mirava os pântanos. Certo dia, quando já estávamos bem próximos de chegar ao dito destino, aproveitei-me da recém-conquistada simpatia e disse-lhe:
— Diz-me, pois, o que pretendes nos pântanos, de modo que possa te ajudar melhor. Não posso defender-me do perigo que desconheço.
— Por que me perguntas? É um assunto particular, familiar; não há motivos para te interessares por ele.
Fiquei ainda mais instigado quando ele disse ser assunto familiar. A imagem do tal irmão logo saltou-me à mente, de modo que rapidamente redargui:
— Pois interesso-me. Conta-me, peço, toda a história, para que eu não mais caminhe na escuridão dos teus mistérios. Eis que os pântanos já estão próximos.
Finalmente, não vendo como recusar meu pedido, resolveu contar-me algo de sua história. Só então comecei a descobrir quem, de fato, era aquele rapaz.
Contou-me muitas coisas, de modo que não me é possível narrá-las todas aqui. Algumas, confesso, já esqueci. Outras, pediu-me que não contasse a ninguém, pois confiara-me pela nossa amizade; garanto-lhes, todavia, que não são relevantes à história que tencionei narrar-lhes.
Mas o mais importante é que falou-me do seu irmão. Era um rapaz aventureiro, muito corajoso, que viajara por quase todo o continente principal do Tibia. Contou-me que ele sempre trazia muitas histórias quando voltava à Fibula, e todos os habitantes o conheciam e admiravam. Assim foi, durante muitos anos.
À essa altura, seu irmão, já com certo renome, anunciou que faria uma exploração pelo pântano, uma viagem com a qual sonhara por longos invernos, e só retornaria quando conhecesse todos os seus segredos. Todos ficaram animados, já esperando grandes histórias daquele experiente aventureiro. Sua irmãzinha lhe pedira que a trouxesse uma lembrança do pântano, para que ela mostrasse às outras crianças da vila como prova da coragem de seu irmão mais velho.
Porém, como é de se prever, esse irmão nunca retornou. Todos acharam seu sumiço algo muito estranho, pois ele tinha experiência o suficiente em viagens para não se perder. Começaram a temer o pior. Enquanto rezavam pela segurança do moço desaparecido, surgiram no vilarejo três homens desconhecidos. Foram direto para a casa de Celoth, trazendo más notícias.
— Somos aventureiros, como teu filho, e portamos tristes novas — disseram eles à mãe de Celoth. — Quando atravessávamos o Pântano Garraverde, fomos atacados por um grupo de bruxas, que ocultavam-se por ali; após dizimá-las, encontramos em seu meio um curioso animal, que falava. Estupefatos, ouvimo-lo; e contou que era um aventureiro de Fibula, que caiu nas mãos das bruxas do pântano, e elas o converteram naquela criatura, de modo que não podia mais regressar à sua casa. Pediu-nos um único favor, que avisássemos sua família, e disse-nos onde morava. Pediu desculpas a todos pela preocupação causada. Não o trouxemos, por que temíamos ficar também impregnados com a bruxaria. Transmitimos sua mensagem; eis que está realizado seu desejo.
E assim, partiram; e todos ficaram pesarosos no vilarejo por terem recebido tão triste notícia.
A família de Celoth ficou como que em luto. A irmã mais jovem prontamente assumiu a culpa pela triste sorte do irmão, julgando que tudo de mal que lhe acontecera fora resultado de seus esforços em trazer a lembrança prometida; não foi mais a mesma, passando seus dias a murmurar coisas sem sentido, por vezes largada na cama sem esboçar reação alguma, por vezes caminhando no quarto escuro de um lado para o outro enquanto sussurrava alguma canção em tons desafinados.
Seus pais tornaram-se calados, tristes. Celoth ainda tinha uma irmã mais velha, Melni, que era a única a manter-se bem mesmo com tudo que acontecera, apesar de ter já chorado suas muitas lágrimas. Ela e Celoth eram os que se preocupavam mais com sua jovem irmã, que tão cedo dava indícios de estar perdendo o juízo a cada dia.
De quando em quando, saía a errar pela cidade no meio da noite, feito assombração, falando sozinha. As outras crianças da vila já começavam a ter medo daquela garota, a ponto de correr simplesmente ao avistá-la.
Numa dessas noites, sob uma chuva torrencial, sentou-se no exterior da casa e ficou ali a brincar com a lama e passar os dedos pelas pedras. Quando Celoth e Melni a encontraram, estava completamente encharcada e tremendo de frio, alisando um pedregulho sujo de lama como se fosse algo muito valioso, de modo que foi difícil trazê-la para dentro. Depois disso, enfermou-se, provavelmente devido à exposição prolongada ao frio e à chuva, e agora falava suas habituais frases desconexas em meio à fortes acessos de tosse, e suas fantasias misturavam-se aos delírios da febre. Celoth decidiu que não suportaria por nem mais um dia toda aquela tragédia; e, na manhã do dia seguinte, saiu escondido, deixando apenas um bilhete a Melni. Dias depois disso, me encontrou próximo à Torre.
Celoth me contava essas coisas tristes enquanto nos aproximávamos do pântano. Chegamos, por fim, a uma entrada, e descemos: era uma caverna. Deixei ele me guiar pelas passagens, com a segurança de quem sabe onde está pisando. Pergunto-me se consegui expressar, por meio da narrativa resumida da história que Celoth me contou, toda a tristeza que senti ao ouvi-la. Preciso admitir só não me levou às lágrimas porque estava demasiadamente impressionado para chorar. Talvez, assim, escrevendo, não consiga transmiti-la da forma que me foi contada. Desculpo-me por isso.
Perguntei a Celoth, enquanto guiava-me pelas cavernas, o que pretendia fazer. Pensei que tencionava resgatar o irmão, ainda que em forma de animal desconhecido, mas fiquei surpreso quando ele me falou sobre suas intenções:
— Por algum motivo, o feitiço que lançaram sobre meu irmão não se dissipou quando as bruxas morreram — disse-me. — Isso é algo muito estranho. Informei-me, procurei descobrir quem poderia retirar tal feitiço; e disseram-me que aqui, neste mesmo pântano onde meu irmão foi embruxado, vive uma bruxa que poderá me ajudar.
Dizia-me isso enquanto subia umas escadas. Fiz o mesmo, e quando atingi a superfície, vi uma casa construída sobre o pântano, a cerca de um andar de altura. Ele me sussurrou: “É aqui que ela vive”.
Ah, se eu pudesse expressar aqui a minha sensação ao ver a casa de uma bruxa, logo após ouvir uma história sinistra! Mas que escolha eu tinha? Celoth estava decidido, e agora, eu entendia de onde vinha sua coragem e determinação.
Chegando lá em cima, eis que, de fato, havia uma bruxa a mexer num caldeirão. Essa visão já seria o suficiente para me deixar alarmado, mas Celoth ainda falou com ela.
— Preciso de tua ajuda — foi logo dizendo, com sua habitual brusquidão.
— Precisa? — repetiu ela, sem dar-lhe atenção. — Muitos já me procuraram para pedir ajuda. Este é, provavelmente, o motivo que te trouxe aqui: A mania que todos têm em vir “pedir”. Mas porque eu te ajudaria em qualquer coisa?
— Preciso que desfaças um feitiço — insistiu Celoth. Eu apenas assistia; não queria interferir naquele momento tão importante para o rapaz. — É coisa importantíssima. Não sou rico, mas dou-te tudo quanto me pedires, se estiver ao meu alcance.
— Geralmente me pedem para fazer feitiços, e não desfazê-los — analisou a bruxa, ainda mexendo o misterioso conteúdo do seu caldeirão, como se estivesse acostumada a divertir-se com viajantes que lhe pediam ajuda.
— Pois esta será uma exceção — disse Celoth. — Vê que só tu podes ajudar-me; pede-me logo o que queres em troca. Sei que as bruxas sempre querem algo em troca pela ajuda.
— Se é tão grande teu desespero, traga-me uma erva sangrenta — disse a bruxa, com um quase imperceptível sorriso. — Preciso de uma para minhas poções. Desfarei então, o feitiço, seja qual for. Desde que, é claro, tenha sido colocado por outra bruxa.
— Foi — disse Celoth, com uma expressão não muito boa. Já sabia que o pedido da bruxa fora algo difícil de se obter.
— Sei que há uma, aqui mesmo, neste pântano — disse ela. — Naquela direção...
E apontou para o lado oposto de onde viéramos; havia uma plataforma, continuação daquela onde a casa da bruxa estava firmada. Havia uma escada, que descia, e o caminho seguia.
Celoth, decidido, seguiu na direção indicada pela bruxa, e eu o acompanhei de perto. Passamos pela plataforma, descemos pela escada e logo encontramos um buraco. Havia algumas outras bruxas ali perto, praticando seus encantos e fabricando suas poções, mas minha preocupação era para onde aquele rapaz estava indo. Algo já me dizia que ele estava ávido demais.
— Sequer sabes o que tem aí dentro — disse-lhe eu. — Não vai entrando assim.
— E há escolha? — disse ele, enquanto descia pelo buraco. — Estou a um passo de salvar meu irmão, e tudo ficará bem. As bruxas cumprem suas promessas, quando lhes damos os itens mágicos que pedem.
— Sei disso — disse, enquanto o seguia por um corredor estreito sob a terra. — Mas não deves te precipitar à ruína por isso, meu amigo.
Tentava, em vão, fazê-lo pensar melhor e acalmar-se; mas, no afã de salvar a vida de seu irmão — e, por extensão, de toda sua família —, não queria de modo algum ouvir-me. Em parte eu entendia, mas em parte temia pelo meu amigo, que estava lançando-se sem pensar duas vezes num buraco desconhecido. Quando chegamos numa rampa, ele subiu e espiou, e disse:
— Há uma aranha enorme!
Aquelas palavras foram para mim como um soco; senti um frio no peito, e engoli em seco, meio que sem querer. Sabia a que ele se referia; por certo, aquela temível espécie de aranha que vivia em lugares ermos, como pântanos. Naquele mesmo momento, vi frustrada a nossa tentativa de conseguir a tal erva, e entendi, tarde demais, por que aquela bruxa nos tinha feito aquele pedido. Por certo, nem ela, nem nenhuma de suas companheiras em bruxarias, seria capaz de subir naquela pequena ilha para obter a erva.
— Vamos embora, Celoth — disse-lhe eu, a voz quase trêmula por causa do susto. Se um dia passarem pela experiência de estar a alguns metros abaixo do covil de um enorme monstro como aquele, entenderão o meu temor. — Deixa disto. É impossível. Podemos tentar obtê-la em outro lugar.
— Não existe em outro lugar — disse-me ele, e pelo tom da sua voz, comecei a perceber o que ele planejava. Temia a cada segundo pela impetuosidade do meu jovem amigo! — Essa planta só nasce aqui, e é muito rara. Quando nasce em uma árvore, suga-lhe toda a força vital, de modo que a árvore acaba por secar completamente; vejo que aquela árvore já está seca, de modo que a erva está cheia de propriedades mágicas, pronta para ser colhida. Se eu não pegar esta erva aqui, nunca salvarei meu irmão.
Naquele momento, pensei que toda sua arrogância e brusquidão fora como que uma preparação para aquele momento; como se ele, no fundo, já se preparasse para, chegado o momento, ser impetuoso o suficiente para não deixar qualquer medo lhe dominar. Tentei ainda impedi-lo, mas ele apenas me disse:
— Se eu não conseguir pegá-la, pega-a tu — e subiu.
Engoli em seco mais uma vez, mas não tinha tempo a perder. Já sabia que ele acabaria fazendo isso. Numa loucura, talvez o tipo de loucura que nos acomete quando um estimado amigo está em perigo, subi atrás dele.
Era uma ilhota no meio do pântano, se é que posso chamar de “ilha”; mas era um pedacinho de terra, cercado por riachos. Próximo à entrada, estava uma árvore seca, e no maior dos seus galhos retorcidos havia uma grande e vistosa erva, com folhas de um vermelho vivíssimo; só podia ser a tal erva solicitada pela bruxa.
De fato havia uma aranha, mas chamá-la de enorme era pouco; era simplesmente uma criatura assombrosa, digna de ser chamada de monstro. Lembro-me até hoje do som daquelas patas descomunais tocando o solo, assim como do odor venenoso que exalava. Me perdoem se minha descrição não vai muito além disso; o que se sucedeu a seguir foi simplesmente a cena mais funesta que já presenciei na vida.
Celoth esticava-se tentando atingir a erva, enquanto a aranha, vindo por trás com grande velocidade, cercou-o; no exato momento que ele arrancou a erva sangrenta do galho retorcido, ela lhe deu uma picada.
Não foi nada semelhante à picada de insetos normais, que no máximo, deixam uma marca na pele; ao penetrar seus afiados dentes — se é que posso chamá-los de dentes! Mas por falta de um termo melhor, deixarei este — no braço de Celoth, eles simplesmente o atravessaram. Meu amigo caiu ao solo, cheio de dor, o braço varado, e deixou a erva rolar pelo chão.
Com o braço que lhe restava, sacou a espada e tentou acertar a criatura do modo que podia. Entendi que não havia tempo a perder; puxei meu arco e comecei a disparar flechas em direção àquela aranha enorme. Estava, também, arriscando minha vida. Tremia tanto que errei a maioria dos projéteis, mas os que acertei lhe infligiram bom dano.
Mas ela não queria deixar sua presa; debruçando-se sobre Celoth, perfurou-o novamente, desta vez na altura das costelas, e o sangue jorrou da ferida em borbotões. Por certo atingira os pulmões, e outros vários órgãos mais. Já percebia o triste e trágico destino que teria aquela nossa aventura. Quando meu amigo, provavelmente usando as últimas forças que lhe restavam, desferiu uma espadada que decepou parte de uma das patas da criatura, ela se enfureceu mais do que nunca, e atacou-o com cólera.
Os golpes de suas enormes patas e presas eram piores do que qualquer arma que posso imaginar; abriam profundas feridas no corpo do meu pobre amigo, até que um desses golpes o atingiu na altura do peito... provavelmente era um golpe fatal; não seria capaz de sobreviver àquilo.
Em furor, continuei disparando flecha atrás de flecha, até fazê-la tombar com o derradeiro projétil, que o acertou bem no meio do que devia ser sua horrenda cabeça. Havia em seu corpo mais de quarenta flechas espetadas, quando ela finalmente sucumbiu.
Meu dedo sangrava pela fricção constante à corda do arco, dada a fúria com a qual eu disparei as flechas uma após a outra, na vã tentativa de salvar meu caro amigo daquele monstro. Mas, obviamente, falhara; corri em direção a ele, e verifiquei seu estado lamentável. Estava banhado em sangue, com a carne triturada em várias partes, e um dos braços quebrado num ângulo horrível de se ver. Suas estranhas derramavam-se pelo solo, e tinha vários furos no peito e nas costelas que o atravessavam de lado a lado. Sou obrigado a me desculpar mais uma vez; não sou capaz de seguir a descrição de tão trágico quadro.
— Leve-a... e... se és meu amigo verdadeiro... abrevia... meu... — disse, sofrendo muito, o sangue vazando-lhe pela boca e por todas as feridas enquanto falava. Entendera o que ele me pedia; queria que lhe abreviasse os sofrimentos daquela morte tão violenta, pois além de mutilado, estava envenenado. Não existe, até hoje, magia capaz de curar tantos e tão profundos ferimentos. Com dor no coração, fiz o que me pedira; transpassei-o com a espada que usara no derradeiro embate.
Por muito, essa lembrança me feriu. Me perguntava se teria agido corretamente em dar o golpe final em meu próprio amigo. Depois de muito pensar, e muito sofrer por causa dessa dúvida cruel, não cheguei ainda à uma conclusão. Mas posso dizer, com certeza, que ele teria sofrido bem mais se ficasse daquele jeito.
Recolhi a erva, motivo de toda aquela tragédia, e refiz, sozinho, o caminho que antes traçara com meu amigo. Apenas relembrava a cena, enquanto meu coração ainda batia à garganta; estava abalado, desconsolado. Havia entendido, da pior maneira, o terror do qual são capazes aquelas criaturas. Malditas sejam, até hoje as odeio. Mesmo já tendo passado tantas décadas, aquele encontro fez uma marca indelével na minha alma.
Ainda imerso em pensamentos tenebrosos, cheguei diante da bruxa, trazendo a erva sangrenta nas mãos.
— Aqui a tens — disse-lhe eu, metendo-lhe nas mãos a erva.
— E o outro que foi contigo? — perguntou-me ela, com um quê de zombaria, como se soubesse do que havia acontecido, mas fazia questão de ouvir.
— Meu amigo encontrou terrível sorte — disse-lhe eu. — Arriscou sua vida por essa erva, que tinha prometido a ti. Cumpre, agora, tua parte do combinado, e retira o feitiço de sobre seu irmão.
Ela usou uma faca que trazia à cintura para fatiar toscamente uma folha da erva, guardando o resto; e jogou as fatias no caldeirão, cujo líquido interior saiu de um amarelado para um vermelho vivo, semelhante à cor da própria erva.
— Aqui tens — disse-me ela, enchendo um frasco com aquela poção misteriosa que emanava um cheiro que lembrava muito o odor de sangue. — Dê isto à criatura transformada, para que beba, e tornará a ser o que era antes.
— E onde está essa criatura? Terei que procurar por todo o pântano, não bastasse já a terrível aventura pela qual nos fizeste passar?
Ela nada respondeu, apenas indicou-me uma direção com a mão. Passei por ela e desci as escadas, sem sequer dirigir um “obrigado”; mereceria algum agradecimento, afinal?
Evitarei narrar toda minha andança por aquele pântano, mas direi que, no final, a direção que ela me indicara estava correta. Encontrei, por fim, a tal criatura, que parecia já conformada com a vida no pântano. O haviam transformado num rato miúdo, que não poderia de modo algum atirar-se nas águas do pântano sem afogar-se. Estava totalmente preso naquela região. E falava; de modo que pude conversar com ele, e contar-lhe que trazia a poção que o reverteria à sua forma natural.
Pus-lhe o frasquinho ao alcance, e ele bebeu; uma fumaça avermelhada o envolveu no mesmo instante, mostrando que a magia fora bem sucedida. Qual foi minha surpresa, quando, do meio da fumaça, saiu um rapaz bem mais jovem do que Celoth! Fiquei totalmente confuso; como o irmão mais velho de Celoth poderia ser mais novo do que ele? Só por via das dúvidas, perguntei-lhe seu nome, e ele me respondeu:
— Chamo-me Celoth, senhor.
Eu estava aturdido! Por algum momento, fiquei apenas o olhando, admirado, tentando entender aquele mistério. Já julgava que os vapores venenosos do pântano estavam nublando minha mente. Ele, também sem entender nada, ficou apenas a me retribuir o olhar, com expressão surpresa. Aos poucos, minhas ideias começaram a clarear, e entendi do que se tratava.
Este era o verdadeiro Celoth. Meu amigo, aquele que eu acompanhara pela viagem e fora violentamente vencido pela aranha gigante, na verdade, era o irmão mais velho.
Toda a história que me contara estava invertida. Na verdade, o irmão mais jovem, Celoth, era o aventureiro que se perdera no pântano; e ele, que nunca me dissera seu verdadeiro nome, era o irmão mais velho, que arriscara a vida para trazer de volta à casa seu irmão mais novo. Tudo se tratava, afinal, dos esforços de um irmão para resgatar o mais jovem.
Por que ele não me contara seu verdadeiro nome? Por que não me contara a história tal como fora? Nunca saberei. Meu amigo se foi, e levou com ele seus segredos e motivos. Tudo que me restava, então, era acompanhar aquele jovem de volta à sua cidade, e quem sabe, descobriria algo mais.
— Quem és, senhor? — indagou-me ele, como um bom e educado rapaz, bem diferente do jeito abrutalhado do seu irmão mais velho.
— Sou um amigo de seu irmão, meu jovem — disse-lhe eu. — Passei os últimos dias com ele. Ele me falou sobre você, e sobre sua família. Vem comigo; contar-te-ei tudo no caminho, enquanto voltamos tranquilamente para Fibula.
Pensava em contar-lhe sobre a morte do irmão no caminho, enquanto conversássemos com mais calma; na verdade, não tinha forças naquele momento para dar-lhe tal notícia. Além de tudo, a imagem do meu amigo jazendo ao chão, completamente derrotado, ainda estava por demasiado vívida em minha mente.
Certamente a história não acaba aqui. Ainda há muito o que narrar, assim como narrar as coisas ainda mais incríveis que passei ao lado do verdadeiro Celoth, que acabou por tornar-se um grande amigo meu, ainda mais que seu irmão. Conheci sua família, e foi terrível a reação quando souberam que o irmão mais velho havia morrido. Mas, para encurtar a história toda, posso dizer-lhes, com alegria, que no final das contas, aos poucos, tudo voltou ao normal. A irmã mais jovem de Celoth melhorou aos poucos, deixando de culpar-se pelo embruxamento do irmão. Celoth, na verdade, confessou-me temer que ela substituísse a culpa, e passasse a considerar-se então causadora da morte do outro irmão; mas isso não aconteceu, graças aos céus.
Quanto a este humilde conto que escrevo, dedico-o à memória do meu amigo, aquele que pereceu corajosamente sob uma das mais terríveis criaturas que habitam nossa terra. Por isso, limitei-me a falar sobre ele apenas, e não sobre qualquer outra aventura minha, e os fatos que se deram após nosso regresso à Fibula. Mais tarde descobri seu nome por intermédio de Celoth; mas, como ele próprio preferiu não mo dizer, prefiro também não o escrever aqui. Mas, graças a tudo isso, pude entender verdadeiramente alguns sentimentos que, antes, conhecia apenas por livros. Pude compreender, acima de tudo, o legítimo terror do qual são capazes as aranhas gigantes que vivem em nosso mundo.
Obrigado pela aventura, meu caro e estimado amigo. Sua lembrança não cairá no olvido.
Spoiler: Texto 2O desígnio de Nornur
As estrelas cintilavam em um céu límpido azul-marinho, naquele dia frio. Mesmo a noite estando tão bela, havia uma jovem que debulhava-se em lágrimas na cidade de Carlin. Estava casada há um bom tempo e apesar da vontade de ser mãe, não conseguia conceber um filho em seu ventre.
Pensava consigo mesma: “Eu devo ser uma árvore seca... Se tivesse de conceber, com certeza já teria dado a luz pelo menos uma vez...”. Então ocorreu-lhe que, talvez, os deuses não quisessem a presentear com o dom da maternidade, mas com certeza não desistiria. Clamaria o tempo que fosse necessário para que os deuses a ouvissem:
— Deuses, por favor, ouçam o meu clamor e concedam-me a maternidade. Eu imploro. Crunor, Senhor das Árvores, faça meu ventre fértil, assim como concedeu fertilidade à todas as plantas que preencheram o corpo da mãe Tibia — como essa jovem, Núria, soluçava e não conseguia continuar a falar, procurou se acalmar e, então, teve uma ideia para conseguir alcançar o seu objetivo.
Núria limpou as lágrimas que escorriam no seu rosto e, respirando fundo, proferiu um juramento diante dos deuses:
— Deuses, é a todos que me dirijo quando profiro esse juramento. Juro que se tiver uma filha, a consagrarei para o deus que me atender. Ela cumprirá a missão que este deus a designar.
Núria levantou-se, antes estava ajoelhada em um tapete de pele de urso diante da lareira da sala de sua casa. Dirigiu-se a uma mesinha de madeira que ficava ao lado da porta da sala. Procurou, sobre a mesa, em meio à alguns papéis, penas e tinteiros, algo que pudesse ser útil para infligir uma marca, que não saísse tão facilmente, sobre a sua pele. Como não encontrou nada útil, abriu a gaveta, onde sabia que encontraria a adaga de seu marido. Seu esposo a guardava ali, para que ficasse sempre à mão. Deveria servir. Baoloth costumava mantê-la afiada, para que quando fosse caçar já estivesse preparada.
A jovem hesitou por um tempo, tendo a adaga na palma de sua mão. Lembrou-se de seu marido. Ele não ficaria muito satisfeito de ela utilizar o seu instrumento de caça para esse fim. Baoloth não gostaria de que a lâmina de sua adaga fosse encoberta com o sangue de sua amada.
Afastando esses pensamentos de sua mente, Núria fechou a mão segurando o cabo da adaga com força. O que iria fazer, era pensando também em seu marido. Não poderia permitir que ele ficasse sem descendentes. Que tipo de mulher ela seria se não lhe desse herdeiros?A jovem respirou fundo e andou até chegar à frente da lareira, voltando a ajoelhar-se ali. Não poderia fazer com que os deuses esperassem ainda mais.
Núria apoiou a mão no colo. Preparou-se, segurando a adaga com firmeza. Encostou a lâmina em sua pele pálida, nas costas de sua mão. Pressionou um pouco a lâmina contra sua carne. A jovem viu a primeira gota de sangue brotar. Uma pequenina gota do seu sangue grosso e de um vermelho intenso. A gota escorreu, percorrendo o lado da mão de Núria; alcançou o tecido branco de seu vestido. A gota sumiu e deu lugar a uma mancha escarlate no vestido da jovem. Ela respirou fundo, mais uma vez. Pressionando a lâmina contra sua pele, começou a desenhar um círculo. Várias gotas de sangue brotavam, preenchendo a ferida aberta. Escorriam pelas laterais da mão de Núria e por entre os seus dedos. Jamais teria ela imaginado que faria algo assim antes. Nem havia chegado na metade do caminho e já sentia vontade de desistir.
A sensação de estar ferindo a si mesma era, no mínimo, estranha. Era indescritível. Como podia fazer jorrar a essência de sua própria vida? Talvez tivesse de dar um pouco de sua vida, para que pudesse assim obter o favor dos deuses. Obter outra vida dentro de si. O que poderia pagar outra vida? A sua própria, o seu sangue. Núria fechou a mão com força. O esforço fez com que mais sangue jorrasse da ferida. Seu vestido estava manchado com seu próprio sangue. Como as gotas caíam repetidas vezes no mesmo lugar do vestido da jovem, acabaram por atravessar o tecido. Ela pôde sentir seu sangue quente percorrendo sua mão e, ainda, encostando em sua perna. Firme, com os olhos fechados e apertados, continuou a rasgar sua pele até que completasse o círculo. Deixou que as lágrimas rolassem pelo seu rosto e caíssem sobre a sua mão machucada. A dor física era desagradável, mas o pior era o que estava fazendo a si mesma. Sem o consentimento do seu marido... Escondida como uma criminosa.
Quando a jovem abriu os olhos e viu que finalmente tinha terminado, engoliu em seco e terminou seu juramento dizendo:
— Que essa marca seja testemunha entre mim e vós, para que eu não volte atrás da minha palavra, nem algum de vós, tendo me abençoado, volte-me as costas depois, fazendo com que perca minha filha na gestação. Dêem-me algum sinal de que o meu pranto foi ouvido e de que algum, dentre todos os deuses, irá atender ao meu pedido.
Assim que Núria terminou de falar, uma aranha, que construía sua teia no teto da casa, desceu pendurada em sua teia até a frente do rosto da jovem. Núria ficou a observando de perto. Não demorou muito e o aracnídeo começou a mexer suas pinças.
Estranhamente uma voz saiu da aranha. Uma voz misteriosa, quase que um sussurro. Parecia a voz de um ancião, pois era uma voz serena. Ouvi-la era como ouvir o soprar do vento. A voz dizia:
— Mulher, eis o sinal que pediste. Eu, Nornur, Senhor do Destino, ouvi o teu clamor. Te abençoarei para que tenhas uma filha, a qual dará o nome de Nárnir, em homenagem a mim. Ela, porém, quando chegar a hora, será provada. Terá de lutar contra as minhas lúgubres criaturas. Se for vitoriosa, permanecerá viva. Se perder a luta, morrerá. Não conterei meus servos. Pois deverá ela honrar a vida que lhe foi dada. Vida essa consagrada ao orgulhoso deus Nornur.
Núria ficou aflita ao ouvir o que o deus a dissera por último. Abriu a boca para dirigir-se a Nornur, mas foi interrompida:
— Há mais algo que devo dizer antes de partir. Também meu primo Crunor, Senhor das Árvores, ouviu a sua prece. Lhe concederá uma filha, a qual darás o nome de Clanir, em homenagem a ele. Nárnir e Clanir serão gêmeas de fisionomias idênticas. Nárnir, porém, terá olhos e cabelos escuros, como a sombra do deus que a rege. Clanir terá olhos e cabelos claros, como a luz de Crunor, deus cheio de graça e vitalidade. Às diferenciarás, também, através da marca que carregarão na mão direita. Minha serva terá uma teia em meio a um círculo, como o que tens em tua mão. Clanir, terá uma árvore no lugar da teia.
Terminando de dizer o que desejava, Nornur se calou. Núria, preocupada com o destino de Nárnir, disse a Nornur:
— Sei que talvez seja pedir demais... Mas poupe minha filha desse destino.
A voz que Núria esperava em resposta não foi ouvida. A jovem olhava a aranha, já não estava sendo mais usada para manifestar a vontade de Nornur. Assim, compreendendo que não mais adiantava fazer pedido algum, Núria conformou-se.
Estava amanhecendo. Clanir deu algumas batidas na porta do dormitório de sua irmã. Bateu com os nós dos dedos, podendo visualizar sua marca de nascença nas costas da mão: Uma Árvore envolta em um círculo. Os traços do sinal eram sempre vivos, como uma ferida recém-aberta. Clanir entristecia-se sempre que via esse sinal em sua mão. Lembrava-se de que, um dia, sua mãe sofrera tanto para tê-las, a ela e a sua irmã; de que tivera de fazer uma aliança com os deuses. Embora Crunor, seu deus, fosse um deus um tanto generoso, que não cobrava nada pela vida que tinha dado a ela, a não ser a fidelidade para com a natureza, ela preocupava-se pensando em sua irmã. Nornur era um deus obscuro. Não era tão condescendente quanto o seu primo Crunor. Ele exigiria que, em algum momento, Nárnir arriscasse a sua vida.
Clanir não queria pensar mais nessa possibilidade. Apenas estava preocupando-se com um problema que ainda não tinha vindo à tona. Poderia, ainda, adiar esse sofrimento. Afastou esses pensamentos e disse finalmente:
— Irmã, vou abrir a porta... — Clanir mal esperou por uma resposta e foi abrindo a porta enferrujada devagar.
Alguns ruídos foram provocados. A luz adentrou aquele pequeno quarto escuro pela fresta que Clanir abrira. A jovem enrugou o cenho, tentando enxergar naquela escuridão, pois aquela pequena fagulha de luz em nada ajudara.
— Venha até aqui — foi o que uma voz seca e misteriosa disse do fundo do quarto escuro. — Encoste a porta.
Clanir obedeceu ao que lhe ordenaram e, colocando-se dentro do quarto, encostou a porta atrás de si. Se antes já não enxergava, agora muito menos. Tentou andar alguns passos, com os braços estendidos à frente como uma múmia, para não bater em nada. Em vão...
A jovem tropeçou, provocou um grande estrondo... Não fosse seus braços estendidos, teria caído com a face ao chão. Tinha tropeçado em um livro grosso que sua irmã usava para manter a porta fechada.
— Ufa... Que susto... — disse a jovem aliviada. Sentou-se e ficou mirando o escuro. Mal fizera isso e viu uma luzinha acender à sua frente. Parecia ter vindo do nada.
— Quantas vezes vou ter que dizer para não ir entrando assim! Bem merecido o tombo! — disse em alta voz a pessoa que segurava a vela de onde vinha a luzinha. Puxou a orelha de Clanir, tanto que essa até ergueu um pouco o tronco, para que não doesse tanto.
— Ai! Ai! Pare, Nárnir! Isso dói! — disse Clanir, pondo a mão na orelha que a irmã puxara. Só agora tinha visto que a luz vinha de uma vela, em um pires, e que sua irmã que a segurava.
— Sou sua irmã mais velha, Clanir! Depois que nossos pais se foram, sou eu que devo te corrigir! Sua descuidada e xereta... — Nárnir estava sentada na cama. Com a mão que estava desocupada, segurou o braço de Clanir e a puxou para mais perto.
Clanir olhou por um segundo diretamente nos olhos da irmã. Os olhos de Nárnir eram negros e profundos. Desviou o olhar e resmungou.
— Estou fadada a te obedecer. Tudo porque você nasceu alguns segundos antes de mim... Não é justo...
— Conforme-se, minha irmãzinha. Cuido bem de você, não cuido? Pensa que é fácil ser a irmã mais velha? Mais responsabilidades... — Nárnir acariciava o rosto da irmã. Dirigindo a ela um olhar meigo.
Clanir retribuiu com um semblante fechado. Então, as gêmeas, depois de um tempo, começaram a rir juntas. Riam da situação. Como Nárnir era chata com sua preocupação... E como Clanir era a figura, quase perfeita, da irmã mais nova: Sapeca, descuidada, xereta com as coisas da irmã, sensível e, por vezes, birrenta.
De repente, ouviram um barulho suspeito atrás da porta. As duas se olharam, dividindo o mesmo pensamento. Quem estaria espionando um momento tão familiar?
Nárnir pegou seu cetro mágico, que estava em cima da cômoda, que ficava ao lado de sua cama. Era uma maga muito experiente. Dedicava horas e horas do seu dia à prática e leitura de magias do elemento fogo. Tinha que especializar-se na magia que era o maior flagelo das aranhas, servas de Nornur.
A maga andou até o lado da porta, onde se encostou na parede, procurando passar desapercebida. O quarto escuro a ajudava a camuflar-se. Ela vestia um vestido preto, de mangas e comprimento longos, com estrelinhas cinzas miúdas, uma capa cinza com capuz e sapatos de couro.
Clanir pegou um livro grosso, que estava empilhado debaixo da cama de sua irmã junto a outros. Pôs-se atrás da porta do quarto. Com o livro acima da cabeça, em uma pose ameaçadora, ela se preparava para quando o espião entrasse.
Nárnir ordenou:
— Entre.
Clanir puxou um pouco a porta para que o atrevido entrasse. Hegul, que acabara de chegar arrastando um enorme saco cheio de pães, estranhou a rapidez com que o atenderam. Ele nem mesmo havia batido na porta, nem chamado, e no entanto o mandaram entrar. Devia ser alguma magia nova da estudiosa Nárnir. Só podia ser.
Entrou no quarto escuro de costas, arrastando o enorme saco de pães. Como a porta estava um pouco aberta, o saco entalou. O cavaleiro puxou o saco com toda a força que tinha, forçando-o para que entrasse no quarto. Clanir abriu mais a porta. O saco desentalou e fez com que Hegul caísse sentado no chão, com o saco sobre seu colo. O cavaleiro, com sua queda, fez um barulho metálico. Estava vestido com sua armadura prateada, com sapatos de couro e uma capa vermelha. Estava sem seu elmo, apenas com o vasto cabelo longo e escuro amarrado. Seu cabelo caía-lhe pelas costas, por cima da capa.
As gêmeas aproveitaram-se da brecha de Hegul. Clanir chegou mais perto, ameaçando-o com o livro. Nárnir posicionou-se perto do cavaleiro. Colocou seu cetro quase encostado ao rosto de Hegul. Proferiu a magia de luz, para enxergarem com quem estavam lidando. Quando a luz revelou que se tratava de Hegul, amigo seu e de Clanir desde a vinda de ambas à Kazordoon, Nárnir pôs o cetro em cima da cama.
— Ah, então é você? Porque estava nos espionando? — perguntou Nárnir, olhando Hegul com um olhar desconfiado.
— Eu...Eu só queria fazer uma gentileza, está bem? — disse o cavaleiro levantando-se, alisando a armadura e sacudindo a capa para desempoeirá-la. — Trouxe pães para vocês comerem no café da manhã — o cavaleiro apontou para o enorme saco — e olha como sou recebido!
— Ah, desculpe-nos, Hegul! Mas somos duas jovens mulheres, oras...Temos que vigiar sempre! — disse Clanir, justificando-se.
Nárnir, que era mais observadora, não perdeu a chance de zombar de Hegul.
— E quem vai comer tudo isso no café? — disse Nárnir fingindo estar pensativa e dando uma olhadela para o saco. — Suponho que um ciclope e um golem? — perguntou sarcasticamente.
Hegul coçou a cabeça e, sem jeito, olhou para o chão. Tentou explicar:
— Só queria que pudessem comer à vontade...
— Irmã, coitadinho! Ele só quis o nosso bem. Pare de incomodá-lo — disse Clanir dando um empurrãozinho em Nárnir.
— Está bem, está bem...Obrigada, Hegul — disse Nárnir baixinho. Era orgulhosa. Difícil era para ela agradecer e demonstrar os sentimentos.
Ambas abaixaram-se e pegaram um pão, do saco, para comer. Clanir estendeu a mão, oferecendo um pão a Hegul. Ele sacudiu a cabeça negativamente. Saíram do quarto de Nárnir e da área do dormitório. Tinham feito muito barulho. Melhor que saíssem, assim não perturbariam mais os outros hospedeiros.
— Nárnir, tenho um recado para você — disse Hegul tentando se recordar do que havia acontecido. — Hoje, antes de eu ir falar com vocês, fui comprar pães lá na taverna da Maryza e do Jimbin. Acontece que quando eu estava vindo para cá, fui parado por uma mulher misteriosa. Nem mesmo vi o rosto dela, estava encoberto por um capuz. Ela usava um longo manto marrom.
— Fale logo, Hegul! Está me agoniando. Pare de florear — interrompeu-o Clanir, já sem paciência.
Ele prosseguiu:
— É que essa mulher se declarou oráculo de Nornur. Disse que chegou o momento de Nárnir ser testada. Não entendi muito bem... Falou que Nárnir tem que ir até as profundezas de uma das minas dos anões. Lá, ela terá que enfrentar uma das mais temidas criaturas de Nornur. O que tudo isso significa? Essa mulher é louca, não é?
Clanir olhava a irmã. Estava muito preocupada com ela. Nárnir, porém, não perdia a firmeza e apenas explicou:
— Hegul, durante todo o tempo que moramos aqui em Kazordoon e que somos suas amigas, nunca te contamos...Sou consagrada ao deus Nornur e minha irmã à Crunor. Temos essas marcas na mão — disse Nárnir mostrando a ele as costas de sua mão direita — por conta disso. O que essa mulher, que falou com você, está dizendo é que chegou a hora de eu cumprir a vontade de Nornur.
— Mas irmã...Talvez essa mulher só seja uma qualquer...Talvez não tenha nada com Nornur. Não se arrisque — pediu Clanir à irmã.
— Irmãzinha, é evidente que, infelizmente, chegou a hora. Caso contrário, como saberia ela que sou consagrada a Nornur? Que tenho que cumprir uma prova? E, ainda, que Hegul conhecia-me?
Clanir ficou sem palavras. Nárnir tinha razão. Por isso, começou a chorar. Hegul, sem entender quase nada do que estava acontecendo, procurou consolá-la abraçando-a. Nárnir perguntou:
— Hegul, o oráculo disse quando devo partir?
— Sim, quando recebesse essa mensagem... — respondeu Hegul vagamente.
Nárnir deu meia volta e dirigiu-se ao seu quarto. Clanir e Hegul foram atrás dela. Nárnir começou a bagunçar tudo, colocando em sua mochila apenas o que fosse necessário e útil em sua viagem e luta: Runas de fogo, pães, corda, pá e poções de revitalização de poder mágico.
— Não posso me esquecer de nada. Suspeito de quem será o meu adversário. Já li livros que falam sobre as profundezas das minas dos anões. Diz-se que são o lar das aranhas gigantes. Os anões que trabalham nas minas, rebelaram-se contra a sua própria gente. Apoderaram-se das minas e fizeram o que bem entenderam. Acontece que foram muito ousados. Fizeram andares muito profundos, construíram o abrigo perfeito para as criaturas de Nornur. Inclusive para uma das mais temidas. Considerada, por alguns, a mãe das aranhas.
— Irmã, eu vou com você! Eu sei que não sou tão habilidosa, mas não se esqueça de que eu sou uma druida. Posso ajudar tanto no ataque, quanto na defesa — disse Clanir decidida, limpando as lágrimas de seu rosto. Ela procurou por sua mochila e, rapidamente, juntou o que precisava. Não queria ser deixada para trás.
— Vocês só podem estar loucas. Não é tão fácil assim encarar uma aranha gigante. Há bastante tempo atrás, em uma das minhas viagens, eu fui obrigado a lutar contra uma delas. Antigamente, de alguma forma, haviam indivíduos que atiçavam as aranhas gigantes até as estradas. Nós, peregrinos, éramos obrigados a encarar esses seres medonhos. Alguns expiravam, pois essa criatura tem um grande poder de luta corpo-a-corpo, além do seu veneno e de ter a ajuda das aranhas menores. Inclusive, essa cicatriz que tenho na testa é consequência dessa luta.
— O que você sugere que nós façamos então? — perguntou Nárnir, espezinhando Hegul.
— É claro que eu exijo, não sugiro, que me levem com vocês. Como se eu fosse permitir, que duas senhoritas saíssem por aí enfrentando aranhas gigantes sozinhas! Vocês precisam de um cavaleiro, que protejam-nas enquanto lançam suas magias. É evidente que esse, cavaleiro, sou eu! — disse Hegul com altivez.
— Há, há! Muito engraçado. Como se precisássemos do seu consentimento. Quem te nomeou autoridade sobre nós? — zombou Nárnir o olhando de perto, olhos nos olhos. — Pode ir conosco, mas saiba que foi eu, quem permitiu! — no fundo, Nárnir sabia que precisava de Hegul, mas não quis dar o braço a torcer. Era conveniente que tivesse um cavaleiro para às proteger e para servir de guia. Sabia que Hegul conhecia as minas como a palma de sua mão. Ele sempre contava suas aventuras.
— Não ligue para ela, Hegul! Só está nervosa. — disse Clanir pondo a mão em cima do ombro do cavaleiro. — É bom que possamos contar com você — a druida sorriu.
Hegul retribuiu o sorriso, mas apesar da doçura e beleza de Clanir, que estava especialmente bonita naquele dia — com o cabelo louro escuro trançado e com um vestido verde —, Nárnir era quem o cativava. Como ela era indomável.
Nárnir pôs a mochila ás costas e pegou seu cetro mágico, a irmã a imitou. Saindo do quarto ela virou-se para os dois, que estavam atrás, e disse:
— Vamos, não há tempo a perder. Divido minha comida com você, Hegul. Vejo que está com a sua espada na bainha, então vamos.
Clanir e Hegul saíram do quarto seguindo Nárnir. O trio percorreu todo o caminho para fora de Kazordoon. Clanir, que era mais apegada, sentiu um aperto no coração quando deixaram para trás a estátua chamada Colossus, que ficava na entrada da cidade.
Todos permaneceram quietos pela maior parte do caminho. Hegul dava conta de todas as criaturas que eles encontravam, guiava-os em segurança até a mina em que entrariam. Apenas conversavam sobre as suas expectativas quando davam uma pausa para comer. Os três estavam pensativos. Clanir estava preocupada se a irmã seria bem sucedida. Nárnir compartilhava do mesmo pensamento. Já Hegul, preparava-se para lutar contra os anões. Sabia que adentrar assim, a morada deles, causaria uma grande revolta.
Quando chegaram diante da porta da mina, que Nárnir e Hegul supunham ser a que deveriam entrar — de acordo com os conhecimentos da maga e as aventuras do cavaleiro — Hegul ordenou:
— Fiquem atrás de mim. Os anões estranharão a nossa presença e irão nos atacar, com toda certeza. Deixem que eu cuide deles. Não os ataquem. Apenas se for preciso, Clanir, me cure.
Clanir assentiu, demonstrando que havia entendido. Nárnir não gostou muito da ideia de não fazer nada, mas ficou quieta. Não queria, a essa altura, provocar desentendimentos.
Todos desceram as escadas, passando pela porta da mina. Os anões vieram ao encontro de Hegul, que estava mais a frente, dirigindo-lhes insultos. O cavaleiro desembainhou a sua espada. Olhou ao seu redor, estudando o lugar e a quantidade de oponentes. Então, rapidamente, investiu contra os anões, ferindo-os de morte.
Logo, todos os anões estavam caídos ao chão. A terra estava maculada com o sangue daquelas pessoas. Clanir se sentiu desconfortável. Nárnir percebeu e disse:
— Não tinha outro jeito, irmãzinha. Eles não nos ouviriam. Nem ao próprio povo eles deram ouvidos. Hegul fez o que podia. Nos protegeu.
Clanir olhou para a sua irmã, lançou-lhe um olhar de quem havia entendido. Elas continuaram a seguir Hegul, que as guiava e protegia da fúria dos anões. A druida mal precisava curá-lo. Ele era um cavaleiro dedicado, treinava muito as suas habilidades. Apesar da força dos anões, não sofria tanto dano. Não a ponto de por a sua vida em risco.
Depois de algum tempo, estavam já no sexto andar da mina. Tinham se embrenhado muito nas profundezas da mina dos anões. Sabiam que logo encontrariam o oponente que tanto temiam. Isso lhes causava certo receio. A cada andar que desciam, mais teias e ovos de aranha eles encontravam, comprovando que o último andar devia ser o covil da aranha gigante e que estavam perto dele. Agora, no sexto andar, eles, curiosamente, acharam uma porta. Antes da porta havia uma placa, um aviso, de que era perigoso prosseguir. Como Nárnir não poderia escolher recuar, eles prepararam-se para o pior.
Abriram a porta, onde viram apenas um pequeno espaço e um buraco. Quando atravessaram a porta, viram ossadas de humanoides, espalhadas pelo chão. Aquela visão eriçou os pêlos dos braços de Nárnir. Adivinhava, já, o que teria que enfrentar.
Todos preparavam-se para descer através do buraco. Clanir curou Hegul. Os três alimentaram-se e Clanir tomou uma poção de revitalização de poder mágico, dada por Nárnir.
— Eu vou na frente. Vou descer e, depois de um tempinho, vocês descem. Caso tenha alguma criatura, eu já estarei protegendo-as desta — explicou Hegul.
— Não...É perigoso você descer sozinho. Não sabemos quantas criaturas estão lá embaixo. E se você precisar ser curado? Não se arrisque assim...— Nárnir estava preocupada. Depois de dizer isso, estranhou o que ela mesma havia dito. Desde quando preocupava-se com aquele cavaleiro? Talvez ele tivesse ganho o seu respeito durante essa jornada. Devia ser isso... Tinha que ser isso. O que mais poderia ser?
Hegul disfarçou a felicidade que sentiu. Era a primeira vez que Nárnir se importava com ele. Clanir deu uma piscadela para o cavaleiro, que retribuiu com um sorrisinho.
— Não precisa se preocupar. Vai dar tudo certo. Vou descer. Façam como eu disse — ordenou o cavaleiro, rapidamente, e desceu. Sabia que mesmo se acontecesse alguma coisa, tudo já tinha dado certo. Estava confiante e feliz. Tinha conseguido dobrar o orgulho de Nárnir. Aquela mulher orgulhosa...Todo esse tempo sempre ignorava os seus esforços para se aproximar dela.
— Ele vai ficar bem, irmã. Ele é forte — disse Clanir sorrindo e pondo a mão no ombro de Nárnir, que já tinha se abaixado para tentar ver através do buraco.
Quando Hegul olhou onde tinha caído, viu que não havia criatura alguma, apenas ossos espalhados pelo chão.
— Podem descer! Não tem perigo! — gritou o cavaleiro, olhando para cima.
As gêmeas desceram. Quando viram que não havia nenhuma criatura mesmo, ficaram aliviadas. Continuaram a seguir Hegul, que andava mais a frente. O cavaleiro viu que havia uma parede de teia impedindo-os de continuar a explorar o local.
— Terei que cortar essas teias com a minha lâmina para podermos passar — o cavaleiro pensou alto.
— Espere, não faça nada ainda — pediu Nárnir. — Essas teias não são estranhamente grandes? Não são de aranhas comuns... — concluiu a maga.
— Sinto que estamos sendo observados — disse Clanir com medo, se aproximando da irmã.
— Bobagem, estamos muito longe da superfície. Não deve ter outras pessoas aqui embaixo — disse Hegul, despreocupado. — Vamos continuar?
— Mas é claro...Que escolha eu tenho? — Perguntou Nárnir, um pouco receosa.
O cavaleiro partiu as teias com golpes de espada. Andou a frente. Mal havia chegado ao outro lado, separado pelas teias, e viu que algo, muito grande, se movia à sua frente. Precisava ver melhor. Usou a magia de luz que aprendera com Nárnir.
Eram duas aranhas enormes. Vinham para cima dele. O cavaleiro, tentando se defender, ameaçava-as com a lâmina, apontando-a por vezes à uma, por vezes à outra. As aranhas gigantes apoiavam-se nas patas traseiras, ameaçando Hegul com as patas dianteiras e com suas pinças.
— Não venham! — gritou o cavaleiro.
— Como assim “Não venham!”?! Alguma coisa está acontecendo. Se ele pensa que pode correr perigo sozinho, está muito enganado! Pra começar, essa missão é minha — disse Nárnir revoltada. Não conseguia admitir que Hegul cuidasse dela. Andou à frente, procurando por Hegul.
— Espere, irmã! — disse Clanir correndo atrás de Nárnir.
A teimosia de Nárnir salvou Hegul. Aranhas venenosas já vinham em auxílio das gigantes. Atrapalhavam o cavaleiro, fazendo com que as maiores pudessem chegar mais perto de Hegul para feri-lo.
Nárnir parou abruptamente, levou um susto com aquelas aranhas imensas. Clanir até soltou um gritinho de espanto.
— Você é louco? Não pense que pode me proteger, cumprindo em meu lugar a tarefa que me foi designada! — Nárnir apressou-se em pegar as runas de fogo que estavam em sua mochila. Conjurou magias rúnicas e lançou-as sobre as aranhas gigantes. Atacava também com seu cetro mágico.
As aranhas ficaram furiosas por terem sido atacadas com fogo. Pressionaram o cavaleiro, ainda mais. Este, lutava bravamente com sua espada, mas fora atingido de raspão no rosto.
Não ligou para o corte em sua bochecha, de onde escorreu uma gota de sangue. Mas alguns momentos depois, começava a atrapalhar-se e a cambalear.
— Hegul! Hegul! — chamava Nárnir desesperada. — O que está acontecendo?
— Ele deve estar envenenado. Acalme-se, irmã. Temos que ajudá-lo — disse Clanir com bom senso. Matou as aranhas menores, com seu cetro mágico, para que Hegul pudesse se defender melhor. Curou-o, passou a atacar as aranhas gigantes e disse:
— Você precisa ser forte, Hegul! Acabe com elas! Como pode querer desposar Nárnir, se você não a puder defender?! É isso que você quer? Ser fraco? — Clanir gritou para que o cavaleiro pudesse ouvir bem. Não era o seu tipo ser dura, mas não queria que Hegul morresse. Sabia que o amor que ele sentia por sua irmã o encorajaria.
Nárnir ficou perplexa. Não imaginava que Hegul a amasse. Talvez a dureza com que sempre o tratara não tivesse permitido que ela enxergasse o sentimento dele. Se arrependeu de como tratara o cavaleiro, durante todos esses anos, desde que o conhecera.
— Pare, Hegul! Recue! Nós daremos um jeito. Você já ajudou bastante! Eu admito, você fez o serviço todo! Por favor, pare! Você não precisa me provar nada! — Nárnir falava desesperada. Como via que Hegul não respondia, deu o seu melhor para ajudá-lo. Lançou o mais rápido que pode magias rúnicas de fogo e atacava com seu cetro.
Hegul, mesmo estando em dificuldades por conta do veneno, reuniu todas as suas forças por conta do que Clanir falou. Tinha que defender a sua amada, mesmo que morresse. Se fizesse isso, morreria como um homem honrado.
O cavaleiro olhou com firmeza para uma das aranhas gigantes. Ela o observava, com aquela porção de olhos. Hegul não se deixou intimidar. Foi para cima da aranha, golpeando-a várias vezes, mesmo que também levasse muitos ataques da outra. Quando ela já estava enfraquecida, o cavaleiro brandiu sua espada e fincou-a no abdômen da aranha.
Girou a espada e puxou-a, fazendo com que um líquido verde e gosmento saísse das entranhas da aranha. O líquido encobria sua lâmina e escorria até o cabo, alcançando a sua mão. Era veneno. Estava sentindo uma ardência em sua mão, mas tinha que continuar.
Virou-se para a outra aranha gigante, golpeou-a com vigor repetidas vezes. Ela defendeu algumas investidas do cavaleiro com as suas patas, mas acabou por perder algumas delas. Hegul aproveitou-se da situação frágil, em que ficou a aranha, e a atacou. Cravou a sua espada no aracnídeo, como fizera com o anterior.
Feliz, que tinha cumprido seu papel, Hegul olhou para Nárnir. Sorriu e viu que Nárnir vinha em sua direção para o abraçar. Mas tudo tornou-se turvo. Tentando andar, cambaleou. Não enxergou mais nada, tinha desmaiado.
— Hegul! Hegul! — gritou Nárnir desesperada. Segurou-o antes que caísse ao chão. Ajoelhou-se e pôs a cabeça dele em seu colo, deixando que as lágrimas caíssem em seu rosto. — Por favor, acorde! Vencemos! — Nárnir chorava e sorria ao mesmo tempo. Depois, vendo que o cavaleiro não respondia, começou a sacudi-lo. Limpou a ferida do rosto de Hegul com a manga do vestido.
— Acalme-se, minha irmã! — ordenou Clanir, que aproximou-se e abaixou-se do lado da irmã. — Ele está vivo. Seu coração bate devagar — disse Clanir que verificava a pulsação de Hegul pelo punho. — Vou curá-lo, fique tranquila — pediu Clanir. Conjurou uma magia de cura, fazendo com que até a ferida, que estava na bochecha de Hegul, sarasse. — Agora ele deve estar melhor, mas o envenenamento não deve ter passado. Preciso me lembrar de como fazer aquela runa de antídoto... Quais eram as palavras mesmo...? — Clanir pensou alto.
Nárnir, que já estava mais calma, segurou a mão da irmã com suas duas mãos e pediu, olhando-a nos olhos:
— Por favor, lembre-se, irmãzinha. Descobri que gosto...Amo esse homem... — disse Nárnir baixinho, enrubescendo. — Salve-o...
Clanir riu. Sua irmã ficou a olhando espantada. Como poderia rir em uma hora dessas?
— Ele sempre te amou. Quis sempre a agradar e você nunca deu atenção a ele. Será que ele precisava chegar à beira da morte para ser reconhecido? Seu amor é duro de conquistar hein... — disse Clanir sorrindo. — Fique tranquila, lembrei do encantamento.
Nárnir pegou, com pressa, uma runa branca em sua mochila. Alcançou-a a Clanir. Ela pegou-a e, fechando os olhos, pronunciou o feitiço, que fez com que a runa tornasse-se cinza, com uma escrita rúnica em cima. A druida não perdeu tempo. Usou-a em Hegul.
O cavaleiro, totalmente recuperado, abriu os olhos devagar. Viu o rosto de Nárnir. Ficou muito feliz por saber que ela estava bem. Olhou para o lado e viu Clanir. Então, voltando a mente do seu sono, percebeu que estava com a cabeça no colo de Nárnir, voltando o olhar para ela novamente.
— O que é isso? Será que uma certa pessoa, uma maga que estou olhando agora, estava preocupada comigo? — perguntou o cavaleiro sorrindo.
Nárnir, com o habitual orgulho, levantou-se e virou-se de costas. Deixou que a cabeça de Hegul batesse no chão.
— Eu? Eu não...Só... — a maga sempre tão eloquente ficou sem palavras.
— Deixe eu ajudar. Ela só falou que te ama, Hegul. Só isso! — disse Clanir soltando uma boa risada. Olhou para o chão, já sabia que a irmã ficaria furiosa.
— Clanir! — gritou Nárnir corando. Quem dera permissão a essa xereta para falar por ela?
— Aé? É assim? — perguntou o cavaleiro. Levantou-se e aproximou-se de Nárnir, colocando o braço sobre o ombro dela. Disse baixinho:
— Talvez, agora que já mostrei ser fiel à senhorita, pondo em risco a minha vida, — disse o cavaleiro sorrindo — essa tão orgulhosa maga, daria sua mão em casamento a esse cavaleiro apaixonado? — disse Hegul fazendo uma reverência diante de Nárnir e ajoelhando-se diante dela. Procurou o anel que tinha comprado para dar a ela. Tinha colocado dentro de sua bota. Não esperava que tudo isso fosse acontecer. Planejava oferecer esse anel a ela em Kazordoon, não em uma mina escura, cheia de ossos e carcaças de aranhas gigantes. Mas como nem tudo é como se deseja... Acontece que não achou o anel. Deveria tê-lo perdido durante a batalha.
Levantou-se, quebrando o clima romântico, e começou a olhar pelo chão. Chutava as carcaças das aranhas, até que encontrou o anel em meio a uma poça de veneno. Clanir e Nárnir não estavam entendendo nada o porquê de o cavaleiro ter levantado-se, repentinamente, sem esperar a resposta de Nárnir.
— Encontrei, está aqui — o cavaleiro pegou a aliança com a ponta da lâmina. Estava toda suja de veneno de aranha. Com certeza, Nárnir não iria querer o anel nesse estado.
— A minha resposta é sim... — respondeu Nárnir com tanta vergonha que parecia que ia explodir. Procurou disfarçar um pouco brincando:
— Só espero que não tenha que usar o anel desse jeito.
Os três riram. Estavam muito felizes. Agora, poderiam voltar para Kazordoon. Nárnir já havia cumprido a tarefa que Nornur a designara, matado a temível aranha gigante.
Não havia a matado sozinha, como imaginava que iria ser. As coisas se tornaram bem diferentes do que ela planejara. Não sabia o porquê, talvez fosse o desígnio de Nornur.
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