Depois de escrever um pouco de poesia (que você pode encontrar aqui), dedico-me ao conto, à prosa. Escrevi O sócio (inicialmente chamado Augusto e Otávio) durante as últimas duas semanas nas quais pus na pena referências pessoais que passei por alguns anos de minha vida. O conto aborda a fuga da realidade sobre uma perspectiva minha de como enfrentei esse momento; nem tudo, entretanto, que está escrito segue à risca o que passei, pois muito "distorci" para que se adaptasse ao que queria escrever e da maneira que o faria. Não sei se entenderão tudo que propus nas letras, todos os significados miúdos que conscientemente estão ali - pois muito do que há é pessoal de modo que, talvez, apenas quem me conheça saberá distinguir o porquê de certa frase ou utilização de determinada palavra. No entanto, estou aberto a responder tudo que quiserem a respeito do conto.
Por fim, peço que relevem grandes erros gramaticais, mas mostrem-nos para que eu possa corrigi-los. O texto não possui uma divisão muito boa, pois não consegui alterá-lo significativamente de modo que me agradasse. Antes meu gosto do que a boa divisão, não?
Espero sinceramente que apreciem e comentem. Boa leitura!
O SÓCIO
Olhou-se no espelho; o reflexo justo de si. Não que fosse belo - admirável aos olhares estranhos - ou alto, ou mesmo de majestoso corpo grego esculpido em mármore – era simples, e à simplicidade fazia jus. Não possuía feições marcantes, impactantes; era o tipo que se esquece o nome e a cara. Outrora fosse assim para si, para seus olhos – estes malditos embriagados pela vaidade.
Seu nome era Augusto. Ou chamava-se a si próprio Augusto, enquanto o mundo nomeava-lhe Otávio. De qualquer forma, Augusto ou Otávio possuía muitos amigos; desde os íntimos até os de puro convívio. Raro estar sozinho, mesmo no escuro de seu quarto, ou nas próprias entranhas. Augusto (e o chamo aqui assim, pois haverão de entender que Otávio havia mais de Augusto que de si próprio) possuía na carne que lhe cercava os amigos mais íntimos. Não era, pois, surpresa que Augusto passasse horas de seus dias em seu quarto, em sua vida, em sua privacidade autodestrutiva. Era um viciado. E como todo viciado, precisava de suas drogas.
Sua mãe, aquela santa, jamais acreditara na possibilidade de que seu filho fosse, na verdade, uma pessoa estranha a ela. Afinal, aquela mulher cuidara dele por anos à fio, amava-o com todas suas forças e sempre quisera o melhor para ele. Via, sim, as atitudes estranhas do filho - e ressalto que não todas -, mas sua mente beata da malícia deste mundo jamais imaginara que sua descendência fora corrompida pela mentalidade destrutiva que ardia em Otávio como chama da vida.
Mas Otávio fora corrompido, e se o fora, sofria. Sofria e sorria como se fossem duas coisas complementares, juntas. Seu sofrimento real era combustível para sua felicidade imaginária. Aplausos, amores e atenção - fecha-se a cortina de sua apresentação imaginária e um sorriso brota em seus lábios como se os sentisse ali, no ar real que respirava. Mas vale dizer que, se Augusto era ruim por transformar o surreal em algo tangível, era pior por ofuscar Otávio e seus talentos para que tomasse para si a fama que outorgara como preço final. Era o único, o único no mundo todo, que podia agradar Otávio como nem homem ou mulher haveria de agradar.
Otávio, aquele tolo, enrijecido pelo mundo cruel e sarcástico no qual fora injustamente posto, que tinha por sorte ou descuido de seu sócio momentos de lucidez plena, gemia e sorria, respirava e repetia. Dia após dia. Noite após noite. Otávio... Otávio... A ilusão lhe era agradável, mas não mais o excitava. Se antes os aplausos lhe tremia a espinha dorsal, se os gritos enlouquecidos de seus adoradores lhe arrepiava os fios dos braços, hoje sentia que, pouco a pouco, caia na escuridão interminável e real. O mundo lhe doía, lhe consumia, lhe queimava a entranha. E Augusto, aquele sádico, pronto para surrupiar para si outra parte de Otávio, sussurrava-lhe no ouvido belas palavras. Dito isso, saiba que palavras nos levam a crer e descrer com tamanha força que jamais haveremos de transcrevê-la. E aquelas palavras, concupiscentes de maneira que sua virgem mãe jamais imaginaria um dia ouvir, germinaram num solo propenso. Era, pois, Otávio assinando um contrato que tinha por finalidade extrair de si cada gota de sangue para que a assinatura, uma hora seca, jamais pudesse ser desfeita. Era, também, sua pura mãe que estranhava cada vez mais a chave fechada de seu quarto.
Certa vez, perguntara com temor divino, como se o que fosse pronunciar empesteasse o aposento de sua casa, e terço em mãos se o filho demorava em seu quarto porque se satisfazia. Otávio riu; Augusto, também. A verdade era menos prazerosa, apesar do gozo de Otávio ser maior. Com o passar do tempo, os momentos de lucidez de Otávio foram se esvaindo como fumaça passageira, sem deixar rastros. Os raros momentos que Augusto não lhe seduzia era quando estava com os amigos – amigos estes que viam sua casca, mas não o interior.
Entretanto, quer por divindade ou coincidência, sem Augusto ou Otávio preverem, acabaram por conhecer Carlinhos, aquele gajo, amigo de seus amigos. Otávio (e aqui me refiro a ele, mesmo que rendido por Augusto, pois jamais sabemos quando um lampejo de lucidez haverá de vir) reconheceu em Carlinhos algo que há muito negara em si; vida. Vida esta que vertera através de lágrimas e sangue nas tortuosas linhas contratuais de seu sócio.
Não que num piscar de olhos Otávio percebeu que cometera erros ou fizera más escolhas, mas aquela irritante verdade lhe coçava as mãos e fazia com que sua cabeça latejasse. Por vezes, lágrimas nos saem mais caras que palavras. E Otávio chorou, chorou como criança. E Augusto ao seu lado, lenço em mãos. Passaram-se ainda dias com o pobre bebendo de seu próprio vinho amargo, destilando o próprio veneno, misturando-o em si e infundindo-o em seu corpo. E Augusto ao seu lado, a taça em mãos.
Já não havia, porém, sangue que verter ou lágrima que derramar. O trabalho de Augusto estava feito, já se podia lançar mão do buquê de flores e apagar as luzes do derradeiro espetáculo. Foi Carlinhos, que visitando Otávio, chamou-o para um passeio. Era estranho todo ar que não o de seu quarto, pois há muito não sentia a brisa fria. Descobrira de Carlinhos que seus amigos o incitaram para que o chamasse para uma caminhada no bosque, longe do poluído ar da cidade. Augusto, antes prestativo em lhe estender o lenço e a taça, jazia desmaiado aos pés da cama de modo que Otávio o esquecera. Se o ar, pois, fazia bem a Otávio, os olhares que todos que por ele passavam o inquietava; não menos, entretanto, que o olhar de Carlinhos que o perscrutava e invadia seu interior com ares de piedade, o mesmo que Otávio inspirava de seu sócio. Caminharam até que chegassem numa curva onde, logo após ela, havia um lago. Pela primeira vez, à luz de uma fonte que não fosse a lâmpada de seu quarto, Otávio viu como era pálido ante o bronzeado de Carlinhos. Se este era musculoso, aquele era fino e fraco. Tal diferença se fazia de modo que quem olhasse para ambos acreditaria que fossem de raças diferentes. Antes, porém, eram de raça igual.
As flores perderam o brilho, os aplausos, o ruído. A cortina caíra e ninguém se dispusera a levantá-la, nem Otávio. A vida pulsava viva nas veias de Carlinhos, o suor expelindo-a aos ares, seu impactante cheiro nas narinas do franzino garoto, o olhar irrequieto, negro, misterioso como as coisas deste grande mundo. E escrevo aqui que não há palavras que expressem um olhar irrequieto, de homem para homem, de vida e intensidade. Virou, porém, os calcanhares e saiu em disparate; Carlinhos sorrindo.
Augusto, que ódio!, ardeu em chamas e surrou Otávio com nefasta fúria quando retornou. Depois, como mãe que ensina o filho, abraçou em amores e beijou-lhe a testa... Uma carta, um telefonema, Carlinhos insistia para que saíssem. Augusto, o louco, quieto, observativo, olhos em Otávio que gaguejava rejeições suando frio, as mãos tremendo. Não tardou para que, através de seus amigos, Carlinhos tocasse sua campainha. A mãe, inocente, atendeu assustada, quase achando que ele errara a casa, pois seu filho não recebia visitas. E como boa senhora, ordenou que o filho saísse de seu quarto e fosse olhar para a luz do sol.
Ah! que delícia. Sentir o vento, o barulho do falar, as cores e sabores deste longo mundo. Carlinhos... Olhava para Otávio como quem vê uma criança a brincar. Tudo lhe era novidade, diferente. Entretanto, nada assustou mais a Otávio do que seu reflexo no espelho. Sentia-se uma aberração próximo ao amigo, sentia-se irmão de Augusto, como se gêmeo, e sentia-se satisfeito de um prazer que jamais experimentara no escuro de seu quarto; a penugem de sua face crescia, disforme, pequena, como prenúncio de algo maior, pelo seu maxilar. Os olhos arrepiados, a mão no rosto. Quando retornou para casa, sua mãe preparara seu prato preferido. Quis chamar Augusto para que provassem, mas não o encontrou em lugar algum; na cama, apenas a prova de sua existência. E foi assim que Otávio passou sua primeira semana sem que visse Augusto. Às vezes, achava que ouvia sua doce voz chamando-o para seu quarto; outras, acreditava ver sua sombra, seu vulto, como se o levasse a algo mais grande, diferente. Seu coração disparava, o suor escorrendo a face. Mas no fim do dia, deitava-se só, a mãe beijando-lhe a testa.
Acordou com Augusto lhe olhando sombrio. Calmamente, pôs o dedo indicador em sua boca sem jamais desviar o olhar encarando-o por minutos ou horas. Depois, como amante fala ao pé do ouvido de sua paixão, lembrou-o de seu contrato, sua sociedade. E como viúvo que abandona a lápide, virou-se sem dizer mais nada. Otávio, aquele coitado, gritou seu nome, implorando. Mas desta vez, Augusto não lhe dera ouvidos. Não houve o que o acalmasse pelo resto do dia, o olhar atento a porta para a qualquer momento, em rompente, Augusto surgisse com seu belo sorriso familiar. A mãe, a seu lado, olhava consternada e piedosa do filho ansioso; não disse nada, todavia. E ficou ali, sem Carlinhos ou Augusto, num purgatório onde o pecado a sanar era sua dúvida ácida que corroía a alma que o bom deus lhe dera. Alma irrequieta, alma hesitante.
Otávio só viu Augusto quando este surgiu em sua casa sem que apontassem donde viera. Arrumava-se em frente ao espelho, pois sairia com os amigos... e Carlinhos... e Augusto lhe surgiu por trás, abraçando seu pescoço, carícias de irmão. Por um momento, Otávio não inspirou, a surpresa em seu rosto barbado. Havia tempo que não sentia o cheiro de Augusto, o toque de sua pele, o som de sua voz. Havia tempo que pendera numa escura torrente de sentimentos. Mas a surpresa transformou-se em asco, pois o cheiro que outrora lhe ludibriava agora lhe enauseava, o toque antes macio agora era áspero e o som suave tornara-se metálico. Metálico tal qual o estranho objeto nas mãos de Augusto, uma bela faca. Seus olhos lúcidos, negros e imensos como duas bolas de vazio e não existência. As palavras, Otávio jamais haveria de esquecê-las, se não!, correram de seus lábios ao ouvido do amante: “Termine o espetáculo”. E Otávio, a faca em mãos e o coração à mil, olhou-se no espelho para fitar Augusto. E viu Augusto em si e si em Augusto. E como trem que o transpassasse a verdade lhe atingiu o peito, o ar em falta: Augusto era seu sócio, o sangue no contrato jamais se desfaria. Eram eternos amantes, carne da carne, inseparáveis, intangíveis. Augusto não desaparecera de propósito, esperara o momento certo para entregar-lhe de bandeja o presente que sempre escondera, a verdade hedionda em laço vermelho. Pobre Otávio (e mantenho este nome, pois é de praxe para que se entenda a estranha simbiose entre os dois)!, aquele coitado que outrora vertera de si o que jamais Augusto o faria, aquele que se entregara de corpo e alma num negócio fadado ao desastre, retribuiu-lhe o sorriso, devolveu-lhe a faca e foi-se embora sem olhar para trás, afinal, havia um encontro com os amigos... e Carlinhos.
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