Capítulo I - Primeira História (Parte II)
Vingança
Em um limitado espaço de terra, dois importantes reinos eram vizinhos, cada um chefiado por um grande rei. Esses gigantes impérios espremiam-se entre os atributos daquela terra, cada um tentando arar mais campos do que o outro, girar mais moinhos e recolher mais redes de pesca. Inevitavelmente o desentendimento floresce. O ódio cria-se. Com ele xingamentos foram pronunciados, rótulos fixados e insultos inventados. A intolerância forja-se. Atos agressivos, superioridade, maldade, sangue e morte. A vingança nasce.
Esse é o passado daquela terra, tão velho e longínquo que poucos recordam dos motivos das desavenças. Já agora, não mais importa, gerações já foram criadas para odiar. Agora, virou lei.
Em um desses reinos, na frente do portão do castelo, encontrava-se um velho homem. Ele encarava com audácia os dois guardas reais, uma habitual dupla de uniformes avermelhados, pares de espadas e rostos juvenis. Já a dupla, via-se de frente com um esquisito ser, fino até aos ossos, pele seca, careca e completamente nu se não fosse pela sua tanga amarronzada.
- Queria falar com o rei – disse subitamente o velho esquisito – Sabe, o assunto vai lhe interessar.
- E posso saber que assunto seria esse? – disse um dos guardas do portão, mais formalmente do que sua educação permitia.
Atrás do velho, pessoas passavam ininterruptas pela rua, perdidas em seus problemas.
- Um magnífico presente, e pretendo dar ao rei se me permitirem. Mas agora, se me perguntarem qual magnífico presente seria esse, não poderia responder, o assunto só diz respeito a ele – apontou seus velhos dedos para dentro do castelo. E os guardas ficaram espantados com a pelanca que despencara de seu bíceps.
- Não quer dizer? Então não diga, na verdade pouco me importa, sabe por quê? – perguntou o mesmo guarda – Porque duvido muito que um camponês tenha algo que me interessa, e se não tem nada que me interesse, quanto mais para sua majestade. Tenha respeito, fique em seu lugar, ele é um rei. Tudo que você afirmar possuir, ele já vai ter ou poderá conseguir.
- Eu tenho que insistir – dizia o velho humildemente, sempre olhando para as botas dos guardas – se não tenho nada que lhe interessa senhor, é porque o presente não é para seu interesse.
- Saia daqui, seu saco de bosta! Pode insistir o quanto quiser, implorar de joelhos ou até espernear como uma cabrita ao tirar seu leite, que você nunca irá passar por esse portão. – sua voz era ameaçadora e alta, e seus dedos apontados para cara do velho davam peso à afirmação – Essa passagem atrás de mim é para a corte, e mesmo que em um mundo distorcido você fosse um nobre, hoje não atravessaria, o rei está indisposto. Ainda assim se isso não bastasse, hoje acordei com um péssimo humor, deixei minha linda mulher na cama com tosse, e vim fazer papel de bobo da corte em frente a esse portão, e só para quê?! Só para dar de cara com um saco de bosta que nem você, que por sinal, odiei pela primeira vez que vislumbrei o brilho errôneo de sua careca enrugada. E agora sendo sincero, mais do que fui em toda minha vida. – ele contorceu levemente seu nariz - Você F-E-D-E. Agora entendeu?! O destino me deu um sentido, concentrou tudo de merda que eu pisei hoje, só para esse momento, para nesse momento eu dizer de boca cheia. NÃO! – o grito ecoou alto nas ruas da cidade, mas ainda sim, as pessoas passavam ininterruptas pela rua, perdidas em seus problemas.
O velho nada disse, nem parecia chocado. Seus ouvidos escutaram tudo muito bem, mas seus olhos pareciam indiferentes, não piscara um instante. Sua visão concentrada abria caminho por entre os guardas e adentrava ao portão, e seus pensamentos sussurravam-lhe: “Se não fosse por esses guardas”. Como um bote de cascavel, o velho habilidosamente tira uma machadinha de suas costas, suspendendo-a no ar, na máxima flexibilidade das juntas enferrujadas de seu braço. Pobres guardas, seus músculos travaram e suas faces enviavam sinas de presa. No pouco tempo de reação que o velho lhes proporcionou, metade foi gasta aos gritos em suas mentes: “DE ONDE ESSA AMEIXA SECA TIROU ESSE TRONCO LAMINADO?!”, a outra metade foi- se embora num instante, admirando o reluzir da luz solar na lâmina. Com um brusco golpe e um corte seco, ouve-se um som oco. No chão, jazia toda ensangüentada a mão direita do velho, seu braço esguichava cachoeiras de sangue. Aliviados e abismados demais para agir, os guardas só tinham forças para berrar no reino de suas mentes: “MEU DEUS, LOUVADO SEJA. O VELHO MALUCO CORTOU SUA PRÓPRIA MÃO!”.
Dois guardas estremecendo medrosamente, um velho pálido tentando controlar a enxurrada de sangue que saia de seu cotoco-braço, e uma mão ensangüentada no chão. Agora sim, agora pessoas acumulavam em volta, formando um compacto círculo de curiosidade, interrompendo brevemente os problemas de suas vidas.
*Quinze minutos depois.
Hahahaha – a gargalhada do rei ecoava alto no salão – Sabe, quando me contaram eu não acreditei, tinha que vê de perto esse magnífico homem. – de sua aveludada poltrona o rei falava alto para quem tivesse ouvido, mas principalmente para o velho ajoelhado no centro do salão.
O salão era enorme, mas grande parte dele era ocupada pelo nada. Uma graciosa poltrona de veludo avermelhado e duas mesas baixas de madeira, esses eram os únicos moveis do salão. As baixas mesas eram recheadas da melhor comida do reino. A da esquerda exibia no centro um apetitoso ganso assado, onde variados pratos de comida o circundavam em reverência, pratos esses em que a língua seca do moribundo velho jamais teve a oportunidade de saborear. A da direita preenchia-se das mais variadas frutas, com todas suas formas e tamanhos diferenciados que a natureza possa oferecer, suas tonalidades iam do mais puro branco até ao mais corrupto negro, tornando um banquete comestível de arco-íris. As duas mesas posicionavam-se de certa forma que separavam com eficácia o indigente velho da grandeza de vossa majestade. O rei era um homem de meia idade, cabelos curtos e barba feita, uma de suas mãos repousava suavemente sobre sua tímida pança, que avolumava sua majestosa camisa branca de fina seda. Os outros integrantes do salão era um cozinheiro que equilibrava sua bandeja em cima de uma das mãos e três réplicas idênticas de um típico guarda real, dois em cada lado do velho e um ao lado do rei. E claro, um modesto velho ajoelhado.
- Fiquei sabendo que tem uma proposta para me oferecer – dizia o rei com suspeita alegria – Mas, realizando ou não a oferta, não importa, sinta-se vitorioso. Afinal, poucos nobres já estiveram aqui, nesse cômodo de minha intimidade. Mas olhe você ai, claro, sem uma das mãos, mas ainda assim, olhe você ai!
- Não é uma proposta majestade, e sim um presente – disse o velho com certa fraqueza, tentando esquecer a dor latente do ferimento de seu braço, que já se apresentava enfaixado e com o sangue contido.
- Mas com esse presente não quer nada em troca?
- Não – disse secamente – É um presente, algo verdadeiramente dado, livre de qualquer retorno obrigatório.
- É, tem toda razão, não é uma proposta. – com um grande sorriso acrescentou – Então que venha o presente.
O velho imediatamente recuou sua única mão que lhe restara, enfiando-a atrás de suas costas, desaparecendo-a totalmente da visão de todos daquele salão. Junto a ela, de mãos dadas, fora todo o dever de atenção, como se o artista principal de uma peça tivesse saído para mijar no clímax da história, e todos sentados na platéia poderiam se espreguiçar ou trocar banalidades com os vizinhos de poltrona, sem temer represarias. Por poucos segundos, livres de qualquer atenção obrigatória, todos os seres pensantes daquele lugar aprofundaram-se em seus mais íntimos desejos:
O rei deliciava-se com o futuro próximo: “Acho que vou pegar mais uma coxa daquele ganso assado”;
O guarda do lado direito do velho imaginava sonhos consumistas: “Aquele ganso assado está com uma cara ótima, daria tudo por uma bocanhada”;
O guarda ao lado do rei planejava planos maquiavélicos: “Se aquele plebeu de merda puxar algo pontiagudo e aproximar-se do rei a galope, irei impedi-lo tacando, com um ponta pé, a bandeja de ganso assado em sua direção, distraindo-o suficientemente para perfurar seu imundo coração”;
O guarda ao lado esquerdo do velho entristecia-se com seu olfato: “Esse velho fede, mesmo que o rei me oferece-se aquele belo ganso, não teria estomago para tal”;
O cozinheiro sussurrava veracidades em seus pensamentos: “Isso, devore todo o ganso assado seu reizinho metido à besta, espero que aproveite meu tempero especial”.
Os poucos segundos se passaram, e logo os cinco dedos se revelaram de trás do velho; que agora, em seus domínios, continha uma perfeita maçã avermelhada. Todos imediatamente acordaram de seus pensamentos, focando novamente a estrela da peça, que finalmente retornara de sua mijada. Agora um novo ato estava preste a começar, e nele continha, diferentemente do outro, três personagens. O misterioso velho, sua asquerosa única mão, e a que acabara de entrar em cena, que por sinal tinha tudo para ser o mais novo astro, a maravilhosa maçã.
- Esse é o meu presente – disse por fim o velho, e antes que qualquer um indagasse a coerência daquela cena, continuou – Cavalheiros, tomem cuidado, não deixem seus olhos lhes enganarem. A silueta desse presente não é importante, mas o que ela representa. Seu gosto adocicado é apenas um atrativo, um embrulho para o verdadeiro presente. Depois de degustá-la, com seu paladar, o saboroso de seu alimento, que sua real dádiva o abençoará, a imortalidade.
O silêncio instalou-se no salão. Segundos... minutos se passaram. E ainda o vácuo era a única coisa berrante daquele lugar.
O rei adorava piadas, viajava em busca de bobos da corte em reinos longínquos só para ter os melhores. Mas esse homem, em sua frente, era fenomenal. Um puro osso, quase que completamente despido, com poucos invernos ainda de vida, afirmando possuir a imortalidade entre os seus magrelos dedos. Uma piada digna de uma boa gargalhada, na verdade, já gargalhou com piadas piores; mas mesmo assim, desconhecendo o motivo, o salão ainda continuava sendo reinado pelo silêncio, onde sua fina camisa de seda grudava em seu corpo ensopado de temeroso suor.
- Imortalidade? Você disse... – a voz do rei enfraqueceu até não ser mais ouvida.
- Sim, majestade. Imortalidade. Lâminas frias perfurarão seus órgãos, retirarão seu sangue, lhe causarão gritos de dor, mas seus inimigos não lhe matarão. Nada o matará.
- Acho difícil acreditar que algo assim exista. Mesmo que fosse verdade – dizia o rei já recuperado de sua falta de voz – Quais as chances de um mero plebeu possuir algo tão valioso?
- Tanto quanto um rei – disse fortemente o velho - Plebeu é só um termo criado para representar seu status de riqueza, e essa dádiva não se consegue através dela. Na verdade, poucas das dádivas presentes nesse mundo são submissas ao ouro.
- Através do que então você a possuiu?
- Poderia lhe dizer, mas abalaria seu senso comum. E acredite em mim, você não quer sacrificar sua normalidade. Afinal, não compreenderia mesmo. Entenderia, mas não compreenderia. Meu povo difere-se muito do seu, vocês nos nomeiam de feiticeiros, bruxos ou até companheiros do diabo. Minha linhagem possui coisas que a sua procura por toda uma vida, e nunca teremos coisas que a sua obtêm, quase que por direito, ao nascer. Portanto, não tente compreender, apenas aceite.
O rei deliciava-se, inquieto e internamente, com tamanhas palavras e ousadia. Sem sombra de duvida era o melhor bobo da corte que já encontrara. Com pressa no desenrolar da hilariante conversa que presenciava, foi logo falando:
- Mesmo assim, ainda não faz sentido. Por que você mesmo não come a maçã e ganhe sua dádiva? Afinal, feiticeiro ou não, imortalidade é tentadora, quem abdicaria dela?
- Tem toda razão. Mas para mim não tem nenhum valor comparado ao que busco, desejo uma dádiva diferente, e se esse for o preço a pagar, pagarei.
- E qual seria essa dádiva? – perguntou o rei ao mesmo tempo em que lambia seus gordurosos dedos de ganso assado.
O velho fitou-o, e com olhos faiscantes disse:
- Vingança – a palavra saiu pesado de seu pulmão, e segundos foram necessários para se recuperar - O outro reino, inimigo do seu, me acusou de bruxaria. Sua população me odiou e me caçou incessantemente, no processo meu único filho morreu. Agora quero que todos eles sofram e morram refletindo o reflexo de suas vidas, que todos sucumbem pateticamente.
- Desculpe minha curiosidade – dizia o rei com audácia ironia – mas, como um presente poderia derrubar todo um reino?
- Acredi...
A imponente voz do rei foi logo atropelando as tremulas palavras do velho:
- Nem pense nisso. É de conhecimento de todos que nossos reinos não se dão bem, mas nem por um minuto acredite que vingarei por seu nome. Agradeço pelo presente, como agradeço o de todos, e iniciar uma guerra está fora de meus parâmetros de gratidão.
- Certamente, majestade. Sou velho, e velhos não mais carregam o vigor da ingenuidade – disse humildemente – Sei que a vingança é uma arte que se lapida com uma só mão. Mas ainda sim, a certeza paira ao meu lado. Reinos irão cair, e a escolha que tomará hoje será a causa. Digo-lhe a pura verdade, como minha linhagem é destinada a dizer. Eventos desordenados e metricamente prescrevidos irão dar sentido ao que falo, mesmo que nesse instante não acredite, me de um voto de confiança, minha linhagem é digna dele. Não somos amorosos e nossos atos a outras linhagens dificilmente são bondosos. Nenhum bem o meu presente lhe fará, e a impura astucia é nos destinada assim como a pura verdade. – o velho deu um longo suspiro e com face de imparcialidade completou – Mesmo lhe dizendo isso tudo, você aceitará de bom grado meu presente, mortal nenhum resiste à imortalidade. E no fim de sua vida, se for esperto o suficiente, irá compreender o início da destruição que o cerca.
Por algum motivo desconhecido, o rei não mais se divertia com a incomum conversa, talvez por culpa das palavras, que saíram afirmativamente e a sons de confiança, ou talvez pelo lustroso ganso assado não acomodar-se muito bem em seu estomago real. Sua majestade logo optou, sem hesitar, pela segunda opção. Desconsertado da um pequeno riso instintivo e diz:
- Peço como favor, quando esse dia chegar, que me faça compreender.
O velho seriamente acena com a cabeça.
Apesar do escorrimento de alguns minutos dês da chegada do avelhantado personagem, tempo esse passado ligeiramente para uns, demoradamente para outros, o salão ainda continha a mesma pintura na tela. Um cozinheiro propositalmente desleixado, três guardas padronizados, um rei relaxado e um velho ajoelhado, que apresentava uma perfeita maçã avermelhada em sua única mão levantada.
O rei, com um preguiçoso sinal, aponta para a maçã, e num instante, como se tivesse concursado para isso, o guarda próximo ao velho toma a maçã de sua ancestral mão e entrega para o rei. Ele por sua vez, já com a maçã entre seus dedos, examinava-a com ar de descrente, girando lentamente próximo a sua face, sentindo cautelosamente seu aroma proibido.
Relaxadamente aconchegado em sua poltrona, o rei, ainda girando-a habilidosamente entre seus dedos, finalmente se pronuncia:
- Ela possui o peso, o cheiro e a cor de uma maçã normal, como pode me garantir que não seja uma delas? Ou melhor – disse o rei sem ao menos dar espaço para respostas – Como você pode me garantir que sua anomalia não seja nada desagradável? Afinal, já ordenei muitos enforcamentos e presenteei muitos de sua gente com o calor das fogueiras. Como posso desencucar uma vingança sua a minha pessoa? Como posso não relevar uma maçã envenenada?
- Temo que nesse caso eu não lhe possa provar majestade. Tenho apenas uma maçã, e a receita da imortalidade requere todo seu peso. Se tirar um pedaço, por menor que seja, para testá-la, o restante será insuficiente para seu próprio uso, e logicamente a cobaia também não terá o bastante para seu sucesso. Se o pedaço tirado tiver a finalidade de testar sua pureza sobre substâncias venenosas, também falhará. O veneno pode ser de um tipo que só em grande quantidade age como um, e novamente a cobaia não obterá o suficiente, fracassando em seu propósito. Enfim, coma afoitamente se acreditou ou de para seu pior inimigo se desacreditou.
O rei nada disse. Ninguém nada disse. Não tinha nada a se disser. Aquele era o ponto final, o fim da conversa, tudo pronunciado depois daquilo seria banal e desnecessário. E todos daquele salão o compreenderam.
*Algumas horas depois.
A milhas de distância daquele lugar, no reino vizinho e inimigo, o rei empunhava firmemente uma simplória espada. Era de tamanho médio e de lâmina reta e simples, onde sua metálica cor era emitida de seu ferro. Ele a suspendia no alto para vislumbrar toda sua magnitude, e involuntariamente, apresentava-a para todos ali presentes. Apensar da simplicidade da espada, o ambiente, uma escura cúpula aonde o único raio de luz vinha de um vitral de São Jorge que se direcionava atrás do rei, tornava muito mais impactante a cena. O físico do rei também não atrapalhava, jovem, musculoso, longos cabelos cacheados do mais forte loiro, e trajado com sua prateada armadura de batalha que continha uma avermelhada capa ondulante a ventos inexistentes. Tornava épica a cena, parecia o próprio Rei Arthur segurando sua lendária Excalibur. Sua majestade sempre colocava sua armadura de batalha para pedir favores aos seus santos, dizia ele: “Sempre esteja bem preparado ao encontro de seus demônios, e duas vezes mais para os seus santos, caso eles não te obedeçam, obrigue-os”.
A cúpula, apesar de uma representativa casa divina, tinha um forte aspecto sombrio. Era bem pequena, e sua única fonte de luz era um jato luminoso que atravessava o vitral do altar, se recuasse um passo dele se encontraria cercado de trevas. O lugar era praticamente um círculo apertado de escuridão com um ponto de luz.
O jovem rei, habilmente corta as sombras com sua espada e direciona, após golpes acrobáticos, a ponta de sua lâmina para as três silhuetas de homens que se mesclavam na escuridão, mas especificamente para a do meio, que apesar de estar coberta do negro vazio, podia-se ver claramente a singularidade do indivíduo, velho, careca, magrelo e com sua pele enrugada e seca quase que toda a mostra, menos pela parte em que sua tanga amarronzada cobria. Uma de suas mãos lhe faltava e seu cotoco enfaixado repousava em sua magra coxa, enquanto a única mão que ainda possuía cobria seu olho esquerdo, que apesar do esforço, mostrava um grave vazamento de sangue.
- Então, deixe-me entender – dizia seriamente o rei – Você arrancou seu próprio olho, só para me presentear com essa magnífica espada? – Instintivamente todos naquela cúpula olharam de relance para o corpo sem vida que jazia no chão frio, corpo esse que pertencia a um grande cachorro, que por sua vez pertencia ao rei. Era um lindo dálmata, apesar do seu olhar vazio e de sua língua seca para fora, ele continuava encantador, um pouco mórbido, mas um mórbido encantador.
- Sim – disse secamente o velho, que ainda tentava impedir o vazamento de sangue com sua única mão.
- Em nome de Deus, quem arrancaria um de seus olhos só para me presentear, sem ao menos desejar algo em troca?
- Peço desculpa, talvez tenha-me expressado mal, e por isso não tenha me compreendido. Desejo muito algo em troca, só apenas reconheço que isso está além de suas posses. Que vossa majestade e essa espada, são apenas os primeiros flocos de neve a se desprenderem, antes de uma avalanche.
- E vale à pena perder a metade de sua visão por esse algo?
- Vale. O que eu procuro, quando o encontrar, apreciarei da mesma forma com apenas um só olho. – disse o velho, e prevendo a próxima pergunta continuou – Procuro por vingança. – seu único olho faiscou em contato com essas palavras – O reino inimigo do seu, me acusou de bruxaria demoníaca. Como penitência, alimentaram uma fogueira com a carne de minha esposa. Escapei por pouco.
Com um pequeno balançar vertical de sua cabeça, e expressões faciais de aprovação, o rei falou:
- Sabe, apesar de não entender seus planos, admiro sua força de vontade em vingar a honra de seu ente querido, também faria tudo em meu alcance se estivesse em seu lugar. Mas furar o próprio olho ou desfazer de uma espada tão magnífica, – novamente todos ali presentes instintivamente olharam para o encantador corpo sem vida do dálmata – não sei se teria coragem, e olha que de todos os adjetivos que meus inimigos me descrevem, corajoso é o mais habitual.
- Tenho certeza que se possuísse vingança em seu coração, teria coragem.
- Bom, sinto muito, mas terei que interromper nossa conversa, ainda tenho muitos afazeres, incluindo implorar favores ao santos. – com um movimento de mão, o rei ordenou que as duas silhuetas levassem o velho.
- Certamente, majestade – disse o velho enquanto ia sendo escoltado para fora da cúpula.
Finalmente só. O rei mais uma vez maravilhou-se com a espada que empunhava, imaginando quanto poder lá dentro continha. A imagem do seu cão veio de supetão em sua mente, e amargamente as lembranças de minutos atrás lhe pegaram de surpresa. Lembrava com exatidão as palavras proferidas do velho: “Lhe dou a espada mais poderosa de todas, não a mais afiada, e sim a mais mortal. Qualquer ser vivo que for perfurado por essas lâminas, não importando sua onipotência, falecerá perante ela”. Com tamanho arrependimento, relembrou o seu ato irreverente em resposta. Ele jogou-se de joelhos ao lado do seu frio animal e afagando sua têmpora, sussurrou melancolicamente em seus pensamentos: “Mas foi só um arranhãozinho”.
*Vinte e quatro horas depois desse dia.
O rei Leonor, possuidor da maçã imortal, mandou guardá-la junto com seus maiores tesouros. Temeroso o bastante para prová-la e pouco descrente para desfazê-la.
O rei Juan Carlos, proprietário da poderosa espada, a mantinha todo tempo ao lado de sua coxa, dentro de uma improvisada bainha. Incentivado pelos seus conselheiros, o jovem rei ordena uma massiva fabricação de espadas e armaduras, maculando em sua mente uma futura guerra, acreditando finalmente possuir uma força em que o reino inimigo não dispunha.
*Um mês depois daquele dia.
A informação vaza, o murmuro cresce, e logo o boato ganha vida nas ruelas das cidades. Todos comentavam sobre os hóspedes que os dois reis receberam, um anjo ou um demônio, dependendo da versão que lhe contavam, presenteando-os com magníficos tesouros. Uma maçã que oferecia ao desfrutador a imunidade da morte, e uma espada que concebia ao empunhador a mortalidade de qualquer vida.
O rei Leonor, aflito por roubo pelo crescente boato, trancafia isolada sua maçã numa sala, seguramente fechada por grandes travas em que ele era o único possuidor das chaves.
O rei Juan Carlos, sabido do boato da imortalidade do rei Primeiro, cancela qualquer investida de guerra contra o reino inimigo.
*Cinco meses depois daquele dia.
O povo acostuma-se com os divinos presentes, e comparações começam a surgir do tempo atual com o do antigo. Cria-se por brincadeira o termo dp (depois dos presentes).
O fascínio do rei Leonor pela maçã aumenta, começa a visitá-la regularmente.
O rei Juan Carlos orgulha-se de sua poderosa espada, exibi para todos que possam enxergar.
*Sete meses depois daquele dia.
Cria-se uma nova era naquela terra, popularmente os reinos novamente são batizados. O Reino da Maçã e o Reino da Espada.
O rei Leonor, que antigamente era descrito como um sábio e experiente estrategista, hoje em dia, é apontado como o rei Leonor, o imortalizado.
O rei Juan Carlos, que antigamente era reconhecido pela sua coragem, bravura e imprudência, hoje em dia, é chamado de o rei Juan Carlos, o empunhador da morte.
*Um ano depois daquele dia.
Novas superstições e lendas são criadas pelo povo daquela terra. No Reino da Maçã, cria-se o costume de chás de cascas de maça, para a cura de qualquer enfermidade; alguns chegavam inalar vapores de água fervente com polpas de maça, acreditando expulsar espíritos e exorcizar demônios. No Reino da Espada, cria-se a fobia de tal objeto, qualquer morte inexplicada e instantânea era de autoria do espírito mortífero que rondava em volta da famosa espada; alguns chegavam a desfazer de todas suas armas, com medo delas chamarem a morte para dentro de seus lares.
O rei Leonor começa visitá-la diariamente, fica isolado e trancafiado em sua sala, admirando as voltas de sua bela maçã. Às vezes arrisca uma leve cheirada ou uma tímida lambida em suas curvas.
O rei Juan Carlos, com sua espada em punhos, sente-se o homem mais forte entre todos. Começa a empunhar e rodopiar sua lâmina mortal imprudentemente, muitas das vezes, por cima das cabeças de seus criados, tudo para uma bela apresentação de batalha.
*Dois anos depois daquele dia.
Sua amada e querida rainha Beatriz, começa a notar as frequentes escapadas de sua majestade Leonor. Toda madrugada o rei deixa sua calorosa cama para visitar sua mais nova amada, a maçã. A rainha tira satisfações. O rei se irrita. Acontece a primeira briga, durante anos, do casal real. O ódio fagulha.
O rei Juan Carlos, por um pequeno descuido de sua destreza, causado talvez por um dia ruim, arranha o braço de uma jovem serviçal, ela cai instantaneamente morta no chão. Seu pai, também serviçal do castelo, chora segurando-a em seus braços. O ódio fagulha. Espertamente, sua majestade manda o pai da menina embora, temendo conviver com uma pessoa que perdera sua filha por sua causa. Família humilde, pessoas insignificantes. Caso esquecido.
*Dois anos e seis meses depois daquele dia.
A rainha Beatriz, tristemente acostuma-se com sua rotina, com sua solidão, com sua fria cama. Faz tanto tempo que não recebe um afeto, tanto tempo que não é desejada, que jurou nunca mais chorar por ele. A intolerância cresce.
O rei Juan Carlos, apesar de não demonstrar, abalou-se com a morte da jovem moça. Nesses últimos meses sua vontade e orgulho em demonstrar sua poderosa espada se esvaiu, consequentemente, sua espada pode descansar em sua bainha.
*Três anos depois daquele dia.
A rainha Beatriz conhece um charmoso nobre, nos famosos bailes da nobreza. Os dois se flertam, eles se identificam. Em resposta às atitudes do rei, ou falta delas, a rainha faz amor pecaminoso com o influente cavaleiro. A vingança nasce.
O rei Juan Carlos recebe uma visita de seu filho primogênito, dezoito anos de puro orgulho. Ele lhe conta que foi humilhado na frente de toda a corte pelo Ádila, um dos mais fortes e habilidosos guerreiros do reino, na popular disputa de arena entre os nobres. Sua intenção era desafiá-lo novamente, mas desta vez, empunhando a poderosa espada de seu pai. Com ela, Ádila teria que se ajoelhar e render-se perante ele, ou arrisca ser morto por um acidental corte. O rei, não importando mais com sua espada, lhe concede o pedido. O jovem filho sai carregando sua espada, querendo resgatar sua honra; na verdade, muito mais que isso, caminhava em busca de vingança.
*Três anos e uma semana depois daquele dia.
O rei Leonor flagra sua fiel rainha cometendo atos vergonhosos com seu mais novo amado, o nobre Fariel. Totalmente enraivecido, o rei manda prende-lo e enforcá-lo pelo seu desrespeito real, dando-lhe, por compaixão, três dias de prisão antes de sua morte, tempo o suficiente para arrepender-se de seu crime. Mas o que o rei queria mesmo, era o seu sofrimento, sua doce vingança.
O nobre Ádila descobre o imoral plano do jovem filho do rei, e proferindo: “Moleque manhoso e covarde” ao seu nome, invade sorrateiramente sua casa e rouba-lhe sua espada. Desejando ter uma luta justa, a esconde em sua residência. No seu quarto, sentado em sua cadeira e com a espada ao seu colo, alegra-se imaginando na luta do dia seguinte, deliciando-se com a possível lição que daria ao moleque insolente. Num deslize eufórico de vingança, corta seu dedão na lâmina fria da espada, e sem ter tempo de ao menos pensar em seu ato estúpido, morre.
*Três anos, uma semana e uma noite depois daquele dia.
A rainha Beatriz descrimina mentalmente a atitude do rei, e com maléficos planos amorosos sobre ele, consegue furtivamente a chave da sala que guarda a maçã. Na escuridão da noite, parte em direção a bendita sala, aquela que protegia com tanto afinco sua arqui-inimiga, com o giro de seu pulso e o estalar das trancas da porta, sequestra-a. Com passos de gato, caminha pelos corredores desertos do castelo, até a prisão subterrâneo onde seu amado aguardava sua morte. Com vingança em seu peito, presenteia o enjaulado com o bem mais precioso de seu algoz fúnebre, a maçã da imortalidade. Agora a forca não mais lhe tiraria o sono.
O serviçal naquela noite, cumprindo seus afazeres domésticos, encontra seu patrão, o nobre Árdila, sentado sem vida com uma espada em seu colo. O criado, por um raro acaso de improbabilidade, reconhecia aquela espada, já avistara antes em seu antigo serviço ao rei, a espada que matara sua filha. Vendo mais uma vitima daquela demoníaca espada, sua mente corrompe-se com uma explosão de intolerância. Envolvendo-a com um pano velho, o serviçal caminha até a margem do rio mais próximo e arremessa-a entre suas correntezas, desejando do fundo do coração que mais nenhuma alma viva tocasse naquela espada. A vingança completa o ciclo.
*Três anos e nove dias depois daquele dia.
O nobre Fariel pertencia a uma rica e influente família do reino, e seu irmão ao saber do acontecimento, começou a contratar e reagrupar guerreiros de sua confiança para atacar o castelo real e resgatar seu irmão. Mas precisava de um bom planejamento para dar firmamento a sua vingança, afinal, atacar diretamente o rei era um ato perigoso e sem volta.
A espada era leve e o pano ajudou-a não afundar, fazendo com que a forte correnteza do rio levasse a espada até ao reino inimigo, onde ficou pressa em uma das redes de pesca. Um humilde pescador a resgatou e reconheceu de imediato a espada, como todos daquela terra o fariam. Conhecendo o boato do desentendimento do irmão de Fariel com a realeza, levou-a para sua presença, com intenção de lucrar algumas moedas de ouro com a vingança alheia de outros.
*Três anos, nove dias e cinco horas depois daquele dia.
O irmão de Fariel, empunhando a espada da morte, finalmente cria coragem para sua vingança e ataca o castelo real. Seus homens abrem caminho à força até ao calabouço do castelo e lá resgata o seu irmão. Com a falsa confiança que a espada lhe deu, ele fica recuado, dando tempo para todos fugirem. A maioria dos seus homens e o próprio Fariel, carregando sua maçã, escapam com vida do castelo e a galope vão em direção aos domínios do reino inimigo. Já ele, é ferido mortalmente na fuga, e fica para trás com sua poderosa espada fazendo-lhe companhia.
O nobre Fariel, paga o preço da imortalidade pela sua vingança. Oferecendo a maçã para o rei Juan Carlos em troca de sua hospitalidade e refúgio. O rei aceita, e imediatamente devora a maçã, seu corpo responde com uma forte sensação de poder, talvez pelo psicológico ou não, o rei sentiu-se invulnerável.
*Três anos e duas semanas depois daquele dia.
Apesar dos tristes acontecimentos: a fuga do prisioneiro, o desaparecimento da maçã e a possível traição de sua rainha; o rei Leonor considerava-se feliz, pois naquele instante, deslizava seus dedos no cabo da poderosa espada de Juan Carlos. Apesar de toda sua perda, ele encontrava-se confiante, pois de algum modo que ele desconhecia, a espada saiu dos punhos de Juan Carlos e veio parar em suas mãos, fazendo com que se sentisse na vantagem. Confiante em sua superioridade, mandou um mensageiro para o reino inimigo com a seguinte proposta: “Rendição e compartilhamento de suas riquezas ou guerra”.
O rei Juan Carlos recebe formalmente o mensageiro, e sendo informado das duas propostas, escolhe sem hesitar. Afinal, apesar de receber de seu filho a notícia do desaparecimento de sua espada, ele agora continha, de algum modo que desconhecia, a imortalidade de Leonor. E com essa certeza em mente que seu grito ecoou confiante e alto de seu trono: “GUERRA!”.
Agora aquela terra estava em estado de guerra, todos os conflitos alheios de vizinhos, raças e estados sociais adormeceram, e como mágica foram direcionados para um único foco, o reino inimigo. A guerra inspira atos desonrosos em toda sua estadia, e essa não seria diferente. Começou com o ataque sangrento de uma caravana. Dezenas de pessoas morreram. Em resposta, o outro reino sacrificou dezenas de seu gado, e suas carcaças foram deixadas na margem do rio para apodrecer. Centenas morreram com infecção digestiva. Em resposta, o outro reino espalhou sal em centenas de hectares de plantação. Milhares morreram de fome. Em resposta, o outro reino organizou milhares de soldados, para a única resposta possível, batalha direta em um campo aberto.
*Quatro anos depois daquele dia.
A planície que antes era colorida de um verde brilhante e manchada com pintas amareladas de tulipa, hoje apresentava uma massiva cor metálica. Seus antigos sons da passagem do vento e da cantoria das cigarras foram abafados, hoje seu único barulho emitido era um mesclado nada afinado de metais se chocando, cavalos relinchando e tambores de guerra. Eram dois grandes blocos de soldados, cada um pertencente a um reino, no centro eles se chocavam e lutavam ferozmente um com o outro. Os grandes tambores recuados mais atrás batiam forte dando coragem e ritmo à batalha, enquanto os soldados gritavam insultos para as mães de seus inimigos ao mesmo tempo em que se defendiam e atacavam. Era uma cena de confusão, armaduras amassadas, armas banhadas de sangue, bocas espumantes de raiva, olhos cerrados de fúria e corpos sendo pisoteados. Mas para um observador sagaz, a cena simplificar-se-ia em um leque de variedades de vingança. Vingança empunhadora de pesados machados que abriam enormes fendas nas latarias das armaduras ou crânios desprotegidos, arcos vingativos que expeliam flechas afiadas com tamanha frequência que os dedos sangravam com o bater das penas, espadas vingativamente manejadas para perfurar os pontos fracos das armaduras, vingança montadora de grandes cavalos de guerra que eram treinados a seguirem em frente, mordendo e pisoteando o inimigo, não se importando com a dor ou perigo.
A guerra era um jogo feito com brutalidade e força bruta, mas suas vitórias eram sempre conquistadas com inteligência e astúcia. Um jogo de sábios jogado por ogros. Suas estratégias eram infinitas, e a variedades de elementos que tinham de ser considerados tornavam-na imprevisível. Mas, para uma que já começara e que agora não bastava de um emaranhado de homens se mutilando no centro, não havia muito do que pensar. A batalha consistia em três grandes pelotões de soldados, o do centro, o da ala direta e o da esquerda. Nesse ponto, o rei recuado mais atrás, montado em seu cavalo para ter uma visão ampla da guerra, só podia mandar reforços aos pelotões que estavam perdendo e sendo empurrados para trás, para que nenhuma linha de defesa fosse perfurada pelo inimigo. Só podiam torcer para que os tambores inflassem a quantidade necessária de coragem em seus combatentes, para que não largassem suas armas, e corressem para fora do campo de batalha, batendo em retirada. Senão, seria como caçar raposas num gramado ralo salpicado delas.
O rei Juan Carlos, em cima de seu cavalo, assistia com atenção o desenrolar da batalha. Em todo aquele enorme corpo massivo de soldados, via-se vários portas-bandeiras exibindo do alto, seus mais variados brasões de família, cada um pertencente a um nobre que continha seu próprio pequeno exército, ou mercenários que acumularam riquezas com espólios de guerras e resgates de ricos nobres capturados, o suficiente para ter seus próprios soldados. O rei Juan Carlos e alguns nobres posicionados mais atrás, notaram o oscilar da ala esquerda, sua defesa não mais agüentava o peso da onda afiada do inimigo, e foram forçados a recuar alguns passos para trás. Os nobres que ainda não entraram na guerra, imploravam para vossa majestade a permissão para reforça a ala esquerda com seus respectivos exércitos, em busca de honra e riqueza. O rei silenciosamente dizia não. Quando o brasão azul com duas estrelas caiu ao chão na ala esquerda, brasão esse que pertencia a um poderoso nobre do reino, o rei saltou de seu cavalo e deixando as reclamações dos nobres de lado, empunhou sua espada e correu em sua direção; imediatamente seu particular exército real o acompanhou, protegendo-o. Agora seu majestoso brasão real encontrava-se ondulando ao vento em meio à batalha, e seus aliados renovaram suas forças ao verem sua realeza lutando ao lado. Era uma cena rara de se ver, o rei dividindo ombradas em meio aos comuns soldados, protegendo-se atrás dos mesmos escudos e compartilhando os mesmos temores. Mas, sabido de sua imortalidade, ele nada temia, e seus inimigos recuaram sentindo a pressão do exército bem equipado da realeza.
O rei Leonor, atrás de toda aquela carnificina, avistou o brasão real entrando e subjugando a defesa de sua ala direita, um brasão imenso que mostrava um leão dourado em um fundo vermelho. Ele, sabido da potência que segurava em suas mãos, foi a toda velocidade empunhando sua espada da morte, com pretensão de finalmente dar um fim em seu inimigo e pisotear seu brasão na lama fresca.
Agora o duelo era entre o leão dourado de Juan Carlos contra o falcão de Leonor, e os dois lindos brasões guerreavam incrivelmente próximos. Os dois exércitos se igualavam e chocavam-se fortemente um no outro. Através de olhos humildes a batalha tornava-se épica, dois reis em suas belas armaduras sendo acompanhados de seus majestosos exércitos, trocando laminados ataques e compartilhando sólidas defesas. Mas a única cena realmente épica em todo esse sangue e morte, o único acontecimento digno de ser lembrado posteriormente, o único duelo merecido de se converter em belas palavras num livro ou afinadas rimas nos cantos dos bardos, seria o improvável duelo que estaria preste a ocorrer, duelo esse que só encontra par em histórias fantasiosas de heróis inexistentes. Em toda aquela confusão, um pequeno espaço milagrosamente é esvaziado no centro do combate. Cercado de morte e dor, ele timidamente permanece vazio com toda sua paz e pureza, e talvez pela ironia do destino, os dois reis inimigos encontram-se nesse espaço feito especialmente para eles pelas forças misteriosas do acaso. Cada um em seu lado na arena improvisada, e apesar deles estarem cercados pelos seus aliados, sentiam-se sozinhos, como se todos aqueles corpos combatendo em suas voltas estivessem ali só para demarca o limite da arena. O rei Leonor encara seu inimigo com olhos cerrados, enquanto o rei Juan Carlos, apesar da surpresa de avistar sua antiga espada nas mãos de seu inimigo, devolve no tom o olhar. O imortalizado e o empunhador da morte partem um para cima do outro, desferindo violentos golpes. Leonor tentava incessantemente acertar seu inimigo, enquanto Juan Carlos se desmembrava para esquivar da lâmina mortal. Não se passara nem três minutos de fúria e os dois já estavam esgotados, suas respirações ofegantes acompanhavam o escorrer do suor em suas faces, enquanto seus braços tremiam pelo peso da espada e suas mãos adormeciam pelo choque dos metais. Mas, apesar do cansaço, eles continuavam tentando ferir um ao outro, desferindo golpes vingativos sem cessar, não tão firmes e ágeis como antes, mas ainda golpes mortais. Naquela dança perigosa de espadas, Leonor totalmente esgotado, não consegue erguer a espada rápido o suficiente para bloquear o ataque da lâmina inimiga, ela penetra fundo em sua barriga e suas tripas berram de dor em resposta. Seu inimigo puxa-a rapidamente de volta, a lâmina sai faiscando da ferida de seu ventre, trazendo consigo um jato de sangue que colore o chão de vermelho. O rei Leonor, com sua poderosa espada, com todo aquele poder, encontra-se derrotado e desmoronando-se lentamente ao chão, seu gemido era baixo e seus olhos arregalados ainda lutavam com seu inimigo, mesmo que seus braços já não tivessem forças para acompanhá-los. Juan Carlos estava em êxtase, finalmente completara sua vingança, vingança essa tão antiga que nem mais se lembrava dos exatos motivos. Mas, mesmo assim, não amargava o gosto da vitória, após todos esses anos, ainda continuava doce. Juan Carlos em toda sua alegria vingativa, não percebe o movimento de Leonor, que com todas suas forças restantes, corta levemente o calcanhar de seu inimigo. Sentindo uma leve ardência em seu pé, ele caiu morto no chão antes mesmo de pensar na expressão: “calcanhar de Aquiles”. E com toda sua imortalidade, o rei Juan Carlos pateticamente morre.
Como se um encanto tivesse sido desfeito, todos notam os dois reis caídos no chão e logo vão ao seu encontro, tentando socorrê-los. O exército do leão dourado grita: “o rei está morto”, enquanto o do falcão leva o seu senhor gravemente ferido, mas ainda vivo, para longe de toda aquela guerra. Seus homens carregam-no para um lugar seguro, perto dos tambores de guerra recuados lá atrás, e para um homem em suas condições, Leonor grita fortemente:
- Me deixem aqui sozinho, voltem para lá e acabem com aqueles bastardos!
Assim, todos voltam em fúria para a batalha, deixando-o agonizando sozinho ao som dos tambores de guerra. Sem forças, ele contenta-se em sentar no macio gramado e assistir de longe a guerra. Sua ferida ainda vomitava seu precioso líquido enquanto suas pernas tentavam guardá-lo, formando uma poça em seu colo. Sua respiração era alta e a palidez dominava sua face, enquanto seus dedos pinicavam pela dormência e cada vez menos seus órgãos internos reclamavam da dor, significando um mau sinal.
O rei, afundado em sua agonia, não percebe o estranho companheiro ao seu lado que assistia de pé a guerra. Era um velho de aparência esquisita, vestia apenas uma tanga amarronzada que mostrava sua pele seca e seu corpo mutilado, uns de seus magros braços faltavam-lhe a mão e sua face revelava um orifício ocular. Apesar de sua triste aparência, o velho admirava a guerra com um grande sorriso satisfatório nos lábios. Com uma voz tranquila dirige-se ao rei:
- Parece tão calmo olhando de longe. – a repentina voz pega de surpresa o rei, e se ele tivesse forças, pularia de espanto – Sabe, olhando daqui não se vê quase nenhum movimento, e com o som alto dos tambores abafando os gritos de dores dos soldados, parece que estou olhando para uma pintura em uma tela, uma belíssima pintura.
O rei examina o estranho indivíduo de cima a baixo, e com esforço responde:
- Belíssima pintura você diz? Se isso fosse um quadro, o batizaria de caos.
- Se eu fosse o pintor, – suas palavras exibiam um estranho tom de afirmação, e fazendo uma pausa para uma rápida reflexão, continuou – eu o assinaria com nome de vingança. – com um singelo sorriso, apontou para um espaço vazio do gramado ao lado do rei – Posso sentar?
- Claro. É minha imaginação me pregando uma peça, ou você está sorrindo? – dizia o rei ao mesmo tempo em que escutava o estalar dos joelhos do velho, que se dobravam para sentar.
- Não. Não é sua imaginação.
- Ah, pensei que já era a falta de sangue afetando minha lógica. – sua voz era tremula e fraca – Sabe, não tenho muito tempo de vida, este ferimento é fatal, – o velho confirmava levemente com a cabeça – e no momento não consigo imaginar um futuro próspero para esses dois reinos, nem para o vencedor.
O vento começou a soprar forte naquele fim de dia, a paisagem amarelava-se com os últimos raios solares enquanto o gramado movia-se como ondas, conduzidas pela ventania. Aqueles dois seres sentados pareciam uma imagem borrada perdida no tempo.
- Não sei porquê. – dizia sofrido o rei – Mas, acho que te conheço de algum lugar.
- Verdade, conhece. Mas ao contrário de você, eu não te esqueci.
- Me desculpe, como rei conheço bastantes pessoas. Você por acaso seria um soldado ou morador dessa terra?
- Nenhum dos dois – disse secamente o velho.
- Então que diabos alguém estaria fazendo aqui, nesse campo de destruição, sem ao menos lhe dizer respeito!?
- Tenho um encontro marcado com uma pessoa.
- Logo aqui? Nesse momento? Por acaso, é uma promessa?
- Está mais para um favor, por isso vim. Na verdade, acho que viria de qualquer modo, não conseguiria perder essa cena. – disse o velho com um largo sorriso estampado na cara.
- Que ce... – a voz do rei some, a fraqueza domina seu corpo, sua respiração para e seu sistema entra em colapso. Com uma forte pontada no coração, o rei Leonor arregala seus olhos e com as palavras “Está mais para um favor” ricocheteando em suas memórias, ele encara o velho com olhos de entendimento, e antes de relembrar sua frase proferida a quatro anos, morre.
O velho, sentindo-se satisfeito, levanta-se do chão com dificuldade, e a passos curtos afasta-se do corpo sem vida do rei. Caminhando com passos de dança no gramado esverdeado, ele assobiava e cantarolava músicas eufóricas ao ritmo dos tambores de guerra.
FIM.
- E isso é até aonde a história conta – disse o homem na lateral esquerda da longa mesa.
Todos ainda estavam afundados no universo daquela história, suas mentes ainda trabalhavam imaginando os cinco sentidos daquele mundo criado, que agora pouco fora lacrado eternamente. Suas faces marmorizadas focavam o inexistente. As chamas das velas, inabaláveis, ainda seguiam seus próprios compassos, iluminando irregularmente com passos bruxuleantes. O silêncio era de um sono profundo, nem o salpicar dos saltos das atendentes ouvia-se mais. Como do nada, uma voz cria vida e ecoa nos contornos daquela mesa, causando um efeito de estalar de dedos em mentes hipnotizadas.
- A apenas algo que eu ainda não compreendi. – a voz vinha da escuridão, e apesar de todos não enxergarem a autora, os que ouviam imaginavam lábios carnudos e sensualidade. Continha um tom doce e suas vogais alongavam-se sutilmente.
- Então compartilhe conosco – respondeu o homem.
- O velho misterioso era mesmo um feiticeiro?
- Como não poderia? Não ouviu seus feitos?
- Ouvi. Mas todos eles, para mim, são proezas completamente possíveis para qualquer normalidade. Ninguém de fato testou a tal dádiva da imortalidade, que para mim seria a maior representação de seus poderes. Afinal, ele não passava de um velho astuto e conhecedor do comportamento humano, detentor da criatividade vingativa, e possuidor de um potente e duradouro veneno e técnicas de conservação de alimento.
- Sem dúvida, um interessante ponto de vista. Mas a história já teve seu fim, e pedirei que apenas conforme-se com a sua pergunta. Então, quem é o próximo contador? – virou e olhou firme para o espaço escuro acolhedor da doce voz – ou,
a próxima contadora?...
História de autoria de Medíocre d'medium