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Tópico: Taberna dos Ímpares

  1. #11
    Avatar de Mediocre D Medium
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    12-08-2010
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    Fala pessoal. Como de praxe, comentarei/agradecerei os comentários e lascarei outra parte de minha história.

    Suf Legend: Meu mais novo leitor, espero que tenha vida longa por estas terras. Não se preocupe, todos os comentários são bem vindos e bem aceitos, principalmente palavras de incentivo como essas.

    Ldm: Meu mais velho leitor, espero que tenha uma morte digna por estas terras. Sobre o tamanho do texto: sim... Comparado ao capítulo de um livro, é pequeno; mas em comparação com essa sessão que se baseou minha afirmação. Um texto progressivo? Pode se dizer que sim. A maioria dos enredos que se complicam e se compilam no final, possuem um aspecto progressivo. Você ler escutando música? Interessante... Que bom que acabou gostando do estilo do narrador, foi um tiro no escuro. Realmente desconfio que acabei complicando a mente dos meus leitores no final, com toda essa marcação de tempo e dos respectivos reinos.



    O tempo-espaço prosseguia, como sempre havia ocorrido, andando vagarosamente e adiante, ainda perseguindo seus instintos, rigorosamente. Seu comportamento assemelhava-se com uma fileira bovina em um matadouro, aonde esperavam pacientemente na fila da extinção. Todos eram bastante comportados, menos um bezerro irreverente, esse não se inquietava, saia e entrava no alinhamento, avançava e retrocedia na série, cabeceando e empurrando seus compatriotas pecuários. Era uma atitude única de sua linhagem, ou melhor, era algo impar na procedência de sua estirpe. Todos logo o distinguiam por isso, e apontavam (com seus olhares) o dessemelhante ao mesmo tempo em que o nomeavam, com reverência ou desprezo, ao título de:







    Taberna dos Ímpares



    Capítulo II - Justa Verdade

    O silêncio ainda predominava a taberna: todos emudeceram à espera de uma resposta. E com toda certeza haveria uma, sem nenhuma dúvida, não depois daquela proposta do homem da lateral esquerda da grande mesa, soou quase como um desafio; e pelo entender da personalidade da sensual voz, ela adorava desafios. Uma mão delicada saindo da escuridão fora a resposta, repousou suave no ombro de um dos membros que sentavam ao redor da grande mesa. Seus dedos massageavam os músculos tensos enquanto seus lábios sussurravam segredos ao pé do ouvido do escolhido. A luz amarelada das velas revelava apenas a metade de sua face: seu nariz perfeitamente projetado e seus lábios carnudos naturalmente avermelhados. A boca abria-se afetuosamente em meio aos seus sussurros enquanto mostrava timidamente o dançar de sua língua, bailando sensualmente entre o céu da boca e seus dentes. O homem, receptor da sensual voz, levantou-se silenciosamente da cadeira e aprofundou-se na escuridão, em completo estado estonteante de puro tesão. Ela educadamente sentou-se no recente lugar desocupado. Era de uma beleza contemplativa, continha negros cabelos que faziam um forte contraste com sua pele macia e branca, seus cachos caiam sobre seu ombro desnudo e peitos fartos. Seu vestido era de um extremo azul e continha um decote “v” bem ousada, revelando a base de seus seios. O tecido era de uma malha colante que sombreava perfeitamente as curvas de seu corpo, e sua saia era bastante justa. Sentada e com as pernas cruzadas, tratou logo de dizer:

    - Primeiramente, eu queria agradecer ao cavaleiro que me cedeu esse lugar, e depois desejar a todos uma boa noite – “Que noite? Pra mim é dia”, ecoou um murmúrio fraco nos confins da grande mesa – Antes de começar a narrar minha história, queria lhes informar que ela possui uma procedência realista: conta um fato real que aconteceu comigo; então nada arquitetado e dramatizado, sem finais convencionais, apenas realismo e veracidade... – João a admirava à distância, e por algum motivo aquelas duas ultimas palavras (realismo e veracidade) despertou suas antigas lembranças. Duas palavras vieram-lhe átona: alegre e descontraído. Ele não compreendia a ligação desses dois pares de palavras, mas misteriosamente suas memórias levaram-no para um dia passado de sua vida...

    *

    Era um dia alegre e descontraído. O sol quente lá no alto, cores vivas em todos os lados que olhasse, e uma brisa suave continuamente passageira, frágil o bastante para balançar cachos de cabelos, mas o suficiente para amenizar o mormaço, deixando o dia agradável; Ou como já mencionado: alegre e descontraído.

    João apresentava-se em pé, em frente a um prédio de três andares. Ele o encarava há algum tempo, e suas pernas já indagavam o quanto mais seria preciso para se decidir, com medo dela não suportar seu peso e desmoronar antes que ele tomasse alguma iniciativa. Um metro acima, seu cérebro corroia uma diferente questão: entrar ou ir embora? Estava em um grande dilema, como esteve em poucas vezes em sua vida. Por um lado, não era necessário entrar, não era uma questão de vida ou morte; para fala a verdade, viveria muito bem mesmo se não investisse naquela empreitada. Por outro lado, se adentrasse e fosse bem sucedido, aquilo transformaria sua vida, não necessariamente o deixaria mais rico, mas com certeza iria satisfazê-lo; talvez até o transformasse em um cara alegre e descontraído.

    Sem mais demora, sem mais delongas. O cérebro descartou todos os poréns e triunfante enviou um sinal para as pernas; essas, já no aguardo há algum tempo, recebeu tal confirmação com alívio, e logo propôs a andar, antes que a chefia lá de cima mudasse de idéia. Passou pela porta principal e entrou no saguão. Era um lugar de boa aparência, o chão era de azulejos detalhados, e seu interior era composto por cadeiras individuais de alumínio e plástico, e em cada canto continha um vaso com planta, das grandes às pequenas, das vívidas às plastificadas. No geral, o lugar tinha um aspecto alegre e descontraído.

    João foi logo apertando o botão do elevador, e em alguns segundos a porta abriu num barulho eletrônico. Entrou e com o mesmo dedo (já engatilhado) apertou firme o botão do terceiro andar. A porta fecha com o mesmo som e logo em seguida uma musica alegre e descontraída começa a tocar: musica clássica de elevadores de pessoas sem classe. Em meio aquele ruído musical, ele imagina seu futuro sucesso; afinal, por que não teria? Olhou para a mala de couro sintético que segurava com uma das mãos e pensou: “Ali contém uma obra prima”. “Sem dúvida a adorarão”. Já até imaginava seu reflexo sem seu costumeiro uniforme de trabalho: seu terno escuro e gravata preta. Finalmente tinha uma chance de livrar-se daquilo, de deixá-lo empoleirado em um armário empoeirado; a não ser... é claro, em dias de casamento ou enterro. Sorriu subitamente ao pensar naquilo, um contentamento solitário naquele elevador-acústico-solo-musical. “Na construção ou no término de uma vida, pode contar com seu terno!”, pensou João. Ele deslizava a mão sobre o peito, tateando os intricados fios de seu terno. “Que a verdade seja dita: será a última coisa que irá vestir. Se ainda não possui um, compre logo, a tempo suficiente de criar laços afetivos; afinal, não irá querer arrastar algo desconhecido para sua pós-vida”. Apesar de seu descontentamento com seu “companheiro além-vida”, João estava animado, já que seu possível (mais evidente) futuro emprego não exigia nenhum uniforme. Detestava uniformes. “Droga”, pensou subitamente em um instalo de iluminação, “será que a exigência da falta de um é um tipo de uniforme?”. O som eletrônico da porta se abrindo o desperta de seus pensamentos, e deixando seu introspectivo na caixa-metálica-sonora-espelhada, salta de seus domínios: territorial e auditivos.

    Agora se encontrava em um apertado corredor; portas demarcavam, em intervalos regulares, toda a extensão do caminho. A maioria era branca e apresentava-se fechada, mas algumas eram feitas de vidro, revelando pequenos consultórios detrás delas. João caminha pelo corredor com atenção, olhando todos os números em cima das portas. Parou em frente de uma delas, sabendo se tratar do número certo. A porta estava aberta, expondo um pequeno escritório. O chão era forrado por um carpete cinza e logo na entrada encontrava-se uma mesa ocupada por uma atendente, e do outro lado, em um canto, continha um sofá avermelhado e próximo a ele uma porta fechada. Mal tinha passado pela abertura e a atendente logo vociferou: -“Sente-se, vou logo te atender”. Ele obedeceu-a silenciosamente. No percurso da porta até ao sofá, viu o motivo pela qual ela não lhe atendera de imediato: estava debruçada em um livro, lendo-o afoitamente. Provavelmente nem levantara a cabeça para dizer tais palavras, adivinhando ser uma pessoa, profetizando que o ser pediria informações. Bom para ela: economizou uma olhadela. Ganhou pontos morais pelo acerto ousado. Algo que João sempre fora acostumado a fazer: usar seu “caderninho mental de pontos morais”; sempre o uso lhe entreteve, principalmente em pessoas recém conhecidas, ou, amizades descartáveis. Dava ou retirava ao seu gosto os pontos, baseando-se nos atos, personalidades ou preferências da pessoa em questão. Não era apenas uma simples mania mesquinha, ou uma psicose desvairada de seu ser, apenas era de sua natureza, não a controlava, era... do caráter humano. Sua diferença entre o resto das pessoas era apenas sua consciência, ele tinha ciência da existência do “caderno”, ao contrario do restante que o usavam inconscientemente. A maioria ricocheteia esse fato, mas se procurarem em sua biblioteca intelectual, com certeza o encontrará (provavelmente na estante “status sócias”) em letras garrafais “caderninho de pontos morais”.

    Atravessado a sala, ele deu de cara com um sofá de tamanho médio, daqueles tipos confortáveis: forrados de um plástico macio e preenchido de espuma e ar. João, confiante na maciez do assento, solta seu peso sobre ele, esse se afunda e engole o inquilino, fazendo um desagradável barulho, daqueles com tons de passagem de ar espremido por laterais moles. O som ecoa no silencioso escritório com audácia, e João, como se fosse uma criança que acabara de quebrar um vaso na presença dos pais, olha instintivamente com face envergonhada para a atendente, preparado para dizer algo do tipo: “Foi o sofá” se ela olhasse com expressões incriminadoras. Mas nada ocorria, ela ainda continuava debruçada no livro, lendo-o com disciplina. Já mais relaxado, ele suspirava aliviado na suavidade do sofá, sabendo que não lhe subtraíram nenhum ponto moral.

    Apenas no conforto de seu lugar que ele percebera a existência (na sua frente) de uma tv ligada, estava em um suporte, pendurado no alto da parede. Nela passava um programa de auditório com pessoas alegres e descontraídas. Finalmente a atendente fecha o livro e deixa-o de lado, levantando sua cabeça, chama-o:

    - Pois não, senhor? O que deseja? – dizia com um sorriso alegre e descontraído estampado na face.

    João ergue-se do ventre do sofá, e caminha até a mesa, na qual continha vários objetos espalhados: canetas, bloco de papel, clipes, etc. Mas seus olhos só procuravam por um, e regalou-se ao finalmente encontrar. O livro era fino e tinha uma capa colorida e espalhafatosa, e em seu centro continha um título chamativo que provavelmente guardava uma história com personagens alegres e descontraídos. Sua face contorceu-se levemente pelo achado, proveniente pela perda de pontos morais.

    - Tenho hora marcada com o Sr. Afonso – disse João finalmente.

    - E qual seria seu nome?

    - João de Oliveira Silva, vim apresentar meu manuscrito. – por algum motivo essa palavra soou estranho para ele, quase que ficara agarrada garganta adentro.

    - Entendo, então vo... – o telefone toca em sua mesa, um barulho alto e estridente; como se sua vida dependesse disso, ela rapidamente o atende – Alô, aqui é da editora Carvalho, em que lhe posso ajudar?

    João contorce levemente sua face, novamente derivado de uma perda de pontos morais. Ele detestava pessoas desse tipo que largavam tudo para atender ao telefone, parecia, visto por seus olhos, que anos de escravidão escassa estava sendo ameaçado por aquele simples ato. Pode parecer exagerado, mas já presenciara um interrompimento do amamentar de um recém nascido por causa desse mesmo estridente barulho; que chance as outras importâncias teriam? Lembrava com exatidão os pequenos e rosados lábios abrindo e fechando como um peixinho, buscando um bico afável, mas só encontrando o vazio do espaço. Momentaneamente sentiu pena dos bebes: esses eram mais felizes antes de tal invento.

    - E que horas estaria melhor para o senhor? – a conversa telefônica ainda continuava, e parecia que ainda demoraria alguns minutos.

    João realmente detestava isso, estava em pé com cara de tacho, prestando atenção e ouvindo a conversa alheia, esperando que essa acabe para ter a sua vez; que se lembrasse bem, sempre fora sua, e por direito. “Afinal, meu Deus, será que ninguém percebe isso?! Essa injustiça e falta de lógica?! A atendente cessara a conversa comigo (uma pessoa) que estava ao vivo, em sua frente, e que chegara primeiro, só para atender ao telefone, que logicamente continha outra pessoa na linha tentando começar outra conversa. Era algo... incoerente, era como presenciar a fileira de um banco aonde o último da fila fora atendido primeiro só por possuir uma voz alta e estridente. Era algo simples de se compreender, não precisa de muito tempo ou energia de seu raciocínio (a não ser que fosse lento). Parecia que os meliantes desses atos o faziam sem pensar, por puro costume, inconscientemente. Talvez em décadas passadas, quando o invento telefônico era jovem (uma novidade!), dava-se para compreender o impulso de atendê-lo, a expectativa e a emoção de falar através de um aparelho, quase magicamente construído; ficar à espreita... sabe, esperando o momento de larga tudo para servi-lo, era algo... eletrizante (até porque antes não possuíam toques). Mas hoje em dia, era algo surreal, algo que só se perpetuou por puro costume, passado de geração a geração. Outra coisa em comum com a escravidão; ela também só fora aceita pelo falso apropriado, pelo corriqueiro ato de subjugar sua espécie enegrecida, uma jovem descoberta de fonte energética (uma novidade!) que se tornara habitual pelo transcorrer de gerações. Mas se parassem e refletissem, iriam entender seus meios errôneos de pensar, nem iriam necessitar de muito tempo ou energia de seus raciocínios (a não ser que fossem lentos). Então, quando novamente lhe dizer que esse simples ato estremece o alicerce da liberdade, não pense que estou exagerando.”

    - Isso, senhor... Pode deixar, marcarei a... – a conversa telefônica ainda prosseguia, mas pelo andar da carruagem, ou melhor, pelo aspecto e rumo da conversa, João acreditava num fim próximo – O quê? Ah tá... É mais ou menos isso, mais me deixe explicar bem como funcio...

    “Porra”, pensara raivosamente João. Ele encontrava-se em níveis alarmantes de raiva e frustração. E o pior daquilo tudo nem era o tempo perdido ou a atmosfera deteriorativa de ruído televisivo ao fundo, era o jeito da atendente ao tagarelar no aparelho. Ela conversava fogosamente, como se papagueasse deitada em sua cama, cacarejando fofocas com suas amigas bovinas, e o pior era o modo como enrolava seus cachos encaracolados em meio às suas balelas. Parecia (para João) que ela o fazia de propósito, só para cutucá-lo em sua profunda malignidade; claro que sua cólera perturbava seu bom senso, ela não iria tão longe; mais ainda sim, não tirava o crédulo dele em sua provocação. Indicava (para João) que ela o desafiava a tomar alguma atitude, como se ela estivesse imune de sua protestação, como se a lei Maria da Penha a protegeria de sua revolta. “Cada vez mais sua fúria aumentava, cada minuto de espera, cada enrolar de cabelo, até que a agonia fora demais para suportar: explodiu em pura ignorância. “PORRA”, gritou João numa erupção ao mesmo tempo em que batia forte na mesa. A atendente pulou para trás num alto grau de desespero; o telefone voou sabe-se-lá-aonde. Fora um susto daqueles, em que poucos já presenciaram; era curioso como um simples “PORRA” bem dado, vindo das entranhas de sua aflição e sem sinal de aviso, pode ser aterrorizante para o acompanhante ao lado. E João mal tinha começado. “QUE SE FODA A PORRA DO TELEFONE, EU CHEGUEI PRIMEIRO”, ele berrava e agitava os braços no ar. A atendente esbranquiçava-se num pálido moribundo. “ELE TÁ NUM LUGAR CONFORTÁVEL, EU NÃO”. Ele deu uma pausa para pegar fôlego, e durante os segundos de seu reabastecimento a encarava ameaçadoramente. “VAADIIAA”, gritou vagarosamente e espumante, já recuperado de seu fôlego. “MESMO QUE ELE FOSSE O PRIMEIRO. MESMO QUE ELE ESTIVESSE LIGANDO DO CÚ DE SEU PAI. ELE NÃO PODERIA TE AGREDIR POR FAZÊ-LO ESPERAR”. João inclinou-se sobre a mesa e com os punhos cerrados disse anémicamente: -“Eu posso””, pensou João. Claro que toda essa cena não ocorrera de verdade (atenção nas aspas!), apenas na imaginação eufórica utopiana de sua mente. Nenhuma agressão ou insulto realmente ocorreram, João não era esse tipo de pessoa, mas demonstrava um leve sorriso ao imaginar toda aquela cena, um sorriso alegre... nada descontraído é verdade, mas um sorriso alegre.

    O barulho do telefone sendo desligado o desperta. Como se não tivesse acontecido nada, a atendente retorna sua antiga conversa, tão antiga que já até perdera o ritmo e alinhamento.

    - Onde estávamos? – disse com um sorriso alegre e descontraído.

    - Estávamos... – “Eu não sei você, vadia, mas eu estava preste a te socar.” – Eu dizia que vinha para demonstrar meu manuscrito para o Sr. Afonso.

    - Ah, é mesmo. Bem lembrado. – com uma mão apontou para o sofá avermelhado – Pode sentar-se e aguardar, irei anunciar sua chegada. – seus olhos focaram na porta fechada ao lado do sofá-engolidor.

    João novamente retorna para seu mais novo íntimo amigo, e deixa-o mais uma vez abocanhar quase que por completo seu corpo. Novamente o mesmo barulho desagradável escapa de suas costuras, mas não se importou dessa vez, não ligava mais na perda de pontos morais; estranhamente a necessidade em mantê-los está diretamente ligado para quantos a pessoa à sua volta possui. E ela já tinha estourado sua cota. Já confortavelmente sentado, retorna a vislumbrar o programa de auditório com pessoas alegres e descontraídas. De lá via-se a atendente discando o ramal do telefone do Sr. Afonso, que provavelmente se encontrava entocado na sala atrás de suas costas. Dava-se também para ouvir um murmuro baixo, vindo da sala, baixo o suficiente para que não compreendesse uma palavra, mas alto o suficiente para saber que se tratava de uma conversa: ele estava recebendo outra pessoa naquele momento. A atendente disca o número. O telefone começa a tocar alto e estridente do outro lado da parede. João pressionava a mandíbula para cada pulsar do aparelho. Desejava com força: “Não atende, por favor. Respeite a conversa e o homem em sua frente!”. Os toques eram fortes e seus intervalos eram misteriosamente alongados. “Não atende, não atende”. Seu coração parecia um tambor africano rugindo em seu interior, para cada toque, para cada expectativa. “Deus, por favor, faça ele não atender”. Sua mão fechava-se com força e sua testa escorria um letárgico suor. “Não atende, não atende, NÃO ATENDE!”... “Alô”, disse uma voz fraca e tremula da outra sala, mas atingindo como um soco o tímpano de João. “CARALHO”, gritava no refúgio de sua mente. “SE FUDE. FILHO DUMA PUTA”. Ele estava psicologicamente cansado, sem forças para impedir seu “eu lírico” agressivo. “ENFIA ESSE TELEFONE NO CÚ... NO CÚ”. João via-se subtraindo mentalmente pontos morais do Sr. Afonso.

    - Sim, era só isso. Ele está esperando o senhor aqui fora – dizia a atendente ao telefone – Tá bom, eu o aviso. – ela o encara ao mesmo tempo em que bate o telefone – Ele já vai lhe atender – disse com certo aspecto confiante e vitorioso em sua voz.

    - Está bom. “Vadia”, pensou gostosamente.

    A atendente novamente afunda-se nas páginas de seu livro. O murmuro novamente volta a ecoar da outra sala. João novamente volta a assistir televisão. Ou melhor, volta a olhá-la, pois não prestava sequer alguma atenção no programa: estava mergulhado em seus profundos pensamentos. Não acreditava que estava se expondo daquela maneira; sempre escrevera e criara histórias, mas nunca tentou publicá-las, nunca fora em busca de elogios, apenas o seu já bastava... sempre bastou. Mas agora era uma outra questão: era dinheiro. Seu salário não dava para cobrir suas despesas extras; então... precisava ser aprovado, precisava que seu livro fosse publicado. Claro que se está editora não aprovasse, sempre teria outras, muitas outras. Só que ele sabia de seu temperamento, ele se conhecia muito bem; se essa não publicasse, não teria vontade de tentar a sorte numa outra. Essa chance era tudo ou nada.

    Minutos se passaram, trazendo hora. Horas se foram. O sol corria sobre o céu azulado e limpo. O programa de auditório com pessoas alegres e descontraídas chegou ao fim. “Graças a Deus”, pensou João. Reality show com pessoas alegres e descontraídas tomou seu lugar. Minutos se passaram, acarretando a hora. Horas partiram, revelando o brilhar fraco dos raios solares do pôr-do-sol. Estava ali há bastante tempo, sentia-se como um moribundo em decomposição esperando algo acontecer; lembrou-se, por semelhança, de sua infância. Ele sempre saia para pescar com seu pai, horas a finco para pegar um punhado de dourados; um clássico programa pai-e-filho, a não ser pelo fato que ao invés de comê-los, vendiam no mercado de peixe da cidade; não eram chegados à carne de peixe, e para seu pai era um desperdício devolvê-los ao rio; tinham que lucrar de algum modo, e se não era forrando suas panças, era acumulando verdinhas. Claro que era uma concorrência desleal, seus dourados eram pequenos e mal desenvolvidos perto da pescaria dos grandes barcos pesqueiros, suas redes devastavam a abundancia dos cardumes, ganhando a regalia de selecionar os bem dotados (mutantes) para as vendas. Mas seu pai nunca ligara, sempre dizia que o segredo da venda não estava no peixe, e sim no modo de vendê-los. João estava em plena nostalgia, esse lugar, o seu agora-presente, assemelhava-se bastante com a sua infância: essa quietude solidão, esse mormaço estagnado do tempo. “Droga”, pensou João decepcionado, “Sempre detestei pescaria!”.

    O tempo continuava correndo, dentro da sala e para o resto do mundo, mas particularmente para João esse se arrastava em sua desnutrição, movia-se sofridamente entre os segundos. Quando tinha chegado ao limite, onde sua esperança não bastava de algo atirado e espremido no chão, onde o apodrecer de sua carne sobre o sofá não era mais uma ilusão, quando sua mente já sentia-se eternamente prejudicada pela programação da grade televisiva, a porta da outra sala abre e sai em disparada um homem, desaparecendo no corredor. O irritante toque telefônico chacoalha novamente na sala, assustando para valer o João. A atendente rapidamente apanha o objeto infernal.

    - Aham, entendi – dizia a atendente – Irei mandá-lo entrar. – desligando-o, dirigiu-se para João – Agora pode entrar, ele te aguarda.

    Com um salto o João escapa do acolhedor sofá e dirigi-se para a porta. Ele estava preocupado, era finalmente a hora da verdade, era... tudo ou nada. Um forte mal estar começa assombrá-lo, um sentimento gélido dominava sua espinha enquanto seu estomago revirava-se e seu intestino contraia-se: querendo liberar seus restos fecais. Com mãos suadas, finalmente gira a maçaneta e adentra.

    A sala era minúscula, menor do que a anterior. Uma mesa de escritório e três cadeiras eram tudo que nela cabia. Sr. Afonso o aguardava sentado em sua poltrona, atrás de sua mesa. Com apenas um passo, João caminhou da porta até as duas cadeiras vazias que se encontravam em frente à mesa. Sr. Afonso já o esperava com a mão estendida e um sorriso alegre e descontraído em sua face. Era um homem pequeno e gordo, daqueles sem pescoço; sua cabeça era perfeitamente arredondada e seu coro cabeludo mostrava uma grande cratera de calvície, mesmo tentando esconde-la com fiapos molhados penteados para o lado. João estendeu sua mão e o cumprimentou em resposta. Balançando-a no ar, ele pronunciou com respeito e firmeza:

    - Prazer, Sr. Afonso. – disse João.

    - Prazer é todo meu, Sr. João.

    João sentou formalmente em uma das desocupadas cadeiras, repousando sua mala de couro sintético em seu colo. Só após de se sentar que ele deu conta do ruído da tv ecoando naquela minúscula sala, vinha detrás de sua cabeça e provavelmente estava pendurado no alto sobre um suporte. Nela ainda passava o reality show com pessoas alegres e descontraídas.

    - Então – disse finalmente o Sr. Afonso – A primeira impressão foi boa, gostei do tema base de sua história, achei muito interessante, isso se for igual ao que me passaram previamente. Claro que ainda não tem nada decidido, terei que ler todo seu manuscrito antes para ver o público alvo e coisas do gênero. Mas, antes que você me passe, me diz mais sobre seu projeto.

    Era a hora da verdade... era agora. Todas as horas perdidas esperando e todo o transtorno ocorreram só para ele estar aqui, nesse momento. “Venda seu peixe, João”, ecoava a voz de seu pai ironicamente em sua mente. “Mas venda bem, venda como um verdadeiro pescador”. Lentamente destrancou sua mala de couro sintético. “Não tem nada de errado, é a lei da vida. Venda seu peixe!”. Abriu a maleta e de lá tirou um bloco de folhas grampeadas. “Exagere os atributos se for necessário. Mas, VENDA SEU PEIXE!”.

    - Bom – disse João – Não sei sobre o público alvo, mas minha história é sobre... – uma música ecoou na salinha interrompendo sua linha de pensamento. Ela vinha da tv, e mostrava que finalmente o reality show com pessoas alegres e descontraídas tinha chegado ao fim, e que o documentário das sete iria começar. Sr. Afonso silenciosamente abre a gaveta e pega o controle remoto, com um simples movimento troca de canal, deixando-o sintonizado em um filme sobre casos amorosos de pessoas alegres e descontraídas.

    - João? – perguntou Afonso – É sobre...?

    - Ah, desculpe. Bom, como ia dizendo, não sei sobre o público alvo, mas minha história é sobre... – João não conseguiria esquecer, e não esqueceu; era algo surreal, não acreditava que tinha presenciado aquela cena. Instintivamente sua cara contorceu-se pela perda de pontos morais. Triste... justamente quando iria começar um programa realista, onde o faria pensar, ele muda de canal. Seu desejo era debater e questionar aquele ato até descobrir o obscuro motivo dessa incoerência, mas acabou deixando pra lá, já conhecia muito bem esse tipo de resposta.

    João joga seu manuscrito de volta na sua maleta e a tranca afoitamente. Com um salto levanta de sua cadeira e caminha de costas na direção da porta ao mesmo tempo em que dizia:

    - Desculpe, Sr. Afonso. Não é sua culpa, você me parece um cara legal e tudo mais, mas somos pessoas diferentes, não vai rola. Eu é que estou no lugar errado. Então... tô indo embora.

    João passa em disparada pela porta sem olhar para trás, cruza o corredor para nunca mais voltar. Entre suas alternativas de tudo ou nada, ele escolhera satisfatoriamente o nada. Sua história não seria publicada mesmo. Afinal, nela não existia nenhum personagem alegre e descontraído, e seu público alvo era para os que não trocavam de canal no horário do Documentário das Sete.

    *

    ... apenas realismo e veracidade. – desperta finalmente o João, acordando novamente na taberna depois de uma longa recordação. A mulher ainda pronunciava com sua voz suave e sensual. – Espero que todos apreciem a veridicidade de minha história, assim como... – “Não se preocupe”, pensava João reconfortante, “Aqui ninguém é de mudar de canal no horário do Documentário das Sete”. - ... assim como eu admiro. Que todos se comportem para um bom entendimento e uma boa lembrança... – João olhou desconfiado para sua volta, contornando com o olhar todo o território da grande mesa. Riu satisfatoriamente, e em um chiado interior sussurrou: “Relaxe, dificilmente um telefone tocará nesses domínios”. – O título é...


    Autoria de Medíocre d'medium

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  2. #12
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    Atrasadão, seu post tá quase fazendo aniversário

    Taí um capítulo que mostrou um pouco das insanidades do personagem e um aspecto mais humano, menos animal, como o dos outros capítulos (ou não).

    Acabou me cansando pela vasta quantidade de pirações do cara e da exploração contínua da mente dele, o que é, de certa forma, um ponto positivo.

    Essa intercalação entre o personagem e o enredo, entre o presente e o passado, entre o real e o irreal (ou não) conferiu um dinamismo agradável ao texto; afinal, eu mesmo já sentia falta do foco nos personagens. Por exemplo, eu tinha a impressão de que essa "contação" de história acabaria priorizando demais as histórias — óbvio — e de menos o personagem, que seria um mero figurante no cenário descrito.

    Não gosto disso, porque João acabou passando certo carisma, de modo que seu passado, sua vida e seus pensamentos com certeza me interessam. Correção: o aprofundamento nas características humanas me interessam.

    Aliás, personalidade difícil, hein?

    E é disso que falo: João é um cara que eu posso associar com algo, com algum lugar, com alguma cultura; acabo partilhando de seus pensamentos, suas ideias, sua visão de sociedade e do ser humano.

    Bom, novamente, as boas colocações e descrições que (acho!) me acostumei; e incrivelmente acabo rindo muito de muita coisa, o que, geralmente, não condiz comigo.

    Só um detalhe: gostei muito da descrição da moça. Ficou sensual, mas não vulgar; interessante, mas não bizarra; bela, mas não careta; enfim, por aí vai...

    Acho que não me alongarei mais.

    Abraços e até o próximo.


    "Este tem sido o problema dos místicos. Alcançam o Definitivo, mas não podem relatar aos que lhes vêm após. Não podem relatá-lo a outros, que gostariam de ter essa compreensão intelectual. Tornaram-se um com o Definitivo. Todo o seu ser o relata, mas a comunicação intelectual é impossível. Poderão dá-lo a ti, se estiveres pronto para recebê-lo, poderão permitir que o alcances, se também o permitires, se fores receptivo e aberto. Mas as palavras não farão isso, os símbolos não ajudarão, teorias e doutrinas não serão de uso algum."

  3. #13
    Avatar de Hiz
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    Vc me surpreendeu com essa historia! Quando comecei a ler e vi que era uma historia do cotidiano achei que não fosse ficar empolgado com ela, mas me enganei! Senti um pouco de depressão ao ler a introdução, mas acho que era esse o efeito que vc buscava xD,

    Vc escreve muitíssimo bem mas tem algumas coisas que devem ser mudadas, algumas frases estão muito exageradas na norma culta e isso torna o texto pesado e cansativo, expressões como "globo ocular" deveriam ser substituídas por olho, mesmo que pareça mais pobre torna o texto mais próximo do publico.

    As comparações foram muito bem aplicadas e as características do João muito bem desenvolvidas continue assim e vc poderá até ter um futuro como escrito profissional !
    Estou aguardando as outras partes



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