Capítulo II
O luar pálido banhava as planícies outrora cheias de vidas com a sua opulência lânguida. Os gramados amarelados e secos estavam em tons de branco fantasmagóricos, as árvores projetavam sombras hediondas e qualquer coisa que ousasse se mexer seria imediatamente denunciada pela claridade excessiva. Apesar disto, espessas nuvens arroxeadas cobriam os demais astros do céu, deixando apenas uma abertura para que a lua reinasse absoluta, como deveria fazer sempre. Os ventos que vinham do norte uivavam ao colidirem com as paredes cinzentas e altíssimas do Castelo de Zamoht, deixando aquela noite do mês chuvoso ainda mais assustadora. Dentro da gloriosa edificação que situava-se sobre um morro há alguns metros da cidade em si, o silêncio prevalecia. Todos pareciam estar dormindo. Pareciam.
Na Torre Oeste, a mais alta e notável de todas elas, havia uma janela hexagonal que deixava clara a vista para o sul, em direção à cidade. A torre, construída em forma de cilindro e terminada em uma ponta abrupta vermelha, era considerada o símbolo máximo do reino de Zamoht. Isso se devia ao ocupante principal daquela torre. Este agora conversava com seu fiel amigo, que observava o mundo que dominava através da janela.
- Suas ambições perturbam-me. – Disse o ser reptiliano oculto nas sombras do ambiente interno do último andar. Aparentava ser imenso, com garras afiadas e uma pele escamosa. A única coisa certa em suas feições eram dois pontos vermelhos faiscantes: os seus olhos. Ele falava com uma lentidão nefasta, pronunciando cada palavra com um sibilo cortante. Sua voz provocava arrepios. – Sempre soubemos que fazíamos o correto, caríssimo, mas creio que seu último movimento foi tenebroso demais. Temo que a derrocada dos Dyton não seja o suficiente para pagar pelo mórbido sacrifício que tivemos de fazer.
- A queda dos traidores foi apenas o princípio, Aranak. A verdadeira batalha chegará quando expandirmos nossos domínios. – Hitreak falou sem encarar o outro. Seus olhos amarelados estavam fixados em um determinado ponto no horizonte, aparentemente invisível naquele momento. – Iremos subjugar as terras que vão além do oceano infinito, e depois ainda todas as que estiverem mais longe. Teremos todos os solos tocados pelos sóis sob o nosso domínio.
- Falas com uma convicção tão indubitável que quase acredito que possa ser verdade. – O ser misterioso não piscava. – As terras que existem além do oceano, se é que existem de fato, são enigmáticas demais para termos qualquer certeza. Aqueles que as buscaram nunca tiveram êxito. Não sabemos o que pode-se achar lá.
- Meu bom amigo... – Hitreak virou-se para encarar o interlocutor, esvoaçando o longo manto vermelho-sangue que usava. Sua armadura de prata tilintou quando moveu-se. – Há de convir que minhas razões são suficientes. Meu povo sofreu nas mãos daqueles de Dyton durante incontáveis gerações, desde que esta terra é organizada e comandada pelos homens! Nossa glória foi jogada ao chão, nosso nome foi motivo de piadas. Nosso comércio não bastou para eles, nossa guerra não lhes provocou o medo. Não havia outra saída. Cedo ou tarde seriam eles que bateriam em nossas portas com lanças e espadas nas mãos. Apenas adiantei o inevitável. A talvez tivéssemos falhado se não fosse assim.
- Sim, sim... Tudo que disseste faz um certo sentido, caríssimo. – Aranak falava sem mover um músculo, parecendo uma estátua draconiana. Mal parecia respirar. – Vós humanos tendem ao erro. Era de se esperar que a cobiça fosse surgir um dia. Aliás, deveriam vós ter preparado-vos para esta possibilidade mais cedo. De qualquer forma, está correto quando diz que seria inevitável. O desejo de ampliar suas terras seria mais forte do que a própria razão, do que os valores cultuados pelos deuses. Mas sabes tu que iniciou um movimento perigoso nesse interessantíssimo jogo.
- Tudo que fiz e faço é em nome de meu povo. – Ele virou-se mais uma vez, indicando a nem tão distante cidade de Zamoht. O que outrora fora uma vila sem poder era agora um suntuoso reino que espalhava-se pelo vale. Os campos de cereais eram notáveis, os pastos para o gado idem. A área urbana era a maior que já se vira em Aladfar. Quem via Zamoht não imaginava o sangue que fora derramado para deixá-la daquela forma. – Nós merecíamos essa terra. E merecemos mais. Nós somos a verdadeira essência dos homens. Os que nasceram aqui são os herdeiros do legado de Fänar, e não aqueles que pisaram em Dyton. Aqueles traíram nossa índole quando idolatraram outros deuses. Aqueles cuspiram em nossa fé quando ergueram suas bandeiras em nome de Woso.
- Tomas cuidado com tuas palavras, Hitreak. – A voz de Aranak assumiu um caráter mais obscuro do que de costume. – Tudo que sais de tua boca voa pelos céus. E pode chegar aos ouvidos errados. As más mentes podem entender-te errado.
- Que importância isso tem? O que realmente interessa-me é que meu povo crê no que digo. E meu povo irá apoiar-me até o fim, se tivermos um dia de chegar a um.
- Tua ambição ainda será tua derrota. Como teu conselheiro, devo alertar-te disso. Começaste a cavar a tua cova quando, mais de uma década e meia atrás, mandaste aquele cavaleiro naquele cavalo atrás dos fugitivos de Dyton. E aprofundaste ainda mais teu descanso eterno quando não os mataste, mas sim os capturaste e deixaste como escravos.
- O sangue deles não era digno o suficiente de manchar a espada do Cavaleiro Negro. De qualquer forma, consegui o que queria, não? Todos aqueles que sobreviveram ao Cerco de Dyton voltaram, e todos eles foram presos em nossos domínios. Muitos morreram desde então, mas os que ainda restam trabalham como podem para pagar a dívida que seus antepassados devem. Mas isto foi há muito tempo. Desde então, nunca mais ouvi nada do Cavaleiro. Deixe esta história morrer.
Aranak emitiu um grunhido baixinho, um sinal de desolação.
- Tu devias saber melhor do que ninguém, Hitreak... Que o Cavaleiro Negro sempre retorna para cobrar sua recompensa. E sabes tu que não é com o teu ouro que pagarás.
O Grande Rei de Zamoht assentiu brevemente, encarando a cidade com mais força do que nunca. Era seu maior orgulho e ele sabia que todos os pecados que cometera seriam perdoados pelos verdadeiros deuses quando ele morresse, pois tudo o que fazia era em nome dos humanos fiéis. Foi arrancado de seu curto devaneio quando a pálida luz da rainha dos céus sumiu, mergulhando as terras de Aladfar no escuro. Hitreak ergueu os olhos para o alto, sentindo um longo calafrio dançar pela sua espinha quando seus olhos pousaram no disco lunar.
Estava vermelho.