Cachorro Louco
Gosto de lutar com os caras grandes, geralmente são uns covardes metidos a valentões. Estão acostumados a bater, mas não sabem apanhar. Se assustam fácil quando percebem que não vou amarelar e sigo aguentando porrada na cara, devolvendo de acordo. Como dizem: quanto mais alto, maior a queda. Também não tenho medo de chutar joelho, dar pedrada, furar o olho e, se cair, bicar a cabeça. Filhinho-de-papai malhado em academia quer brigar na rua pra se mostrar pra namoradinha e pros amigos, mas comigo não tem chance. Entro pra arrancar sangue, não estou nem aí pra fazer média. Depois que entrou, só sai quebrado, ganhando ou perdendo vai lembrar da minha cara.
Nasci levando porrada de todo lado, o mais novo dos irmãos, então já estou acostumado. Sei que quem é grande bate e quem é pequeno abaixa a cabeça e torce pra aquilo durar pouco. Durou até os 10 anos, depois disso peguei um pedaço de pau de mais ou menos um metro e mandei meu pai vir com o cinto. Se a paulada não chegasse na hora, ia vir quando o filho da puta estivesse dormindo, bêbado, com alguma piranha. Ele sabia disso e nunca mais levei um tapa em casa. A cara que fez na hora foi a revelação, um puta dum covarde, estava louco pra bater mas corria de medo de levar o troco. Até hoje saio caçando de noite só pra ver essa expressão de novo, quanto maior o camarada, mais gosto me dá.
Não apanhava em casa, mas continuei tomando surra nos internatos. Como sempre, quem estava por baixo torcia pra acabar logo e ir cuidar das feridas. Foi nessa época que decidi ser o homem de gelo. Nada me afetava, nem as porradas, nem as humilhações, nem a porra do trabalho comunitário com as senhoras burguesinhas, fingindo que estavam fazendo alguma coisa pelos pobres. Festa com caviar e vinho branco pra arrecadar dinheiro pra comprar arroz e feijão pra comunidade. Aquilo não me afetava, nem ter que ficar servindo bandeja pra aquelas dondocas sem nada o que fazer. Será que não tinham nenhum homem pra fodê-las? Eu não ia ligar de arrancar suas calcinhas perfumadas e mandar ver. Mas o homem de gelo não se importava nem com isso. Estava ali passando o tempo, fazendo hora até chegar a minha hora.
A única coisa que me tirava do sério era o dia das mães. Não tinha homem de gelo nesse dia, alguém sempre acabava se dando mal. Inevitavelmente eu, e já que ia me foder mesmo, não me importava de arrastar mais um comigo. Todo mundo tinha mãe nos internatos. Um bando de cabecinhas raspadas e uniformes cinza, levando porrada e pedindo desculpas sem nem saber porquê. A gente era igual na maior parte do ano. Mas no dia das mães não dava pra segurar a onda. Chegavam as mães pra visitar seus filhinhos, um burburinho de vozes femininas, afagos e palavras de carinho. Como não lembrava da minha mãe, achava uma puta injustiça esse dia. O primeiro babaca que cruzasse meu caminho ia receber o troco, e estavam me devendo muito, então a coisa ficava feia.
Da última vez escolhi um camarada do último ano, grandão e retardado. Todo feliz de ir falar com a mamãe. Como era bem maior do que eu, chamei pra uma briga de compassos. Terminou com um compasso enfiado no pescoço e chorando com medo de morrer. Não morreu, só que acabei expulso mais uma vez. Já não tinha muito lugar pra eu ir que não fosse mais parecido com uma cadeia do que com um colégio. Não reclamo de nada, o meu talento pra arrumar confusão não me trouxe só problemas, acabei arrumando esse emprego de leão-de-chácara, assim que saí do reformatório.
É engraçado porque só de olhar um sujeito com o meu biotipo, mais pra corredor de maratona do que segurança, com camiseta de apoio, já balançam de medo: ou estou armado ou sou campeão de vale-tudo. Mas sempre tem um playboy bêbado querendo aparecer, trato esses de acordo, esculachando legal. Já estou com uns 3 B.O.'s nas costas, mas não vai dar em nada, o patrão livra a cara do pessoal da segurança, ele tem os contatos certos. Também se der estou pouco me fodendo.
Trabalho num inferninho de Copacabana, hoje em dia ninguém chama de inferninho, é boate ou night-club. Mas a porra é um puteiro mesmo, não ligo de dizer. Trabalho bom, de 22 às 6 da manhã, deixam beber a vontade, só que não bebo, e as moças são gente fina. Umas fodidas que nem eu, mas com bom coração. Sempre tem uma ou outra não vale nada, isso a gente pode falar de qualquer um, em qualquer profissão.
É bom ser o homem de gelo nesse ambiente, me poupa trabalho e dor de cabeça. Tem um segurança aqui da equipe que acha que estou dando em cima da namorada dele. É polícia, se acha demais e espalha por aí que é de grupo de extermínio. Fica com raiva porque já percebeu que estou cagando e andando pra isso, e que se precisar afogo a cabeça gorda dele no vaso sanitário bem recheado da merda fedorenta dos gringos que vem pegar nossas putas. E a garota do cara é puta também, vai entender a mente humana. Pra gringo pode dar, pro fodido aqui não pode. O pior é que já comi mesmo, mas não quero roubar a mulher de ninguém. O homem de gelo não está nem aí, um dia vou morrer, só não vai ser pra um bosta que nem esse.
Nesta noite o patrão chegou todo animado com um negócio grande que estava quase fechado, parece que ia rolar uns filmes pornôs pro mercado japonês. Então juntou a equipe e chamou os mais chegados pra comer umas putas no São Conrado. Coisa estranha sair de um puteiro pra comer putas em outro, mas achei que era tipo um dono de restaurante que vai jantar fora pra variar. De qualquer jeito, folga é sempre bem-vinda. Ficaram os novatos tomando conta do movimento, que era fraco em meio de semana. Até foi bom sair dali porque o clima estava bem deprê, só uns 3 ou 4 gringos tomando uísque batizado e pagando chá preto pelo preço de uísque pras meninas.
No carro, o único sóbrio era eu, até o motorista estava chapado, mas o desgraçado dirigia melhor de cabeça feita do que careta. Dizia que tinha aprendido a dirigir fumado de maconha, então só pilotava doidão, senão nem lembrava onde era a embreagem. Falou assim mesmo, “pilotar”, se gabava de ser piloto de provas de um grupo de dublês de cinema. Se era verdade ou viagem do cara, não tentei descobrir. Além de mim, foram o polícia, que era chapa do patrão, e o patrão. Acho que os dois tinham feito academia da PM juntos, ou ele pagava propina há tanto tempo que acabou fazendo amizade, sei lá.
Estava ouvindo as teorias do piloto quando quase atropelamos um cachorro vadio atravessando a rua, uma mistura de pitbull com vira-lata, com cara de faminto. Não foi culpa do motorista, o cachorro apareceu do nada, só os olhos brilhando na noite. Podia ser um gambá, ou uma cotia, só deu pra saber o que era porque, apesar do esporro da freada e do cavalo de pau, o bicho parou e ficou encarando o carro. Era como se ele é que fosse nos atropelar, e não o contrário. Pensei: Mas que filho da puta de coragem esse aí. Ia comentar quando o polícia sugeriu:
_Bora nos divertir um pouco, pegar o cachorro e soltar lá no quarto das moças. Vai ser uma zona no clube.
Achei a maior idiotice. Primeiro que não ia ser engraçado, depois que o clube já era uma zona, no sentido literal da palavra. O bicho podia cagar tudo, ia acabar mordendo alguém e devia estar cheio de sarna. Quem é que se diverte fazendo uma porra dessas, parecia um daqueles moleques de filme americano. Resumindo, já estava quase mandando o cara tomar no cu, quando o patrão me surpreendeu:
_Beleza, mas vai ter que soltar na cama da tua garota, quero ver se tem peito de encarar a patroa_ O chefe falava rindo, cheio de cachaça, com a boca toda mole. Por isso que não bebo, o álcool transforma o homem num babaca completo, sem capacidade de raciocinar nem de se defender. Já o polícia era um babaca sem precisar de aditivo nenhum, nasceu assim, com a bunda virada pra lua dos babacas.
_A matriz tá em casa, essa é a filial, o playground, saca?_ Tudo naquele cara me deixava puto, só estava inteiro ainda porque era útil pra contenção na boate e o patrão é quem decidia quem ia rodar e quem ficava vivo pra contar a história. Todo mundo riu da piadinha, eu não ri, mas ninguém ligava porque nunca ri de nada mesmo.
Decididos a pegar o cachorro, saíram o motorista, o polícia e o patrão. Saí por último, sem saco nenhum, torcendo pro bicho fugir correndo dali e melar aquela palhaçada. Mas o cão era teimoso, arreganhou os dentes e estava pronto pra arrancar o braço de qualquer um que chegasse perto invadindo seu território, mesmo que fosse aquele lixão onde a gente estava. Não dava nem pra se mexer perto da fera, quanto mais conseguir pegar no colo e colocar no carro. Aquela porra não ia dar certo.
Tentaram jogar um casaco em cima do animal, que destruiu o pano como se fosse papel. Ele espumava, podia estar com raiva ou só puto da vida. O motorista não queria ser mordido e a situação começou a ficar perigosa: no meio da confusão o patrão acabou de um lado, o polícia do outro e o motorista e eu mesmo perto do carro, esperando pros malucos desistirem daquela façanha sem sentido e todos voltarmos pra casa. Só que agora o bicho se sentia acuado no meio dos dois, e ia atacar um a qualquer momento. Se pegasse a jugular, era um abraço.
_Mete logo uma bala nesse merdinha e vamos embora, já estragou a brincadeira_ o patrão falava arrastado, bêbado, mas com a adrenalina dando uma chacoalhada nas ideias.
Não dei tempo pro meganha pegar a arma. Empurrei o motorista, que caiu de lado, sentado no capô do carro e não se mexeu. Acho que nem estava respirando nessa hora. Depois fiquei parado na frente do polícia. O gordo suava, levou um baile do cão. Era bem mais alto do que eu, devia pesar uns 120 quilos, mas já tinha derrubado caras maiores e bem melhores do que ele. Não tinha medo na minha cara, não tinha nada pra se ver na minha cara, e o polícia se cagou do que ia acontecer. Ainda fez que ia sacar a arma do coldre quando gritei:
_Não vai matar o cachorro não, caralho! Tá achando que estou brincando?
Eu não estava brincando mesmo. E quando falava sabiam disso, só não estavam entendendo porque o homem de gelo tinha resolvido tomar partido pela primeira vez em toda sua vida. E o partido de um cachorro louco de rua, que devia estar cheio de sarna e bicheira. Ainda ouvi um último argumento do patrão como se fosse uma punhalada:
_Presta atenção no que tu tá fazendo, cuspindo no prato que come.
Porra, era o fim da picada. Aquele filho da puta do caralho ainda achava que estava me fazendo um favor de pagar um salário de merda e me mandar fazer o serviço sujo que não tinha coragem de fazer por conta própria. Eu sou o lixeiro, o limpador de latrina, o mal necessário, o pedaço de merda que não desgruda do sapato, e iam ter que me engolir, não estava ali pra conversa fiada:
_Vou cuspir é na tua cara quando estiver no chão, seu veado, depois de dar um jeito em você.
Foi só dar um passo pra frente e não deu tempo de pensar mais nada, o polícia ficou feliz de meter um balaço na minha cabeça enquanto eu discutia com o chefe.
A cabeça caída no meio fio, os olhos vidrados fitando o vazio e o cachorro passando. Ia gostar de saber que tinha salvado a vida do cão. Pelo menos por mais um dia. Mas eu já estava morto nessa hora, o homem de gelo tinha bobeado e aberto a guarda. O mundo não perdoa quem dá mole desse jeito. Não reclamo, essa foi a vida que levei e, mesmo apanhando dela desde o dia que nasci, deixei muito osso quebrado pra se lembrarem de mim.
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