Galera, sumi por uns tempos por que estou novamente revendo a história, mas enquanto isso vou postar a que já estava escrita.
Capítulo 10 - Ferumbras
Não podia ser. Alguma coisa tinha de estar errada. Como estariam, naquela cela da prisão thaiense do Campo Santo, reunidos Lynda, Arieswar e o homem misterioso que a atacara na igreja na noite de Fechar de Estações? Não podia ser verdade!
Mas era.
O olhar desde aquela noite causara insônia a Pepelu estava novamente cravado em si. Olhos profundos, penetrantes, capazes de furar até uma rocha, faziam o mundo do arqueiro girar, enquanto que algo gritava em sua cabeça. Por um momento ele achou que fosse desmaiar, mas Arieswar segurou-o firmemente pelo pulso e evitou que Pepelu caísse para trás.
- Se acalme, Pepelu. – falou ele sendo a própria voz incapaz de passar segurança – Está tudo certo.
Está tudo certo? Como ele podia falar isso? Se havia algum lugar em toda a terra de Tibia e em todos os mares de Sula em que nada estava certo era ali.
O que é que estava acontecendo afinal? Essa era a pergunta que Pepelu mais queria fazer caso a voz conseguisse sair de sua garganta. Enquanto isso o sujeito da igreja ia tirando seus olhos penetrantes de cima de Pepelu, aclamando um pouco o arqueiro, mas deixando claro que o havia reconhecido. Agora seus olhos repousaram em Arieswar, e ao cavaleiro perguntou, na mesma voz rouca que o arqueiro já ouvira:
- O que este garoto está fazendo aqui?
- Está comigo. Veio me acompanhar.
Pepelu agradeceu a todos os deuses que o homem não voltou a encará-lo. Desde que ele se virou para Arieswar parecia que o ar havia voltado a ser respirável.
- Há alguma coisa que eu possa fazer por você, Pepelu? – perguntou o cavaleiro.
- Ignore-o, Arieswar. – falou o homem dos olhos profundos. Pepelu gelou – Dou um estalar de dedos para que esse infeliz suma daqui imediatamente ou sua alma vagará pelo Grande Vazio ainda hoje.
Pepelu sentiu os cabelos da nuca arrepiarem-se. Precisava da chave. Por Banor, só isso que ele precisava.
- Vi que ele prefere morrer. – sibilou o homem.
Sem opção, Pepelu decidiu não contrariá-lo e subiu as escadas o mais rápido que pôde, tropeçando em metade dos degraus. Lamentava-se demais pela chave, por Diogo e até mesmo por Arieswar, embora, no seu íntimo, o arqueiro não reclamaria se o cavaleiro fosse pro inferno naquela noite. Apenas agradecia por ter saído vivo.
Arieswar, o homem e Lynda ficaram observando aquela cena até o barulho dos passos de Pepelu e dos novos gritos dos prisioneiros cessarem por completo.
- Então, onde estávamos? – perguntou Arieswar.
O homem cruzou os braços e se endireitou para retomar com o guerreiro da corte a conversa interrompida pela chegada de Pepelu. Muito além dum olhar atormentante, ele evocava um poder inexplicável, que parecia emanar de todo o seu esguio corpo; começando das cicatrizes no seu rosto até as botas de couro brilhante.
- Eu estava respondendo a você quem sou e o que estou fazendo aqui. Como já disse, meu nome é Ferumbras, mas antes de terminar devo parabenizá-lo pela sua atuação com aquele garoto. Você chegou mesmo a dar a impressão de que não estava com medo.
Arieswar engoliu a provocação quieto, mesmo com Lynda apertando sua mão com mais força. Não havia muito o que fazer, afinal.
- Mas, voltando ao assunto, o que acontece é que eu e sua namoradinha temos um certo...hã, assunto pendente. Tentei resolver isso no dia da festa de vocês, thaienses, porém admito que não aproveitei a oportunidade. Só não esperava que seu sábio rei, meses depois, fosse trazê-la a um local tão solitário e desolante, onde teríamos todo o tempo do mundo para conversar sem sermos interrompidos.
- Você invadiu a cidade?! Você é o homem da igreja?
- Foi uma exibição de gala, não foi? Me desculpe a falta de modéstia, mas, sim, fui eu.
- Por quê?
- Ora, Arieswar, todos nós temos nossos probleminhas com Thais. Você é um bárbaro também, deve entender isso.
Mas Arieswar estava aflito demais para se concentrar nisso. Apenas olhava para Ferumbras enquanto se perguntava se seria esse homem realmente tudo o que parecia ser.
- E Lynda? O que você tem a ver com ela?
- Ah – falou ele com uma cara de desapontamento -, então ela não te contou? Bom, pode ser que tenha sido uma surpresa para ela também, mas já devia ter aberto o jogo. Ora, Lynda, é assim que você quer começar um relacionamento?
A única reação da moça foi apertar a mão do companheiro com tanta força que as extremidades dos dedos de Arieswar quase estouraram de tanto sangue acumulado. Um grande pesadelo do seu passado estava vindo a tona, e ela não desejava que Arieswar –seu querido Arieswar – sofresse por isso.
Eis que de repente um barulho corta a atenção dos três. Os gritos dos prisioneiros nos andares superiores recomeçaram e algo marchava apressadamente pelos corredores.
- Os reforços chegaram. – informou Arieswar.
Ferumbras tomou a notícia como se informado de que iria chover no dia seguinte. Descruzou os braços e foi se encaminhando vagarosamente para fora da cela.
- Como sou um sujeito muito generoso vou deixar que o casalzinho tenha a oportunidade de discutir a relação. Estão vendo aquela porta ali? – e apontou para a única do corredor, grande e branca – Ela é uma saída de emergência. Vocês podem ir embora e refletir sobre a vida. A menos, é claro – e ele fez uma pausa para que ouvissem o marchar dos soldados -, que queiram assistir ao espetáculo.
Aos gritos desesperados de Lynda, Ferumbras ergueu a mão direita para a grande porta branca e essa imediatamente ruiu como uma grande bolacha que se esfarela nas mãos de uma criança desastrada. Os poucos prisioneiros daquele andar corriam feito loucos por sua celas, batendo-se contra as paredes e rogando pelos deuses.
- Parem onde estão! – falou o primeiro dos muitos guardas que enfim chegavam ao corredor.
Sem querer saber de mais nada, Arieswar correu desenfreadamente segurando Lynda pelas duas mãos até uma grande escada em espiral que era a saída de emergência. Os primeiros degraus até cederam um pouco após serem pisados, devido à força do golpe de Ferumbras, mas isso foi completamente ignorado por eles. Todas as forças dos dois estavam voltadas inteiramente em escapar do lugar no qual agora, como podiam ouvir perfeitamente, estava sendo transformado em um grande matadouro de guardas thaienses.
Ao fim da escada, eles deram de cara com um alçapão, aberto aos murros por Arieswar. A liberdade os recebeu com grossos pingos de chuva e muita lama. Ainda de mãos dadas, eles correram desenfreadamente até o cavalo que Arieswar havia sabiamente deixado amarrado a uma árvore durante a tarde. O animal, que tentava-se proteger por debaixo dos galhos mais grossos, assustou-se com os dois seres desesperados que agora montavam em seu lombo e o esporavam para que ele galopasse tão rápido quanto fosse possível.
A medida que a grandiosa cidade de Thais foi se tornando uma pequena casa de bonecas muito iluminada na visão noturna, Lynda agarrou Arieswar firmemente, encostou a cabeça em seu ombro e começou a chorar.
O cavaleiro, ainda com a cabeça cheia de dúvidas e incertezas, só pôde pensar nas noites em que seu caminho cruzava com o de Ferumbras e de como elas tinham o poder de mudar sua vida.
****
Passariam-se horas e horas até que os sóis-irmãos, Fafnar e Suon, reaparecessem nos céus de Tibia, e por nem um segundo sequer o arqueiro Pepelu cogitou dormir naquela terrível noite. Como os portões da cidade de Thais permanceciam fechado até o amanhecer do dia, ele embrenhou-se em um dos bosques das redondezas e esperou, na copa de uma das árvores, que essa hora enfim chegasse.
Sua cabeça fervilhava de pensamentos, que mesclavam a decepção por ter perdido a chave-mestra talvez para sempre, a curiosidade quanto ao que acontecera no Campo Santo após a sua saída, mas, acima de tudo, a felicidade por ainda estar vivo, mesmo sem a noite ter acabado.
Por causa deste último fato, do alto daquela árvore Pepelu rezou, e muito, para todos os deuses e deusas que conseguiu se lembrar. Pedia sempre que o protegessem naquele momento difícil, que não fosse achado por ninguém e que tivesse a oportunidade de viver até o outro dia para que pudesse escapar de tamanho pesadelo junto com sua família.
Por falar nela, toda vez que Pepelu lembrava-se que havia deixado Kala e Eurídice adormecerem tranquilamente, sem nem desconfiarem que podiam nunca mais vê-lo, ele chorava copiosamente. O que teria acontecido se ele tivesse morrido? Como ele pôde por em risco a vida das pessoas que mais amava em troca de uma maldita chave? Será que o inferno seria punição boa o bastante para um bastardo idiota como ele?
O nascer do dia, contudo, deu a Pepelu a certeza de que as divindades atenderam suas preces.
Ao descer até o chão ainda enlameado, e senti-lo sob os seus pés, ele enfim se deu conta de que pela segunda vez encontrara aquele homem misterioso e pela segunda vez escapara ileso. Será que muitas pessoas já teriam repetido esse feito? Será que Arieswar e Lynda entrariam para esse seleto grupo ou não? Concentre-se, pensou Pepelu, deixe Fafnar e Suon levarem, ao menos por agora, as lembranças daquela noite. Você ainda tem que voltar para casa.
Ao ver um dos portões thaienses sendo abertos preguiçosamente por um guarda cansado da noite sem sono, Pepelu não pôde conter um sorriso. Estava de volta às ruas imundas, aos guardas rudes e ao filho de uma cadela do rei Tibiano. E estava feliz com isso,
- Opa, opa! Alto lá! – repreendeu um dos guardas do portão ao vê-lo entrando – E você, quem é?
- Eu sou Crispin Pepelu, filho de Martin, dono do Armazém.
O homem pareceu pouco convencido. De fato Pepelu estava maltrapilho, parecendo um mendingo. Estava pronto para ser revistado e interrogado de cima a baixo.
- Esse é o amigo do capitão Natharde, Yurzaf! – falou outro guarda, que vinha chegando por detrás – Minha nossa, meu rapaz, mas o que aconteceu com você? Anda apanhando da sua esposa, é?
Ele sorriu, cansado. Incrível como Diogo o ajudava mesmo à milhas de distância.
- Desculpem-me, mas tenho que ir.
O arqueiro correu o quanto pôde até chegar na Travessa do Pântano, onde dirigiu-se até a famigerada casa de número 38. Na pressa, esqueceu-se até de onde havia guardados as chaves de casa, e enquanto perdia tempo procurando no molho aquela que abriria sua porta, Kala fez isso por ele.
- Ai, graças aos deuses!
Suas olheiras indicavam que ela era mais uma das pessoas que não havia dormido aquela noite. Certamente acordara em algum momento e, não sentindo a presença do marido na cama, ficou a esperar-lhe. Com Pepelu finalmente de volta, ela atirou-se em seus braços, primeiro chorando, depois dando-lhe a maior de todas as broncas que o arqueiro já recebera na vida.
- COMO VOCÊ FAZ ISSO? COMPLETAMENTE IRRESPONSÁVEL! EU E SUA FILHA...
O arqueiro, no entanto, estava ainda completamente transtornado. Beijou-a com toda a força, quase arrancando-lhe os lábios e depois se atirou dentro de casa, agora ignorando a mulher quase que completamente. Só de tocá-la por aqueles instantes sabia que tudo o que havia de valor ainda estava ali presente.
- O que você está fazendo, Cris? Fale comigo!
Mas o arqueiro não lhe dava atenção. Correu para o quarto, no segundo andar, e abriu uma mala onde começou a atirar roupas suas e da sua mulher. Depois abriu uma das gavetas onde guardava o dinheiro do casal e socou-o nos bolsos de qualquer maneira. Kala observava tudo muito assustada.
- O que está acontecendo, Cris? Por favor, me responda!
- Precisamos sair daqui. – falava ele, fazendo várias coisas ao mesmo tempo.
- Por que? O que significa tudo isso?
- Precisamos sair daqui, Kala! Onde está Eurídice?
- Dormindo no berço. C, Cris, o que está havendo? Pelo amor de Banor, me
responda!
Mas ele só se preocupava em reunir tudo o que julgava importante o mais rápido que pudesse. Foi quando se encaminhava para o quarto da filha que batidas na porta cortaram seu raciocínio. Quem poderia ser àquela hora da manhã?
Precavido, Pepelu sacou sua balestra e abriu a porta com um chute, exatamente com fizera quando recebera Arieswar em sua casa. E, exatamente como naquela noite, teve uma surpresa. Era Hesperides, o druida.
- Abaixe essa arma, Pepelu, por favor. Eu sei de ontem a noite.
O arqueiro obedeceu no mesmo instante. Seu rosto, suado e lívido de medo contemplava a imponente figura do grande druida. Atrás de si, Kala desatou-se a chorar.
- O que é isso? – gritava ela – O que está acontecendo aqui?
Aquilo foi para Pepelu como um tapa na cara, despertando-o para a realidade. Ele abraçou a esposa, tentando passar-lhe toda a segurança que podia e fez sinal para que Hesperides entrasse. Kala não merecia passar por tudo aquilo, muito menos Eurídice, e ele decidiu que a partir daquele momento suas vidas teriam de se tornar mais tranquilas.
- A senhora me desculpe se estou sendo incoveniente. – falou o druida, apaziguando o ambiente – Pepelu, se pudéssemos conversar a sós.
- Não. Vamos conversar aqui mesmo. É mais que direito de Kala saber de tudo.
Hesperides assentiu com a cabeça. Os três sentaram-se.
- Na verdade, Pepelu, eu preciso saber exatamente o que aconteceu. Assim que os portões foram abertos, recebi um menino em minha casa que havia sido pago por Arieswar para me procurar e contar-me uma história um tanto quanto fantasiosa. Agora eu quero a sua versão.
Pepelu coçou a cabeça. Mal começara um novo dia e teria de reviver momento a momento daquela noite angustiante que vivera. Entretanto, era melhor que ele se acostumasse, pois a partir daquele dia o homem da igreja seria muito mais presente em sua vida.
****
O canto dos pássaros cortava os céus daquela tímida manhã do período de Saída. Nessa estação do ano, uma das três do calendário thaiense, as terras cultiváveis iam reaparecendo, já que encontravam-se escondidas pelas águas que enchiam durante a época anterior. Agora, muito mais férteis e ricas em nutrientes levados pelos rios, logo essas terras seriam usadas na semeadura, que, embora fosse uma ação humana, tinha resposta imediata da natureza. As aves, por exemplo, sempre desciam ao solo procurando sementes recém-plantadas, na maioria das vezes com muito êxito, empanturrando-se de alimento. Os predadores dessas aves, por sua vez, atentavam-se a esse fato e aproximavam-se das áreas cultiváveis. Isso levava a um aumento considerável no número de pequenos felinos e outros mamíferos, sendo a de semeadura ideal para a caça esportiva.
Às margens do Rio das Pedras, porém, não haviam aves. Praticamente intocada pelo homem, a região, entre Kazordoon e Ab’Dendriel, era submetida ao domínio élfico. Apenas uns poucos desses seres arrogantes a ponto de se dizerem a criação final do deus Uman podiam transitar por aquelas terras misteriosas com o total consenso dos seus habitantes legítimos. Arieswar era um deles.
Após diversas missões para o local sob a tutela dos reis thaienses, o guerreiro cativou até mesmo os frios elfos e conquistou deles o respeito e admiração. Agora, em apuros, essas criaturas mágicas o cederam uma pequena casa de pau-a-pique próxima ao Rio das Pedras onde ele “poderia pernoitar com a adorável moça que o acompanhava e descansar o cavalo no qual montavam”. O problema é que, preocupado com a harmonia entre as partes, Arieswar poupou dos elfos o detalhe insignificante de que não mais era um comandado da coroa - muito pelo contrário, estava fugindo dela.
Contudo agora isso não importava para ele.
Tudo que o exausto cavaleiro queria era dormir um pouco e esquecer tudo que passara aquela noite, mas isso não foi possível. Mesmo em seus sonhos as terríveis imagens de Lynda encarcerada, de Ferumbras e seu massacre e da sombria cavalgada durante a noite ainda o pertubavam. Sendo assim, o melhor que ele pôde fazer foi sair e caminhar sem rumo pelos grandes bosques cortados pelo Rio das Pedras.
Observando os primeiros raios dos sóis cintilarem nas águas turvas do rio que se originava nas rochas da cidade de Kazordoon, ele resolveu dar um mergulho revigorante. Tirou a jaqueta, a camisa, o codpiece e ia tirando as calças, quando, para sua surpresa, ouviu o tintilar da chave do capitão Natharde.
A primeira reação de Arieswar foi cair na gargalhada, se despir por inteiro e dar um bom mergulho no rio. A ida de Pepelu, afinal, havia sido inútil. O bastardo esteve a ponto de ser morto a troca de nada. Era realmente algo engraçado de se pensar, mas no fundo o cavaleiro sentia um pouco de pesar. Não que ele se importasse muito com a vida de Pepelu, mas ficaria triste em saber que Kala e a menina – como é mesmo o nome dela? – estariam desamparadas.
Após sair do rio, sua companhia até os sóis ficarem altos no céu fora seu cavalo castanho chamado Aslan, um Puro Sangue Thaiense, raça escolhida a dedo para o guerreiro. Era alto, com o lombo quase do tamanho de Arieswar, forte e bom para longas viagens. O cavaleiro ficou a monologar com ele por um bom tempo, já que Lynda havia conseguido dormir, talvez por já ter passado noites piores na prisão, e Arieswar não queria incomodá-la. A moça só reapareceu muito depois, quando o cavaleiro e sua montaria repousavam sob a copa de uma grande amendoeira.
- Bom dia. – falou ela timidamente.
Arieswar abriu um sorriso. Depois de tanto tempo ele finalmente voltava a ver aqueles cabelos dourados brilhando à luz do dia.
- Bom dia. Você está bem?
Ela balançou a cabeça em sinal de positivo e sentou-se ao seu lado num dos grandes rochedos que margeavam e davam nome ao rio.
- Me desculpe por tudo que eu estou fazendo você passar, Ari.
Ele respondeu passando o braço por seu ombro, abraçando-a como não fazia a dias. Lynda apoiou a cabeça em seu peito e sentiu, por uns instantes, que todos os problemas do mundo haviam passado. Todos, menos um.
- Ari...por favor...
- Me ouça, Lynda. – interrompeu ele – Já falei que estamos juntos nessa. Podemos estar correndo o maior dos riscos, mas vamos fazê-lo juntos. Você me entendeu?
- Você...não conhece Ferumbras.
- Mas você conhece! Não sei o quanto, nem o porque, já que você nunca teve coragem de me contar, mas se houvesse algo realmente inevitável de se saber garanto que você já teria me falado. Ou não?
Ela parou um pouco, fechou os olhos e respirou fundo. Seus cabelos loiros e ondulados dançavam conforme o vento ressaltando os traços do seu rosto.
- Você nunca se perguntou o porque da Igreja onde eu moro ter pertencido sempre a minha família, desde o começo dos tempos?
- Já, mas nunca descobri. E olhe que eu procurei nos arquivos do governo, mas eles não constavam muita coisa.
- Eles foram apagados, segundo disse o meu pai. – respondeu Lynda prontamente – Nossa família vêm mantendo junto aos reis thaienses um segredo desde o surgimento da cidade.
Arieswar demorou uns segundos para entender aquilo. Surgimento da cidade? Da cidade de Thais?
- Talvez você já tenho ouvido a fábula dos dois irmãos, Ari. Uma história infantil que os pais thaienses contam aos filhos. Uma sobre uma fonte mágica...você a ouviu quando criança?
- Fonte mágica? Bem, no Porto Norte eu conheço a da Fonte da Sorte, seria essa? Uma que dois amigos procuram a fonte que daria coragem ao medroso da dupla?
- Sim! – exclamou ela – Mas a versão original fala de dois irmãos, sendo que um era doente, e não medroso, e a fonte lhe daria saúde. Creio que os finais sejam iguais.
Arieswar lembrou-se de ter ouvido o conto há muitos anos e Lynda fez questão de contá-lo novamente. A busca, a princípio sem resultado, dos irmãos para encontrarem a fonte acaba gerando muitas desavenças entre eles. Quando a relação entre os dois está pior do que nunca o mais novo resolve fugir e acaba encontrando numa gruta a sonhada fonte. O problema é que dois poderosos magos a guardam, e cabe ao mais velho eliminá-los. Feito isso o irmão mais novo pode banhar-se nas águas que o curariam das enfermidades, mas algo estranho acontece e ele cai morto. O irmão mais velho, desesperado, ouve de um dos magos derrotados que esse é o preço que se paga por usar da fonte sem ser escolhido pelos deuses. Haveria, contudo, um jeito de reverter a situação; bastava o irmão vivo aceitar trocar de lugar com o mais novo.
- Mas você não morrerá de imediato! – falou o mago, ele mesmo desfalecendo – Seu irmão era muito frágil, mas você, saudável, há de resistir para penar até a morte por ter usado da fonte sem ser merecedor.
E a escolha do irmão mais velho foi feita. A vida do mais novo, a partir daquele dia, foi longa e venturosa, sem que ele jamais soubesse que apesar de todas as desavenças e brigas o amor fraternal havia feito o seu irmão salvar-lhe a troco da própria felicidade.
- É uma bonita fábula. – falou Arieswar – Poucos fariam o que ele fez.
- Pois é, Ari, mas acontece que não é apenas uma fábula. Os irmãos da história são meus ascendentes.
O cavaleiro tentou prender a risada.
- Acredite, Ari! Esse é o segredo que guardamos a tempos! Esse caso foi transformado propositadamente em fábula para que as pessoas a olhassem assim. As vezes os maiores segredos são os que colocam bem embaixo do nosso nariz.
Fazia sentido.
- Mas...qual o motivo disso estar escondido a sete chaves até hoje? E o que tem a ver com Ferumbras?
- O grande problema é que a fábula só conta a história até aí. Acontece que o mais velho passou o sangue dele adiante, e desde então seu fardo vem se repetindo em minha família de geração em geração, ora como benção, ora como maldição.
Arieswar arregalou os olhos.
- Como...como assim?
- Não sei. – disse Lynda com os olhos já lacrimejantes – Só sei que algumas pessoas da nossa linhagem nascem com estranhos poderes, entre eles o de...reviver alguém.
Aquilo não fazia sentido. Como algo podia ser passado adiante daquela forma? Seria Lynda abençoada ou condenada à desgraça?
- Então, Ari – continuou ela, chorando -, você imagina o quanto nossa família foi perseguida e manipulada por causa disso. Uns crápulas thaienses nos trancafiaram naquela Igreja e nós passamos a ser obejto de observação até hoje. Acho que isso por si só já é uma maldição!
- E você, Lynda? E quanto a você?
- Minha vida, Ari, foi salva. Outro sacríficio, mas em condições totalmente diferentes. Eu tinha uma irmã; aliás...não tinha, tenho! Nela se manifestou a magia, então meu pai...- e ela começou a chorar copiosamente – meu pai...ele a deu quando éramos muito pequenas!
- A deu? – Arieswar sacudiu a cabeça com violência – Como assim a deu? Pra quem?
- Adivinhe!
As mãos do cavaleiro gelaram. Não, não, não. Não podia ser!
- Ferumbras!
Uma cortina de ferro havia sido arrancada entre Arieswar e Lynda. Mesmo
nas suas mais pessimistas suposições ele não havia sido capaz de pensar em algo tão profundo e inquietante. Não à toa a sacerdotisa se jogou em seus braços, chorando e apertando-o tão forte como se quisesse unir os dois em um só corpo.
··Hail the prince of Saiyans··