Capítulo 6 - Lynda
- Então só pode ser isso. – concluiu Pepelu, repousando sua xícara de chá na mesa – Ela só pode estar na enfermaria do castelo.
Ele, Kala e o capitão Natharde estavam reunidos na cozinha. Eles haviam dormido um pouco e a manhã já estava bastante avançada quando desceram para comer mais alguma coisa. Foi enquanto tomavam chá que se deram conta da importância que seria localizar a sacerdotisa da Igreja da Criação. Ela era a única, além do próprio arqueiro, que fizera contato visual com o homem que aparecera na igreja; além do mais, se alguém poderia supôr o que esse desconhecido procurava lá dentro, essa pessoa era ela.
- Pepelu, eu concordo que isso é algo sério, mas vamos deixar para outra hora.
- Não, Diogo! Tem que ser agora! E se ela cair em mãos erradas? E se cair nas mãos de Arieswar?
- Bem...na verdade ele trabalha para a corte, então seria até mais adequado do que nós.
- Esqueça isso! Era eu quem estava lá naquela igreja!
- Amor, você não tem nada a ver com isso! – interviu Kala.
Ele parou de falar. Reuniu em sua cabeça tudo que pensava, mas parecia-lhe algo tão óbvio que mal conseguia expressar.
- Eu tenho TUDO a ver com isso! Eu estava lá! Eu o vi! Eu poderia ser a coisa que ele estava procurando!
Aquilo pegou Kala e o capitão de surpresa. Até mesmo Pepelu duvidava do que acabara de falar, mas ele não podia descartar nenhuma possibilidade. Ele precisava tirar toda aquela história a limpo.
- Está comigo, Diogo?
- Lógico. – respondeu, mesmo a contragosto.
O arqueiro sorriu. Subiu às escadas em direção a seu quarto, trocou a esfarrapada roupa que ainda era um vestígio da noite anterior e pegou seu arco e uma saca de flechas, pediu à mulher que ficasse em casa e foi para rua com Diogo.
- Vamos ser rápidos. – pediu ele ao amigo.
Além de querer fazer sua tarefa com rapidez, o arqueiro, em parte, desejava mesmo era não ver o que estava se passando nas ruas, embora isso fosse inevitável. O caminho até o castelo era um cenário desolador. Havia pessoas que choravam copiosamente enquanto comandados do rei ainda retiravam dos escombros os corpos dos seus parentes e amigos. Outras iam se mobilizando para ver o que restara de suas casas ou lojas. Quem mais tivesse disposição em ajudar priorizava limpar a bagunça que era a cidade.
Pepelu viu grandes árvores arrancadas do lugar, bancos despedaçados, estátuas arruinadas e fontes jorrando água desmedidamente para todos os lados. Seu coração doía com a desgraça que se abatera sobre Thais, mas no momento ele tinha algo de muita importância para resolver. Tinha que ir na enfermaria do castelo real e procurar pela sacerdotisa chamada...
- E o nome? – perguntou-se ele em voz alta – Qual é a merda do nome?
- Lynda. – respondeu-lhe Diogo prontamente.
- O quê? Como que você sabe?
- Qual mulher bonita que eu não sei o nome?
Aquela resposta, assim como a de Arieswar na noite anterior, fora inesperada, mas que as circunstâncias o fariam aceitar de bom grado. Andaram em silêncio durante todo o resto do trajeto. Eventulamente Pepelu queria partilhar um pouco da dor que sentia com os cidadãos que carregavam os corpos de seus parentes e amigos mortos, mas realmente não podia perder tempo.
Não demorou muito até que já estivessem bem perto do magnífico castelo real, lar de Tibiano III e de todos os reis antecessores a ele. Construído poucos anos após a morte de Banor, originalmente o castelo ocupava apenas cerca de metade da área se comparado àquele do tempo de Pepelu, tendo sido ampliado gradualmente por diversos governantes thaienses. Algo que chama a atenção é que de acordo com o projeto inicial ele devia possuir apenas uma única torre, onde um sino anunciaria todos os dias o nascer dos sóis, como se a princípio a idéia fosse construir uma igreja, e não um castelo. Com o passar dos anos, contudo, essa norma foi reavaliada e muitas outras torres com novos aposentos foram erguidas. O subsolo, no entanto, foi preservado e quase nada por lá fora alterado, inclusive os lendários segredos que estariam guardados desde os tempos antigos.
Se aproximando mais, Pepelu e o capitão Natharde se assustaram com a confusão que havia à porta do castelo. Pessoas amontoadas acotovelavam-se em torno de dois homens quase que imperceptíveis em meio à multidão e que tentavam controlar os ânimos.
- Fiquem calmos! Logo chegará a vez de todos vocês!
- O que está acontecendo aqui? – perguntou Pepelu.
- Um absurdo! – respondeu uma mulher ao seu lado com um ferimento no braço – Só estão deixando ser atendidos os thaienses! Eu sou venoriana, mas tenho dois filhos em casa que dependem de mim!
A balbúrdia intensificou-se ainda mais. Os dois, ainda incrédulos da atitude tomada pela corte, se afastaram um pouco ao sentir que a violência generalizada podia começar a qualquer instante. Resolveram então que independente de qualquer coisa deveriam primeiro resolver seus problemas e, como eram thaienses, procuraram um dos guardas do castelo para que pudessem entrar.
- Por favor. Eu sou Pepelu e esse é Diogo Natharde. Nós somos cidadãos thaienses e precisamos ter acesso a enfermaria para...visitar um amigo.
O guarda examinou-o da cabeça aos pés.
- Disse Pepelu, não é? Desculpe, mas recebemos ordens do guerreiro Arieswar de que não deveríamos deixá-lo ter acesso às dependências do castelo.
- Como... – e o arqueiro ria – como assim? Arieswar? Ordens?
- Acho que fui bem claro. – respondeu o guarda, retirando-se.
Pepelu inchou de raiva. Diogo viu a mão do amigo correr até o arco que carregava nas costas e por precaução achou melhor arrastá-lo para um canto a fim de conversar com segurança.
- Ouça, Pepelu. Estamos ainda nos recuperando, não vá fazer bobagens. Até porque eu tive uma idéia.
- Uma idéia?
- Sim. Podemos arrodear o castelo e entrar pela porta dos fundos. Esqueceu que eu tenho isto?
E do cinto ele tirou um chaveiro com formato de caveira do qual pendia a chave-mestra. O rosto de Pepelu se encheu de alegria e seus olhos brilharam como os de uma criança que recebe um presente tão grande que seus braços pequenos mal conseguem carregar. Diogo, ao ver que a reação do amigo foi positiva, o conduziu por um longo caminho que os levaria até os fundos do castelo real. Conhecedor do lugar pelas tantas entregas que já fizera para o rei Yorik I, ele anunciou:
- Por esse caminho chegaremos ao vestuário dos guardas inferiores. Lá vou abrir o portão do muro que cerca o castelo e vamos correndo até o tal vestuário. Hoje esse lugar deve estar mais vazio por que os guardas estão todos na rua recolhendo os corpos.
Pepelu concordou com a cabeça. Os dois então foram se esgueirando ao redor de um imenso muro de pedras. Por vezes precisaram passar por cima de arbustos espinhentos ou plantas urticantes, mas em momento algum fraquejaram. O arqueiro ficou à imaginar se teriam sido os descendentes de Banor que planejaram essa espécie de proteção natural, tendo inclusive visões deles sentados em suas pomposas cadeiras de cetim aveludado observando possíveis invasores de uma cidade recém-formada tropeçando por entre urticárias, como ele agora fazia. Depois de um bom tempo ele e Diogo chegaram então a um portão de madeira quase tão grosso quanto o muro de pedra.
A madeira cravejada de grossos pregos dourados estava reluzente. Certamente fazia algum tempo desde que o rei precisara dar ordem para que suas tropas saíssem todas de uma vez e precisassem passar por aquele portão.
- Tem certeza que quer fazer isso, Pepelu? – perguntou Diogo.
- Absoluta.
Ele enfiou a chave-mestra na fechadura, respirou fundo e, num clique, abriu o portão.
Agora eles estavam dentro do perímetro do castelo e todo cuidado era pouco. O capitão novamente tomou a dianteira e o guiou até o lugar onde estava o vestuário, que, para surpresa de Pepelu, não possuía portas, mas uma única janela.
- Vamos pular!
Deslizaram por entre um basculante e caíram em uma minúscula sala com dois espelhos de pé e vários armários competindo por espaço com eles; ao canto um balde junto à escovas e buchas para banho podiam ser percebidas. O arqueiro e o capitão iam se levantando em direção a única porta do local, que, segundo Diogo, daria em um corredor secundário do castelo, quando a maçaneta se movimentou. Dois soldados da guarda thaiense com roupas completamente sujas de sangue entravam no vestuário levando debaixo do braço toalhas brancas dobradas. A surpresa pegou os quatro, mas Pepelu e Diogo foram mais astutos, empurrando os homens para o lado e pondo-se a correr pelo corredor.
Para a sorte deles, exceto os dois guardas que agora os perseguiam, o castelo parecia estar totalmente vazio. Eles aproveitaram da liberdade que tinham para subir e descer escadas aleatoriamente na tentativa de serem perdidos de vista. Os guardas, porém, não foram em momento algum enganados, e o máximo que a dupla conseguiu foi chegar a um corredor com uma única porta, para a aflição deles, trancada.
- Abre logo! – gritava Pepelu – Use sua chave!
Mas Diogo estava se atrapalhando pois o chaveiro de caveira não parecia querer sair do seu cinto. Pepelu não viu outra opção senão sacar seu arco e apontá-lo para os guardas, agora com lanças em riste. Puxou da saca duas flechas e desejou que aparecesse para ele outra escolha, o que não aconteceu. Num único movimento atirou contra os dois alvos, sendo que cada uma das flechas voou simetricamente a outra até atingir a garganta de cada guarda. Segungos depois ele agonizaram brevemente até tombarem mortos no chão de pedra lisa. Só após isso Pepelu ouviu um clique, indicando que a porta atrás dele finalmente fora destrancada.
- Puta merda.
Ele e Diogo ficaram imóveis, o suor escorrendo em seus rostos devido ao nervosismo, limitando-se a contemplar os cadáveres de dois integrantes da guarda thaienses jazendo em pleno chão do castelo real.
- Temos que esconder isso aí em algum lugar. – disse Diogo, ainda com as mãos trêmulas.
- É...tem...tem razão. – gaguejou Pepelu – O que é que tem aí atrás?
Ele então abriu a porta que o amigo acabara de destrancar. Para sua supresa deparou-se com uma longa escadaria que levava a um obscuro andar inferior. O arqueiro já ficaria surpreso com aquela descida que de tão abrupta parecia levar direto aos confins da terra, mas o mais curioso era o fato de ela estar bem ali: em um simplório corredor do castelo do rei Tibiano.
Atrás de si Diogo o encorajava a descer. Cada um pegou um dos corpos pela cintura e, tomando coragem, pisaram juntos no primeiro dos degraus de granito. Aquela peculiar escada não possuía corrimão, e à medida que ia se afastando do ponto de origem, notaram os dois, ela ia estreitando-se até tornar-se quase que um prova de equilíbrio. Ao finalmente chegar no andar inferior Pepelu olhou para cima e foi com dificuldade que conseguira distinguir o borrão de luz que indicava a porta pela qual tinham entrado.
Agora estavam em uma espécie de masmorra, com pequenas celas sujas e cheias de teias de aranha. Não havia ali qualquer tipo de iluminação salvo por um pequeno candelabro que Diogo acendera por meio de magia. Pepelu arrastava o corpo do seu soldado sentindo-o chacoalhar no irregular chão de paralelepípedos da masmorra.
Foi então que o capitão Natharde parou e Pepelu, distraído, quase chocara-se com ele. Estavam bem em frente a outra porta. Esta, porém, sem fechadura. Diogo levantou o candelabro e notou uma inscrição de madeira pregada à parede, onde podia-se ler as palavras:
- O vácuo! Como assim “O vácuo”?
- E eu sei lá, Diogo.
O capitão tateou a porta, procurando uma maneira de abrí-la. Cogitou usar a chave-mestra, porém desistiu ao ver que não havia nem mesmo nada semelhante a uma fechadura na qual pudesse encaixá-la. Chegou até mesmo a tentar forçá-la, jogando contra ela o seu corpo, mas também não adiantou. Por fim, desistiu.
- Vamos deixar esses caras por aqui mesmo. – disse – Acho que ninguém vai andar por essas bandas no momento.
Pepelu concordou. Colocaram os guardas em um canto especialmente escondido e os deixaram por lá. Agora eles deveriam aproveitar que estavam dentro do castelo para chegar à enfermaria e procurar por Lynda. O arqueiro esperava ansiosamente pelo momento em que poderia conversar com a sacerdotisa e, talvez, tirar sua dúvidas e, principalmente, o medo de estar sendo perseguido.
A gravidez de Kala fazia Pepelu pensar a cada dia em sua vida. Sinceramente ele nunca gostara do tumulto das grandes cidades e tinha um íntimo desejo de curtir o resto da sua vida vendo seu filho crescer num grande sítio com muitas árvores, animais e um rio que corresse por perto, onde plantaria às suas margens tudo que colheria para sobreviver. O exato momento, todavia, o forçava a adiar qualquer plano. Dentro de si ele podia sentir que Thais corria perigo e que ele precisava prestá-la um último favor antes de partir. Para isso precisava de Lynda.
Cruzaram boa parte do andar térreo do castelo até chegarem na imensa enfermaria, a essa altura já abarrotada de gente; nenhum “bárbaro” sabia ele. Apressou-se em relação a Diogo para verificar onde estaria Lynda, e descobriu que ela estaria sendo atendida na maca 10 B. Ele começou a andar tão rápido que chegava quase a correr. 1 A, 2 A, 3 A, diziam as plaquinhas sobre cada maca por qual passava: estava na fileira errada. 1 D, 2 D, agora ele avançara demais. 1 B, fileira certa! 2 B, 3 B, 4 B, e a ansiedade crescendo em seu peito. 5 B, 6 B, 7 B, se olhasse com atenção já conseguiria encontrar aquele rosto claro com cabelos loiros que vira estendido no chão da igreja. 8 B, 9 B, 11 B!
- Onze? Onze?
Por um segundo pensou estar tão ansioso que chegara ao ponto de pular os números; mas não estava. Por algum motivo não havia nenhuma maca de número 10 entre as de números 9 e 11, e ele já imaginava qual seria ele:
- Arieswar!
Arieswar subia apressado uma escada em espiral que o levaria até o topo da torre leste, uma das mais altas do castelo real. Em meio aos passos rápidos ele mal observava as janelas que passavam velozes por si e mostravam uma cidade com uma imensa ferida ainda aberta; sangrando.
Finalmente chegando em seu destino ele apressou ainda mais o passo para cruzar um estreito corredor onde se dispunham quatro portas identificadas. Ele enfiou a mão no bolso, de onde pegou uma chave prateada com a qual abrira a porta em que se via a letra “A”. Entrou por ela e novamente usou a chave, desta vez para trancar-se.
Encontrava-se agora dentro de um quarto, mas não era qualquer um: era o seu quarto. Aquele era o andar exclusivo dos guerreiros da corte, onde Arieswar tinha Hesperides, Acanthurus e Dragonslayer como vizinhos. Ali eles encontravam um aposento sempre disponível para pernoitar ou guardar seus pertences utéis caso precisassem passar um período grande no castelo. Ninguém além de Arieswar, porém, encontrava-se por ali, à exceção, é claro, da sua mais nova hóspede.
Deitada em sua cama, acordando lentamente, estava Lynda. A sacerdotisa parecia estar muito doente, e seu rosto estava anormalemente pálido. Os cabelos dourados e ondulados também haviam perdido um pouco de cor e brilho. Arieswar sabia que o quer que a tivesse atingido, não era algo comum.
- Está se sentindo melhor? – perguntou ele.
Ela não respondeu. À medida que ia abrindo os olhos notava que estava em lugar que lhe era totalmente estranho. Apalpou-se e notou que estava com uma camisola branca certamente muito diferente da última coisa que se lembrava ter vestido. Ao mirar fixamente para Arieswar seus olhos lacrimejaram de medo.
- Fique tranquila. Sei que passou por momentos difíceis e a trouxe aqui para blindá-la de tudo isso.
Ainda assustada, ela observava melhor o local. Ao lado direito da sua cama havia um criado mudo e uma grande janela com as grossas cortinas de cetim fechadas. Ao seu lado esquerdo podia observar um armário de madeira e logo acima estantes com diversas peças de louça além de incontáveis garrafas de bebida. Levantando um pouco mais a cabeça viu uma pequena mesa circular para refeições. À esquerda desta estava um baú de aspecto antigo. E logo à sua frente encontrava-se o dono daquele quarto.
Arieswar foi até as estantes e apanhou um par de canecas e uma garrafa vermelha, depois arrastou uma das cadeiras até a lateral da cama e sentou-se, enchendo as canecas com a bebida e oferecendo uma delas à sacerdotisa. Esta, de início, hesitou, mas acabou optando por confiar. Beberam tudo em silêncio, até que ambos descansassem as canecas no criado-mudo.
- Vejo que já está mais corada. – disse Arieswar, com sua voz forte, porém reconfortante – Seu nome é Lynda, não é?
- Sim. – respondeu ela, falando pela primeira vez.
Ele se mostrou visivelmente satisfeito ao ver que conseguira fazê-la falar.
- Acho que v...
Mas ele nunca chegou a dizer o que achava. No meio da frase batidas apressadas na porta desviaram sua atenção. Pediu licença à Lynda e foi até a porta, entreabrindo-a.
- Hesperides? O que está fazendo aqui?
- Precisamos conversar. – disse o druida, suando como se tivesse subido as escadas correndo.
Arieswar ficou apreensivo. Não queria que Hesperides notasse a presença de Lynda, porém não podia ficar de conversinha por entre aquela fresta. Decidiu sair do quarto quase que esgueirando-se por um espaço mínimo de abertura da porta. No momento que ia fechá-la sentiu o druida impedir sua ação. Hesperides cravou por um segundo seus olhos na sacerdotisa e depois correu a mão à maçaneta, fechando o trinco.
- Você sabe que ela não deveria estar aí, não é?
- Eu sei, Hesperides...mas quis poupá-la de qualquer assédio das pessoas que souberem do que aconteceu. Ela precisa de cuidado especial.
- Sei que cuidado especial você quer dar. Eu te conheço e não é de hoje.
- O quê? – exasperou-se ele – Não! Ela estava desacordada! Você acha que eu...
Mas novamente Arieswar foi interrompido antes de terminar. Desta vez um barulho de vidro quebrando dentro do quarto fez seu coração disparar. Abriu a porta do jeito mais rápido que pôde e logo viu o que acontecera.
Uma das janelas estava espatifada, as cortinas estavam queimando e Lynda se encolhera toda na cama. No teto e no chão mais a frente marcas chamuscantes mostravam que o que causara tudo aquilo fora uma rajada de energia.
Hesperides debruçou-se quase que inteiramente na janela para ver se conseguia localizar os autores do ataque gratuito enquanto que Arieswar foi ver se Lynda estava bem. O cavaleiro sentiu os braços da sacerdotisa se fecharem em torno do seu pescoço com força e os volumosos seios espremerem-se junto ao seu próprio peito.
- Atiraram no castelo todo. – anunciou Hesperides.
A moça repentinamente desvencilhou-se de Arieswar. Ele, no entanto, ainda ficou inclinado para ela, como que esperasse que ela voltasse a se envolver consigo e os dois rolassem pela cama, beijando-se calorosamente. Sua ilusão logo foi cortada por um sentimento de pena ao ouví-la, quase chorando, perguntar:
- Por favor...vocês são os guerreiros da corte, não são? Quem atacou nossa cidade? Quem me atacou em minha igreja? Por favor me ajudem!
Os guerreiros se entreolharam e sentiram juntos um estranho pesar. Hesperides prometeu-a responder tudo que quisesse saber, contanto que antes ele pudesse trocar meia palavra em particular com Arieswar. Lá foram eles de novo para o corredor, desta vez sem nem darem-se ao trabalho de fechar a porta.
- Acho que esses homens estavam aqui pelo mesmo motivo que eu. – falou o druida – Enquanto você passou o começo da manhã resolvendo seu problema pessoal, o Rei assinou um decreto emergencial estabelecendo a duplicação da taxa de impostos a todos os não-thaienses.
- O quê?! Será que sou eu ou o mundo resolveu ficar louco no embalo desse sujeito?
- Esse sujeito é o nosso Rei e a ele juramos fidelidade. Mas eu quero alertar você e também Acanthurus e Dragonslayer que logo o copo irá transbordar. Damaso vai querer aproveitar a situação para tirar proveito sobre os “bárbaros” e ai que o negócio vai ficar feio. Sem os não-thaienses nossa cidade pára!
- Quanto a isso, não se preocupe. – disse Arieswar com firmeza – Aconteça o que acontecer, temos que nos manter unidos. Afinal, eu sou um bárbaro também.
- É isso que me preocupa.
O cavaleiro entendeu o recado. Hesperides tinha medo das besteiras que Arieswar pudesse cometer ao ver os outros povos subjugados e que ele e os outros guerreiros acabassem tendo que pagar o pato também.
- Não há nesse mundo força capaz de superar os guerreiros da corte, Hesperides. Pelo menos força que não seja divina.
Os sóis já esavam muito mais altos no céu quando Pepelu e o capitão Natharde foram até o celeiro nos fundos do Armazém e escolheram dois dos cavalos mais rápidos e amansados para montarem. Após o revés na enfermaria do castelo, Diogo buscou em sua memória algo de diferente que já tivesse ouvido sobre a Igreja da Criação em meio a uma de suas viagens; forçando um pouco sua mente lembrou-se de um episódio no qual coube a ele comercializar um artefato de ouro bastante antigo com um velho morador do Monte Sternum, uma grande montanha rochosa a nordeste da cidade de Thais.
Muitas lendas de alguns caçadores da região cercavam o sujeito. Alguns diziam que ele era um velho bruxo que fora expulso da sua comunidade por cultuar deuses estranhos a eles; outros julgavam-no apenas como um louco que decidira que viveria em harmonia com os cíclopes. Ao conhecê-lo pessoalmente Diogo notara que se tratava apenas de um pobre lunático cujo estranho comportamento dava margem a todo o tipo de história.
De qualquer maneira, lembrava-se que entre tantas coisas curiosas que ouvira enquanto negociava sua preciosa carga a Igreja da Criação fora citada algumas vezes como detentora de um mistério indecifrável. Na época o capitão não dera muita atenção aquilo, mas agora ele e Pepelu, cavalgando a toda velocidade rumo ao Monte Sternum, rezavam para que o velho ainda estivesse vivo para passar mais uma vez o mistério adiante.
Diogo, contudo, preferia conter as expectativas:
- Sabe que nós estamos aqui mais para ocupar o tempo do que para qualquer outra coisa, não sabe Pepelu? Não sei nem se esse velho ainda vive, quanto mais se sua história tem alguma coisa a ver com o cara lá da igreja.
- O pior que pode acontecer é perdemos tempo, e é melhor que isso aconteça aqui do que em casa olhando os malucos tacando pedra nos prédios do governo.
A viagem até o Monte durava cerca de três dias, mas não apresentava muitas dificuldades, uma vez que o caminho era um dos mais movimentados até a cidade de Thais, contando com diversos casebres e hospedarias para passarem as noites. Pepelu só ficou sentido por deixar Kala sozinha durante a gravidez, mas confiara em seus amigos para socorrem-na caso alguma coisa de ruim acontecesse.
Felizmente tudo ocorreu bem, tanto para Kala quanto para Pepelu e Diogo. O máximo que os dois amigos podem reclamar fora da refeição do segundo dia, quando a dona da casa em que se hospedaram serivira pão mofado acompanhado de um filé demasiadamente salgado para disfarçar seu azedume. Por sorte Diogo conseguira caçar um perdiz e salvar o dia.
Enfim, na tarde do terceiro dia de viagem eles chegaram ao Monte Sternum. Reduto da raça dos cíclopes, seres com características humanóides, à exceção do tamanho que, nos machos adultos podia atingir até os cinco metros e da face, onde um único olho se encontrava sobre o nariz. Seu comportamento, sempre hostil, geralmente afastava as pessoas daquela montanha, contudo alguns aventureiros sempre buscavam os itens valiosos que porventura os cíclopes tivessem roubado dos humanos e escondido em seus aposentos.
- Na verdade os cíclopes não são muito inteligentes. Costumam ser apenas grandes. – ponderou Diogo – Mas isso conta muito.
Agora o arqueiro Pepelu e o capitão Natharde escalavam por um caminho alternativo à trilha pré-definida valendo-se muitas vezes apenas da memória de Diogo para chegarem a choupana do velho guardador do mistério. À medida que subiam, procurando esquivar-se dos grupos de cíclopes, mais e mais elementos eram visíveis na maravilhosa paisagem que se formava. A cidade de Thais agora parecia um imenso amontoado das casinhas de boneca que Kala ainda guardava dentro de seu armário; somente as torres mais altas, com seus sentinelas sempre posicionados, impunham algum respeito. Diogo certamente ficara fascinado com o porto e suas dezenas de barquinhos que dali caberiam numa garrafa, entre eles o Esperança.
Seguindo pela paisagem no sentido horário Pepelu viu o Golfo do Rei, a grandiosa bacia de águas que separava as fisicamente as rivais Carlin e Thais. O espelho d’água reluzente podia ser objeto de contemplação por horas a fio, caso a atenção do arqueiro não estivesse voltada para uma pequenina vila às margens thaienses do golfo. A Costa Verde, como era chamada, representava um paraíso para Pepelu: um ambiente livre da superpopulação irritante da cidade, com grandes espaços para se caçar, plantar, pescar e viver em harmonia com a natureza e os outros habitantes da comunidade. Intimamente o arqueiro prometeu-se que se nada lhe acontecesse de ruim, aquele seria o lugar onde criaria seu filho.
Mais adiante erguiam-se as paredes rochosas do reino de Kazordoon, com seguramente mais que o dobro do tamanho do Monte Sternum. Mais á leste estavam os pântanos inabitáveis e o sombrio deserto de Jakundaf, formado devido a escassez de nuvens que são impelidas exatamente das montanhas onde eles estavam no momento. Abrigava uma pequena população, que aos poucos foi migrando e deixou o lugar um verdadeiramente um deserto. Atrás dele, sabiam Pepelu e Diogo, estavam as misteriosas Planícies de Havoc. Segundo as lendas antigas o lugar já fora amplamente habitado, até que uma horda de seres demoníacos abrira uma fossa diretamente do inferno, dominando as planícies e matando os seus habitantes quase que em sua totalidade. Posteriormente, uma legião de guerreiros thaienses se encarregou de trancá-los de volta no inferno, mas não sem espalhar a lenda da temível Fossa do Inferno.
Uma história inquietante, sem dúvida, mas no momento Pepelu preocupava-se mais com outro perigo constante das Planícies: o Acampamento dos Foragidos, como ficou conhecido o local para onde eram mandados criminosos de alta periculosidade e que acabou por se tornar uma espécie de abrigo para todos os foras-da-lei. O Acampamento sempre estivera em iminente perigo de rebelião, principalmente sobre o governo de Tibiano.
Coincidentemente esse ponto de perigo em potencial também era separado de Thais por uma grande bacia d’água, dessa vez uma baía, a Baía de Havoc. Curiosamente ao completar uma volta pelo cenário, Pepelu repousou seus olhos na cidade, como uma criança que procura sua casa; no seu caso, sua mulher. O que quer que acontecesse consigo, com mundo, Pepelu queria estar mais perto dela, protegendo-a todos os momentos.
- Chegamos! – gritou Diogo, acordando-o para a realidade.
Inerte em pensamentos, Pepelu nem se deu conta de que continuara a subir; porém desconfiou que mesmo focado poderia era bem capaz de não ter reparado no lugar que o capitão o levara.
Cravada na pedra bruta estava uma velha choupana de madeira parcialmente coberto de limo. O lugar não era nem de longe propício para a construção de um lar. O local era íngreme e totalmente irregular, e de fato pareceu a Pepelu que simplesmente o dono num belo dia acordara ali por engano e era preguiçoso o suficiente para se dar ao trabalho de tentar sair.
Diogo tomou a frente e bateu à porta. Esta, de tão gasta, parecia que cairia para trás. Mas não caiu. Apenas se abriu num ranger de dobradiças quando o velho alcançou-a.
- Visitas! – disse ele – Isso sim é uma surpresa!