Capítulo 1 - Pepelu
Aquela era a véspera do dia de Fechar das Estações, uma das datas mais importantes do calendário do nobre continente de Tibia. As celebrações seriam responsáveis por mesclar alegria pelo fechamento de um ciclo com a ansiedade pelos dias que estarão por vir.
O palco principal da festa seria a cidade de Thais, o berço da civilização do continente de Tíbia. Banhada a oeste pelo grande oceano conhecido como Sula e delimitada por dois diferentes rios a norte e sul, Thais foi a primeira ocupação humana no mundo segundo as escrituras antigas. Seus recursos hídricos e vias fluviais abundantes são pistas do porque da escolha dos primeiros filhos de Uman por aquele pedaço de terra específico.
Agora cabia novamente à cidade celebrar a clássica festa que marcava o fim da época de colheita, onde o povo deveria saudar os deuses por aquilo que lhes foi dado da terra e pedir sua divina benção para a próxima semeadura. Ainda segundo a tradição, a população deveria se reunir sob os comandos do seu rei, o recentemente nomeado Tibiano, e perdoar suas dívidas terrenas em benefício da perpetuação da alma.
Portanto, como não podia deixar de ser, a metrópole maior agora estava abarrotada de gente. Vindos das mais longínquas colônias, um sem-número de navios atracava no porto da cidade, alguns ainda carregando sacas excedentes de cana-de-açúcar da Baía da Liberdade e outros as marcas da tentativa de saque que ocorrera ao porto de Darashia.
Cruzando os portões de pedra bruta que davam acesso à capital, centenas de forasteiros deixavam para trás a terra bárbara de onde vieram e pisavam os nobres paralelepípedos de Thais. Muitos deles haviam feitos verdadeiras jornadas, como os misteriosos magos da cidade élfica de Ab’Dendriel, vindos norte, enquanto que os moradores da simpática ilha de Fíbula, a sudoeste da capital, apenas atravessaram o canal subterrâneo que a liga com o continente. Fosse como fosse, devido aos inúmeros visitantes de ocasião, os guardas responsáveis pelos portões da cidade estavam entre os trabalhadores que durante esse período tinham de ter atenção redobrada.
Contudo, se havia alguém que estava indiferente à agitação dos guardas e de todos os outros conterrâneos, este alguém era o jovem Crispin Pepelu. Ao contrário dos demais cidadãos ele aproveitava o momento para descansar das suas atividades, fechando o pequeno mercado que administrava para que este pudesse ser devidamente abastecido e voltar logo mais a todo vapor.
Formado na escola de arqueiros da própria cidade, Pepelu pouco se aprofundava nos treinos de combate, o que algumas pessoas julgavam ser um grande desperdício, afinal aquele homem parecia ter sido desenhado especialmente para a arte do tiro, juntando um corpo alto e braços fortes para o manejo de arcos longos e pernas rígidas e musculosas, necessárias para a estabilidade com a balestra. Contudo, o Armazém, como era chamado o seu estabelecimento situado na Travessa do Pântano, não era uma opção, mas uma obrigação. O lugar havia pertencido a seus pais, mortos num naufrágio, e antes deles ao seu avô; todos cidadãos thaienses. Sua ascendência histórica, inclusive, pertencera a cidade desde a época em que a capital do mundo era apenas um pequeno vilarejo. O nome da família Pepelu estava vinculado ao Armazém.
Tal longevidade rendeu ao local fama e credibilidade. Especialmente sob a tutela do atual Pepelu as prateleiras estavam sempre cheias de especiarias e produtos muito requintados, provenientes das províncias mais afastadas. Isso por que Pepelu tinha amizades que em muito o ajudavam no recebimento de mercadoria. Não que ele possuísse qualquer influência política no sistema de governo de Tibiano, mas alguns dos elos comerciais, vinculados há muito por seus ascendentes, estabeleciam um contrato moral de grande comprometimento na sociedade thaiense.
Outro laço forte de Pepelu com alguns de seus contatos era a pequena hípica que administrava paralelamente ao Armazém. Batizada por seu pai de “Hípica da Amizade”, nela estavam cavalos de alguns dos seus fornecedores.
O período de festa era o mais propício para retomar contato com alguns desses amigos e conseguir facilidades na compra, transporte e armazenamento dos seus produtos. Contudo esse ano o feriado tinha algo de especial. Sua mulher, Kala, estava grávida, o que fazia suas atenções se desviarem completamente para ela e para o pequeno herdeiro que esta carregava. Ela pertencia a uma família de história relativamente curta em Thais, mas que desde o princípio se ligara com os Pepelu. Vindos da cidade de Cormaya, ao extremo Leste da capital, os pais de Kala inicialmente moravam em um quarto alugado do próprio Armazém, onde iniciaram a amizade entre as famílias, que anos mais tarde resultaria no casamento dos seus filhos. Há pouco, com problemas de saúde, o sogro de Pepelu e toda sua família, exceto Kala, retornaram à Cormaya.
Naquele exato momento, contudo, Pepelu não estava ao lado da mulher. Deixou-a em casa preparando uma decente refeição para o convidado que vinha de longe e cujo esperava ansiosamente no porto.
- Ai está! – exclamou.
Cortando as águas de Sula vinha uma grande embarcação esculpida em carvalho e que portava a bandeira thaiense e em sua proa o nome que por vários cantos do mundo já havia sido visto: Esperança.
Pepelu foi se levantando preguicosamente do banco onde estava sentado, sentindo os músculos relutarem à menor menção de fazer esforço naquele dia morno de sol e de ar carregado de maresia do mar. Quando finalmente se pôs de pé, ficou a observar a âncora ser lançada nas águas para que o Esperança não zarpasse sozinho pelo oceano, podendo até, com azar, parar na cidade de Carlin.
Tal cidade, eterna rival de Thais, é a segunda em poderio político e militar no continente. Soberana de todas as terras vizinhas a ela, exerce influência em toda a parte norte do continente. Sua monarca, a rainha Eloise, não reconhece o reinado de Thais, recorrendo a questão histórica da tentativa de subjugação do povo do norte pelo reino de Thais.
Essa é uma questão que remete a criação da cidade de Carlin por um antigo rei, que desejava construir uma cidade que exemplificasse a grandeza thaiense na porção norte do mundo. Para isso organizou uma frota imensa de escravos, presidiários e mendigos que pudessem ser explorados ao máximo na construção do novo reino que homenagearia o grande Carl, figura mística que lutara ao lado de Banor nas guerras antigas. Para supervisionar o árduo trabalho daqueles a quem chamou de “cidadãos duvidosos”, o rei enviara sua armada mais poderosa: a Legião Vermelha.
A todos no Conselho Thaiense parecia óbvio que o palco estava armado para um grande colapso, mas o monarca tampou os ouvidos para os críticos. Revoltas intermináveis por parte do operariado ocorreram e o massacre de trabalhadores fez surgir uma nova força na região. Um setor do exército da capital tornara-se dissidente de Thais, e, liderados por Marlinda, irmã exilada do rei, armou uma estratégia para derrotar a Legião em favor de Carlin. A nova líder fechou o cerco dos legionários numa emboscada perfeita, derrotando a todos.
Marlinda declarou o governo independente de Carlin em relação à Thais e o rei, desguarnecido do seu principal contingente militar, nada pôde fazer. Desde então vários reis e rainhas se sucederam e o sentimento de inimizade entre as cidades só aumentou.
Naquele momento atual Pepelu não via com bons olhos o futuro das rivais. Tibiano parecia demasiadamente orgulhoso para não alfinetar Carlin sempre que possível, e talvez ele pudesse cometer o mesmo erro do seu antecessor distante: subestimar os carlinianos.
Contudo, bem ancorado, o Esperança não corria riscos. Passado um tempo, Pepelu se levantou e pôde então sorrir com a vinda daquele a quem esperava ansiosamente:
- Diogo! – cumprimentou ele com um abraço.
O Capitão Diogo Natarde, um negro de aparência faceira, abriu os braços para retribuir a recepção do seu amigo de infância. Ele trazia em seu rosto, como era quase de regra, um largo sorriso de dentes muito brancos, além das inúmeras marcas e cicatrizes que obtivera durante suas longas e perigosas jornadas por Sula. Apesar de jovem, o capitão já cruzara os quatro cantos do mundo, explorando os mais inóspitos lugares que Uman e Fardos, os deuses da criação, haviam feito. Pessoa influente entre os comerciantes das grandes cidades, Diogo era um dos principais fornecedores de mercadoria para o Armazém. Agora, como costumava fazer em todo Fechar de Estações, o capitão Natarde viera a Thais para passar a festa na casa de seu amigo, já que seu verdadeiro lar era o grande navio que já ia ficando para trás.
- Diga-me lá as novidades dessa velha cidade, Pepelu. – pediu o capitão, enquanto pagava a um dos guardas as tarifas portuárias.
Houve uma pausa na qual o arqueiro parou para pensar. Thais passara por um turbilhão de mudanças há pouco tempo, ou melhor, desde que o Damaso, um ex-cônsul, cargo de importância no reino, assumira o posto de ditador para liderar a manutenção de uma crise financeira causada por um desentendimento com Venore, a terceira cidade na escala de importância do continente, e a partir daí assumira a Majestade, sendo agora conhecido como Tibiano. Sua transição para o cargo supremo da coroa fora patrocinada pelo Conselho Thaiense, responsável por eleger os reis para mandatos vitalícios, numa verdadeira monarquia de caráter eletivo.
A cidade-império de Thais estava sem rei desde a recente morte de Yorik I, um líder reconhecidamente bom, e a responsabilidade de Tibiano em sucedê-lo era imensa. Seu reinado de início agradara a população em linhas gerais, pois seu primeiro objetivo, o de restabelecer a ordem financeira e fechar acordos com os ricos burgueses de Venore, foi cumprido com todos os louros. Tibiano, aliás, quase sempre realizava projetos primorosos para a economia da capital, aumentando o fornecimento de matéria-prima vindo das colônias e realizando trocas com outros povos, como os anões e os elfos. O grande ponto de divergência do seu governo era a questão social; intencionando fazer a “Thais dos thaienses”, o rei praticava ações desfavoráveis aos forasteiros, a quem chamava de bárbaros. Esses grupos, incluindo os colonizados, sofriam pressões internas para que sua manutenção na cidade fosse dificultada. Seus estabelecimentos sofriam maiores taxações e suas casas eram submetidas a aluguéis de valores mais altos.
O jugo - já chamado por alguns de xenofobia - de Tibiano, porém, se limitava aos muros de sua Thais. Fora dela não havia aparentes perseguições aos não-cidadãos, apesar de que Pepelu não era inocente o suficiente para acreditar que tais noticias viriam estampadas nos relatórios oficiais. Se havia alguém que podia relatá-lo a verdade, essa pessoa estava na sua frente, esperando de si uma resposta.
- Eu diria que nossa metrópole anda conturbada, Diogo. Mas o homem das novidades aqui sempre é você. Aliás, cadê a sua tripulação?
- Dei folga a todos eles. Foram passar um tempo com suas famílias. E meu cavalo, como está?
Pepelu e o Capitão Natarde seguiram o rumo para a casa do arqueiro, na mesma Travessa do Pântano onde estava o Armazém, e mais conhecida como “número 38”. Avançando na conversa, Pepelu logo descobriu a surpresa de seu amigo em relação às atitudes do rei, que, segundo ele, não fazia nada que fosse considerado xenofobia nas colônias pela qual havia passado. Sempre de caráter exploratório, a colonização era, para o capitão, algo inevitável, uma vez que o poderio thaiense logo haveria de se impor pelo mundo. Com base nesse ponto de vista, era normal a subjugação de alguns povos em benefício dos patrícios e a atuação dos comandados da coroa nas ilhas da Baía da Liberdade, Edron ou mesmo no Porto da Esperança, em Darama, principais pontos de exploração, não era nada que saltasse aos olhos; ao menos os de um homem que já vira tanta coisa na vida como ele.
- Só não imagino o que possa vir pela frente. – concluiu o capitão – É um sujeito que pensa grande, de fato, mas creio eu que tenha a rédea folgada por demais.
Pepelu concordou e pôs fim a conversa. Agora eles já estavam a cruzar a Principal, como era conhecida a avenida que os levariam até a esquina que dava nome a rua do arqueiro. Ambos sabiam que aquele era o momento de abstrair os problemas e viver o que a vida tinha de bom a oferecer, começando por aquele belo almoço.
Bem como na maioria dos lugares da cidade, a pequena casa ao lado do Armazém logo se encheu de alegria e vitalidade. O capitão Natarde era também uma pessoa querida de Kala, esposa de Pepelu, que preparara um suculento cisne cuidadosamente engordurado, envolto em carne de porco e grelhado lentamente no forno. O vinho, que, por sinal, era de um fornecimento anterior do próprio capitão também era de ótima qualidade. Não demorou para que os três estivessem no quintal dos fundos, sentados na grama, comendo queijo coalho com o mais valioso melaço trazido de Darashia e recebendo os raios solares dos sóis-irmãos, Fafnar e Suon.
Aquela casa possuía mesmo a cara dos seus donos. Simples, porém talhada em madeiras nobres como câmbala, joca e ocá, tinha uma elegância campestre que remetia ao aconchego e encanto de uma fábula. Parecia uma casa de bonecas. Os cômodos, pequenos e estreitos, giravam em torno de uma ampla sala cuidadosamente decorada e suntuosamente agraciada com uma lareira em pedra-sabão. O amplo quintal possuía diversos tipos de árvores frutíferas e, ao fundo, um alvo já cravejado de flechas pendia de uma delas, indicando que o dono da casa continuava praticando.
E em meio àquela tranqüilidade, estirados nas begônias, derramando mel pelas flores, estavam Pepelu, o Capitão Natarde e a doce e singela Kala. Em paz, planejavam o futuro.
- E esse menino ou menina terá juízo. – dizia Pepelu – Nunca que entrará naquele seu barquinho para eu ter que buscá-lo a nado em algum canto de Sula.
- Respeite o Esperança! Aliás, respeitem-no vocês dois! Não se esqueçam de quantas vezes eu cedi o navio para que vocês pudessem namorar às escondidas.
Kala deu uma risada de canto de boca e corou. Pepelu lembrou-se rapidamente dos inúmeros favores que Diogo já havia feito por ele e não pôde deixar de sentir um pouco de inveja do amigo. Desde quando eram pequenos o capitão sempre fora o mais independente, mais sociável e mais talentoso da dupla. Crescidos juntos, o arqueiro em alguns momentos nutria o sentimento de que estava a crescer à sombra de um irmão mais velho, tentando sempre receber dos outros os mesmos elogios e reconhecimento.
Ao crescerem, Diogo conquistava em uma noite mais namoradas do que ele um mês. Até mesmo Kala ele chegou a flertar antes dessa se apaixonar por Pepelu. Aquilo fazia daqueles momentos a três mais especiais. Kala era uma das poucas pessoas que, ao conhecê-los profundamente, deu mais valor a Pepelu do que ao galanteador Diogo.
Contudo, para o bem da amizade dos dois, Pepelu sempre soube que nada daquilo era intencional. Sempre soube que Diogo nunca tivera culpa de ser o mais querido; e nunca o acusaria por isso. Pelo contrário, sempre buscava ser o complemento do que Diogo não conseguia ser. Os elogios, a preferência, a valorização, tudo isso era apenas uma conseqüência. Se os papéis fossem trocados, oras, Pepelu sabia que agiria exatamente do mesmo modo que o amigo.
Lógico que nem sempre ele tivera essa maturidade. Se nessa altura ele estava mais chateado por nunca poder ter retribuído à altura os favores que recebera, por diversos momentos de inveja anteriormente Pepelu torcera para que Diogo jogasse em sua cara a sua superioridade, só para que ele pudesse partir com tudo para cima do amigo.
Essas suas vontades momentâneas, no entanto, nunca ocorreram. Diogo sempre fora humilde. Meio embaraçado por mais uma vez ter tido essas reflexões internas, Pepelu resolveu mudar de assunto:
- Assim vocês me deixam tímido. Mas falando em aprontar, você ainda tem aquele seu brinquedinho favorito, Diogo?
- Está falando disso aqui? – perguntou o capitão tirando do seu cinto um chaveiro em forma de caveira com uma única chave, que estava estranhamente partida no meio.
Aquele era, sem dúvidas, um dos bens mais preciosos no qual Pepelu já pusera os olhos. Ele lembrava-se bem de quando Diogo retornou de uma
viagem à desértica cidade de Ankrahmun ostentando seu mais novo troféu.
O capitão havia marcado com alguns mercenários que o prometeram negociar consigo alguns barris do óleo inflamável conhecido pelos nativos como petróleo, ou óleo de pedra, que “brota” exclusivamente do solo daquele deserto. A carga teria sido roubada do estoque de um dos fornecedores do governo thaiense, e o preço certamente estaria muito mais baixo que o habitual.
Diogo já havia tido alguns contratempos com os mercenários de Ankrahmun e sabia que dos perigos ao qual estava sujeito. Mandou parte da tripulação preparar o Esperança para zarpar imediatamente caso precisasse bater em retirada e outra parte o acompanharia com o pretexto de fazer a contagem dos barris. Acontece que os mercenários foram mais astutos do que ele imaginava, e acabaram por roubar o dinheiro da negociação e abandoná-lo junto com seus homens no meio do deserto.
Foi quando Nornur, o deus do destino, colocou-os no caminho de um missionário fugido que deveria ter sido enterrado vivo nas areias escaldantes como punição por pregar heresias contra o Faraó, rei de Ankrahmun e representante dos deuses na terra.
Diogo e sua tripulação acabaram por salvá-lo dos comandados do Faraó e em troca ele dera ao capitão algo que compensaria qualquer prejuízo que ele já poderia ter tido em vida. Tratava-se de uma chave mágica, capaz de abrir qualquer porta. Parecendo estar partida ao meio, bastava o capitão encostar a ponta quebrada em uma fechadura que a chave assumiria o formato do segredo da porta.
- Sinceramente – falou Pepelu contemplando o chaveiro com um brilho infantil nos olhos – não sei se gosto mais de você ou disso aí.
- Eu sei, Cris. – disse Kala, a única que a chamava pelo nome de batismo – Gosto bem mais disso aí.
Todos deram boas risadas. Com suavidade Pepelu dera um beijo na barriga da esposa, onde uma saliência já podia ser facilmente notada.
O que eles não sabiam era que era esse clima de animosidade que podia ser percebido em toda Thais, num dia em que forasteiros foram bem-recebidos e venorianos perdoavam dívidas, estava prestes a ser quebrado.
··Hail the prince of Saiyans··