Capítulo narrado por Pepelu.
Capítulo 19 - Chuva de lágrimas.
Eu estava em casa. Estava em casa olhando a chuva chocar-se à janela. Pode parecer uma situação corriqueira, mas depois de tudo que eu havia passado o simples fato de estar em meu lar me enchia de um sentimento estranho; não era alegria, não era felicidade, era como se tivesse tirado um peso de minhas costas, mas não o bastante. Fui do inferno ao céu em poucos instantes e agora, afastado temporariamente da Red Rose, estava no purgatório.
Instintivamente me levantei e fui remexer nas toras de madeira da lareira. Eu não conseguia pensar no milagre que era eu estar em casa e não numa cela naquele momento; me dava angústia, o coração apertava, eu não conseguia ficar parado.
Contemplando as chamas consumirem a madeira eu lembrava das palavras de Arieswar. Eu tentava esquecê-las, mas elas insistiam em voltar à minha mente. A inquietação era perturbadora; eu levava as mãos à cabeça e parecia tentar arrancar de lá minhas memórias.
- Ainda preocupado, querido?
Minha mulher, Kala, me observava da porta do quarto, onde nossa filha dormia tranqüilamente.
- É só... – eu tentei falar – Eu não sei...Quanto mais eu tento esquecer, mas eu lembro de algumas coisas...
Eu me joguei no sofá e ela sentou-se ao meu lado. Deitei-me em seu colo e tentei esvaziar a minha mente, mas sem sucesso.
- Você vai superar. – falava ela enquanto me fazia carinho – Você é forte.
Eu estava completamente angustiado; fechava e abria os olhos com força, apertava uma almofada que estava ao meu alcance quase como se ela fosse a culpada de tudo. Eu não conseguia ficar parado, queria andar, correr, jogar tudo para o alto.
Era isso que eu iria fazer, ou era isso que eu queria fazer. Eu pensava em me levantar e logo me acomodava novamente. Precisava liberar aquela tensão, precisava esquecer de tudo e de todos. Se fosse para morrer, eu acho que teria morrido.
- Kala – tomei coragem e me levantei -, eu te amo. Você não sabe o quanto eu te amo. Você e Eurídice são tudo na minha vida. Eu prometo que nunca vou deixá-las sozinhas.
Beijei-a longamente e por um momento pensei em tirar a roupa e transar com ela ali mesmo, mas desisti. Coloquei um agasalho e me dirigi a porta.
- Espere! – falou – Quero dizer...esqueça...pode ir.
Ela respeitava minha angústia, não me pressionava nem exigia muito de mim naquele momento; tinha uma sabedoria e uma maturidade que me despertavam a admiração. Ela nunca teria mentido para o Rei, como eu fizera.
Bati a porta e senti as primeiras gotas grossas e geladas sobre a minha cabeça. Não fazia idéia de onde iria, só queria sentir um pouco mais do doce gosto da liberdade. Totalmente desnorteado, minhas pernas agiam independentemente, e só me dei conta de onde elas haviam me levado depois de um bom tempo.
Estava à porta da casa de Arieswar, completamente abandonada. Sua majestosa entrada, com lindas esculturas de estealite, outrora lustrosa e brilhante, agora já estava empoeirada e levemente consumida pelo salitre.
Lembro-me do tempo em que passava por ali e via apenas uma casa em meio a tantas outras. Talvez um pouco mais importante, verdade, pelo fato de ser de um dos guerreiros da corte; mas nada que me fizesse parar, contemplá-la e, incrivelmente, temê-la, como naquele instante.
A chuva engrossara um pouco. A água escorria pelo corrimão da escada que levava à porta e caía no chão, juntando-se às outras. Fiquei ali por um bom tempo, até que senti passos quebrarem o som agonizante da chuva nos paralelepípedos. O barulho de pés pisando em poças veio acompanhado de uma voz:
- Eu havia te pedido para evitar passar por aqui.
Era Hesperides.
- Não tenho culpa se esta casa fica no meu caminho. – retruquei.
- Não me interessa. Você não é bem vindo por aqui.
- Aqui onde? – ironizei – Nesta rua? Nesta cidade?
- Suma daqui, Pepelu.
Eu não iria a lugar nenhum. Não queria voltar à atormentante realidade; preferia muito mais sacar um arco e lutar até que o sangue de ambos se mesclasse às gotas de chuva. Ele, porém, não compartilhava dessa insanidade.
- Você já tem a liberdade que tanto queria, não tem? Então suma!
Eu senti uma chance de provocá-lo:
- Já está arrependido de ter contribuído para isso, Hesperides?
Ele ficou impassível; fora um dos que me defendeu no tribunal, mesmo que por interesses próprios, que eu sabia bem quais eram.
- Sabe por que fiz o que fiz.
- Verdade, mas acho que o tempo o mostrou que não foi a mais sábia das idéias, não?
Novamente mostrou impassividade, e dessa vez nada comentou.
- A nada lhe sou grato, Hesperides. Você me concedeu a liberdade devido às suas necessidades. Felizmente, para mim, o mundo é cruel; você está hoje amargando seus atos e Arieswar mofando numa cela suja.
- Sua glória é a desgraça de um homem honrado...que fracasso.
- Fracasso? Arieswar sempre foi arrogante, prepotente e leviano. Todo esse sofrimento ainda é pouco! Ele quase me levou para sua cova pelo puro prazer de me ver por baixo. Sujeito nojento...Vai ser consumido pelas traças! Ele não merece o ar que respira!
Ele não se contorcia de ódio, como eu queria. Por algum motivo ele se mantia estranhamente tranqüilo.
- Você sofrerá muito, Pepelu. Sua dor vai superar os limites da sua resistência, e você vai se arrepender profundamente de estar vivo.
- Reze para isso; senão você e seus companheiros que estarão perdidos.
Eu não podia imaginar o quão premonitória seria aquela conversa sob a chuva. De tão terrível que seriam os fatos que a sucederiam, só posso supor que o que se precipitava sobre as nossas cabeças não eram gotas de água, e sim lágrimas dos Deuses.
Encarando-me, ele se cobriu com um capuz e tomou seu rumo. De longe parecia uma alma penada vagando pelas desertas ruas da cidade de Thais; parecia talvez a própria morte.
Eu já havia deixado de lado todas minhas angústias e preocupações, mas com o retomar de minha caminhada elas teimaram em voltar à minha cabeça. Pensando enquanto andava, decidi que iria à Taverna; era um ponto de encontro de alguns dos meus velhos amigos, os quais eu pouco havia encontrado após o julgamento.
Chegando ao local, percebi uma intensa movimentação, o que não era de se estranhar, ainda mais em um daqueles dias chuvosos nos quais os homens aqueceriam seu sangue com rum e conhaque. Só fui ver que alguma coisa estava errada quando notei que a maioria dos transeuntes estava deixando o local, e que o fluxo de entrada praticamente não existia. Coloquei meu capote no intuito de não ser reconhecido; com aquele famigerado julgamento eu havia me tornado uma pessoa pública.
Confirmei minhas percepções ao entrar na Taverna. O lugar estava praticamente vazio, pequenos grupos se espalhavam pelos quatro cantos do ambiente e em todos eles as pessoas estavam com um ar de certa surpresa e inegável preocupação. Eu encostei no balcão onde Frodo, dono e atendente do local, manuseava algumas caixas contendo grandes garrafas de licor. Ele era uma pessoa conhecida por todos, e eu sabia de sua amizade com Arieswar, por isso evitava prolongar suas conversas, mas no momento eu precisava saber se realmente algo fugia a normalidade.
- Boa tarde, Frodo. – falei baixando o capuz – A quantas anda o movimento aqui?
Ele não abrira o velho sorriso amarelado e desdentado de sempre. Sua feições se contorceram no momento em que me identificou; percebi que ele fez o máximo de esforço para não chamar a atenção dos outros ocupantes:
- Vá embora, Pepelu. – eu tomei um susto com sua tão amistosa recepção – Para o bem de todas as pessoas que aqui estão, vá embora.
- O que está acontecendo? Eu exijo uma explicação!
Ele estava seguro e disposto a me expulsar dali. Sem querer saber de muita conversa, sacou uma adaga por debaixo de sua manga e apontou-a para o meu coração:
- Eu não quero fazer isso. Saia e tudo ficará bem.
Eu poderia torcer seu braço e degolá-lo com sua própria arma em poucos segundos, mas eu percebi uma seriedade misturada com aflição no seu olhar, indicando que ele não fazia aquilo por querer, e resolvi colocar meu capuz e partir.
Andei a passos largos, buscando inicialmente me afastar daquele lugar o mais depressa possível, mas logo algo chamou minha atenção. No centro da cidade um aglomerado de pessoas se espremia para ver ou ouvir alguma coisa. Supondo que as respostas das minhas perguntas estariam naquele lugar, eu me embrenhei em meio à multidão, ouvindo comentários exasperados e incrédulos. Fui formulando teorias até atingir a maior concentração de curiosos, e pude, finalmente, ver do que se tratava. A Corte do Rei havia posto um grande cartaz, com letras garrafais, onde se lia:
PROCURA-SE, VIVO OU MORTO.
E logo abaixo uma grande foto de um dos meus rostos mais familiares: Arieswar. Muito próximo havia outro cartaz com maiores informações do fugitivo e como se procedeu sua escapada, mas eu não conseguia ler; as letras se embolavam na minha cabeça e o mundo girava. A população, na sua maioria analfabeta, gritava e se questionava querendo saber o que de fato havia ocorrido; o barulho agudo de metais roçando as bainhas de madeira, o som de janelas e portas se fechando, o ruído rouco da armadura dos guardas da corte balançando enquanto corriam; tudo estava me causando uma grande dor de cabeça. A angústia que sentia apertou ainda mais meu coração, eu corri para casa.
Eu não podia acreditar. Arieswar estava livre, talvez tão livre quanto eu, que agora corria pra casa, pisando forte nas poças, sentido a água gelada entrar pela minha bota. Eu ainda não havia me dado conta da gravidade do fato. Até momentos atrás eu me vangloriava da sua prisão para cima de Hesperides. HESPERIDES! Ele estava tão tranqüilo; ele já sabia! Arieswar voltara para me pegar, não sei como, mas ele iria me pegar; eu sentiria ‘uma dor que superaria meus limites, e eu me arrependeria de estar vivo’. Eu tinha que chegar em casa. Tinha que levar Kala e Eurídice para um lugar seguro e encontrar o meu próprio abrigo junto aos meus companheiros de Red Rose. Virei a esquina, cheguei à porta de casa, a chuva e o suor se misturavam em meu rosto, vermelho da intensa circulação de sangue. Rodei minha chave freneticamente na fechadura e entrei. Antes mesmo de olhar parta o interior do meu lar, tranquei a porta.
Foi então que eu vi. Meu mundo desabou.
Minha casa fora completamente saqueada, e em meio à destruição total o corpo de minha esposa jazia no chão, ensangüentado. Nas paredes havia uma inscrição feita a sangue:
“Eu não mereço, ela não respira”
··Hail the prince of Saiyans··
Publicidade:
Jogue Tibia sem mensalidades!
Taleon Online - Otserv apoiado pelo TibiaBR.
https://taleon.online







Curtir: 


ta de parabens


