Tema: Coma
As votações vão até o dia 25/01.
Texto de: Bela~
A onda
Enquanto via o asfalto surgir em meio à fraca iluminação das ruas, eu massageava o volante. Meu característico jeito de dirigir, acariciando o carro. Endireitei-me sobre o banco e aproximei os dedos da saída de ar-condicionado para verificar sua intensidade. Satisfeito com a temperatura fresca do interior do veículo, descansei a cabeça no encosto e concentrei-me na música que tocava, do Pink Floyd.
Começava lenta, em um ritmo sedutor. Não queria admitir, mas eu realmente estava sonolento. Wasting my time... - a trilha sonora colaborava para minha vigília ser mais dura ainda – Resting my mind... - sacodi a cabeça para afugentar o cansaço.
Por sorte, as doses de bebida não tinham sido suficientes para confundir minha visão como da última vez. Já tinha prática naquilo, eu estaria em casa antes mesmo das três e meia. Relaxei, feliz com a noite que tivera. Pisquei mais algumas vezes para assegurar a atenção e segui por uma ruela que garantiria um bom atalho até meu destino.
No entanto, as luzes do outro automóvel aproximaram-se rápido demais para que eu pudesse fazer algo.
*****
Respiração lenta e compassada. Ligeiramente confuso, sentia que estivera cochilando por muito tempo. Decidi abrir os olhos.
A praia era belíssima: costa se perdendo no infinito, maresia envolvendo meu corpo estendido sobre a areia. Ouvi o canto de pássaros, o que me fez desejar ter asas para voar junto àqueles animais. Levantei-me.
Espreguiçando-me longamente, comecei a andar sem pressa. O que era aquilo se movendo ao sabor das ondas? Nereidas? Meneando a cabeça, livrei-me do pensamento e ri de minha fértil imaginação. Continuei a caminhar sem um rumo definido, os pés descalços sentindo o chão morno.
Tomado pelo desejo de ter o vento arrebatando o rosto, iniciei uma corrida pelo macio tapete dourado. Como era bom! Abri os braços e sorri à natureza que me envolvia. Senti que quase podia pairar como uma ave.
*****
A sirene da ambulância parecia vir de muito longe. Embora pudesse enxergar o veículo de socorro por dentro, minha visão era turva. Meus sentidos, aliás, estavam todos entorpecidos.
- Bêbado, como era de se esperar.
Ao escutar aquilo, minha vontade foi de defender-me e negar o fato de estar embriagado, mas as palavras não me ocorreram e minha boca continuou debilmente entreaberta. Assim, aguardei passivo o desenrolar de tudo.
- Um, dois, já! - meu peito passou por um espasmo e senti levíssimo choque - Mais uma vez, vamos.
Outra contração, desta vez mais fraca ainda. O desfibrilador parecia ser ineficiente. Naquele momento, o ambiente ao redor girou algumas vezes até que eu não escutasse ou visse mais nada.
*****
A desenfreada corrida me deixara ofegante. Parado, mãos apoiadas nos joelhos, testa pingando suor. Mirei a gigantesca porção azul. Por que não? Sem demora, livrei-me da camiseta encharcada jogando-a para o alto.
Ansioso por mergulhar, dirigi-me a passos largos até a água. À medida que chegava mais perto, ia diminuindo o ritmo, até parar próximo à fria espuma marinha. Respirei fundo a brisa salgada e finalmente entrei no mar.
A baixa temperatura serviu para renovar a energia perdida minutos mais cedo. Nadando para além da arrebentação, dei meu primeiro e prazeroso mergulho. Olhei para frente e vi uma esfera grandiosa e ígnea imergindo no horizonte. Sorri, em completo regozijo.
Decidi retornar e comecei a bater braços e pernas. A correnteza lutava contra mim, mas pouco me importei. De um jeito ou de outro, sem demora sentaria sobre a areia e contemplaria a chegada da noite. Já estava um pouco próximo à orla, mas tudo aconteceu tão repentinamente que mal sei como narrar.
A onda veio enchendo meus olhos, nariz e boca de sal. Tentei firmar os pés no fundo, mas não o encontrei. Procurei pela luz do sol, mas até esta havia me abandonado. Gritei, porém o som foi sufocado pelo peso de um oceano.
Quando notei, era puxado pelo forte turbilhão e penetrava nas trevas vazias da inconsciência.
Texto de: Martiny
Que se iniciem as votações!Cicatriz
Já era o quarto dia em que ouvia os barulhos da máquina. O bip se tornara uma música de fundo interminável, junto com o ritmo pesado da respiração lenta de seu filho. Não saíra do quarto desde o acidente, que o levou ao hospital em estado crítico. Quase não dormira, não havia tomado banho - nem trocado de roupas -, comia pouco e apenas bebia o suficiente para repor as lágrimas. Seu marido havia morrido a dois anos atrás, quando seu filho único tinha apenas quatro anos, e pensara que aquilo seria a última dor que sentiria em sua vida.
Estava lavando roupas com suas mãos gordas quando o telefone tocou. Deixou seu serviço para trás e foi a caminho do telefone, levando um susto no caminho ao ver seu filho, com sua fantasia de homem-aranha, correndo pela casa e derrubando, sem querer, outro vaso no chão. O barulho foi alto e o menino já estava com lágrimas de olhos.
- Porra, seu moleque - e um tapa no rosto. - Quantas vezes já falei pra não correr na casa, seu inútil? - outro, - Agora vai na lavanderia pegar uma vassoura antes que eu te arrebente. - o rosto do menino estava vermelho de um lado, com as lágrimas transbordando. Saiu correndo com as mãos nos olhos, a fim de esconder a vergonha e enxugar o rosto, e sua mãe foi ao encontro do telefone, com sua irmã do outro lado da linha. Ela trazia notícias da recente encontro que teve com o novo namorado, falando como o homem não sabia como tratar uma mulher, e como ele teve a coragem de pedir que ela pagasse metade da conta do restaurante. Apesar da curta paciência com os assuntos fúteis da irmã, aguentou quatro minutos inteiros, até que a interrompeu e disse que deveria terminar de arrumar a casa. Desligou o telefone e foi nervosa para a lavanderia, pronta para dar mais um esporro pela demora a trazer a vassoura para a sala, quando se deparou com o menino caído dentro do balde de água fria em que usara para lavar as roupas. O nervosismo se tornou em desespero, e em menos de um segundo ela havia o menino em seus braços, vendo se ele ainda respirava. Com o pouco que sabia de primeiro socorros, jogou-o no chão e tentou fazer seu coração bater novamente, mas devido a seus grossos braços e desespero, quebrou uma de suas costelas facilmente. Ainda mais desesperada, correu para o telefone e tentou chamar a ambulância, mas não conseguia se lembrar dos números de socorro. Desesperada e com medo, saiu nas ruas gritando por uma ambulância até sentir sua garganta sangrar. Poucos instantes depois - que pareciam milênios -, a ambulância chegou e, após gritar palavras incompreensíveis e apontar para sua casa aos paramédicos, o mundo pareceu perder seu chão.
Ao entrar na ambulância, não havia um músculo em seu corpo que não se contorcia em pânico. Observou sua fantasia de homem-aranha ser rasgada na área do peito, enquanto tinha que suportar ver seu filho ter o pescoço cortado, para logo em seguida um tubo de respiração entrar em sua traquéia. A cena foi horripilante; ainda podia ver o sangue do filho na navalha do paramédico, e não podia fazer nada além de chorar assustada. Podia ver um lado do peito roxo, devido à costela quebrada.
Logo estavam no hospital, onde os enfermeiros tiveram que afastá-la do filho à força para que ele entrasse na UTI. Após perceber que não poderia vencer a luta, se desprendeu dos braços dos enfermeiros e sentou-se. Recusou calmantes e copos de água nas primeiras horas, mas logo foi cedendo. Estava mais calma quando finalmente o médico veio falar com ela.
- Acompanhe-me, por favor. - O homem a guiou até o quarto em que o menino se encontrava, onde a sinfonia de bips, respirações e lágrimas começava. - Você seria a mãe do paciente?
- Sou eu
- Lamento informar, senhora, mas o quadro é grave. Devido ao longo período de falta de oxigenação no cérebro - sabe o que é oxigenação, senhora? -, seu filho se encontra desacordado, em coma. Os agentes químicos engolidos, o trauma na cabeça devido à queda e a costela quebrada ajudaram a agravar a situação. Infelizmente, as chances de sair do coma sem nenhuma sequela é quase nula. Calculamos que a chance de sair desse estado sejam pequenas, e que cada dia passado, menores as chances. Você me entende senhora?
Não conseguia falar com clareza, apenas leves resmungos sem vida, que logo foram substituídos por um silêncio mórbido. O médico continuava falando, mas não conseguia prestar mais atenção. Logo ele havia ido embora, e ela agarrou a mão do filho e sentou-se ao seu lado. A cada profunda respirava do filho ela cultivava uma esperança de vê-lo acordar a cada segundo que passava. Apenas saia de perto do filho quando as enfermeiras precisavam inserir o cateter ou movê-lo, a fim de prevenir escaras (rezava todos os dias para que ele não ficasse tempo suficiente para que elas se tornassem preocupações reais). Os psicólogos do hospital com frequência vinham tentar animá-la, mas falhavam todas as vezes. Nem quando sua irmã conseguiu fazê-la abrir a boca novamente. Apenas conseguia pensar nos tapas que havia dado no filho, da forma que ele deveria ter caído no balde, com as mãos nos olhos, correndo sem ver onde pisa, humilhado por algo inútil como um vaso. Poderia facilmente trocar sua própria vida pelo filho, mas mesmo assim o fez se afogar por um mero vaso quebrado.
Não conseguia dormir devido a consciência pesada; apenas cochilava quando seu corpo não possuía mais energia alguma. Chegou ao quarto dia em que estava naquele quarto. Pensava nas chances que o médico calculou, e como o passar dos dias diminuía as chances de recuperação. Implorava à Deus todos os dias, ajoelhava-se com a saia levantada durante horas, até que seus joelhos, ao passar dos dias, começaram a sangrar. Os funcionários do hospital ficavam cada vez mais preocupados com seu estado, até que um psicólogo entrou no quarto.
- Tome, um copo d'água. Vai te fazer bem. - Apesar de no início ela parecer distante, logo ela cedeu, e aceitou a água. Começaram a conversar lentamente em como tudo aquilo não era sua culpa, e que deveria continuar a rezar. Quando perguntado sobre as chances do menino sair sem cicatrizes desse estado, o psicólogo agilmente mudou de assunto e começou a falar sobre Deus. Ela, religiosa, se sentiu reconfortada pelas belas palavras do homem.
Inesperadamente, as máquinas mudaram de ritmo. Aceleraram de um ritmo lento para algo mais contínuo, e o psicólogo logo se levantou e chamou as enfermeiras. Pegou a mulher pelo braço e a guiou gentilmente para fora, enquanto médicos e enfermeiras entraram na sala rapidamente, em passos largos.
- O que está acontecendo?! Me larga! - olhava para trás preocupada e tentava se livrar do homem.
- Acalme-se, senhora, por favor. Deus está no comando - E, apesar de ainda poder ver os olhos preocupadas a mulher, sentiu que ela parou de reagir.
Logo após alguns minutos, o médico sai, com um rosto sério. - Você pode entrar agora, senhora. Ele está acordado, mas...
- Graças a Deus! - disse, interrompendo-o e entrando rapidamente no quarto, sem dar ouvidos. Viu os olhos abertos do menino e sentiu lágrimas de alívio saírem dos olhos, e colocou a mão nos cabelos do menino. - Mamãe te ama, ok? Me desculpe, me desculpe -. Suas palavras saíam ofegantes e baixas, como se elas sugassem toda a pouca energia que ela possuía. - Mamãe te ama muito, muito, muito, muito -, e abraçava o filho, molhando seu travesseiro de lágrimas. No meio do longo abraço, ouviu seu filho abrir a boca para tentar falar algo, mas tudo o que ouvia eram resmungos. Se afastou e olhou o filho novamente; ele estava com os olhos fixos nos dela, babando e fazendo sons incompreensíveis. Ela olhou para o médico, preocupada.
- A falta de oxigênio no cérebro causou danos irreversíveis. O poder da fala foi perdida, assim como algumas funções nervosas e alguns retardamentos mentais. - Ela notou no braço contorcido do filho e a baba escorrendo em suas bochechas. - Me desculpe.
Ela olhou para o filho retardado. O pobre menino de seis anos, que nunca mais conseguiria correr em sua fantasia de super-herói. Suas lágrimas de alívio se tornaram lágrimas de angústia, e sua garganta doía novamente pela tristeza. Olhou para os olhos do filho, inocentes, e depois para seu corpo, para as máquinas, para o braço, para seu cabelo... observava sua eterna cicatriz de culpa.
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