Um jogo de pôquer
Com a desistência dos demais participantes e a confusão envolvendo o organizador do concurso, assim como os outros, resolvi criar um próprio tópico para meu conto.Não era supersticioso, mas pela manhã já percebera que aquele dia não seria bom. Chovia desde a noite. Era realmente um dia ruim, sonolento, daqueles que se deveria apagar do calendário e murrinhar empijamado, pés descalços, cabelos em desalinho e barba por fazer... morrer temporariamente. Dias atrás perdera um amigo, companheiro do trabalho e parceiro da mesa semanal de pôquer. As notícias dos jornais não colaboravam a encontrar o otimismo perdido. Guerras, assaltos, tráfico, enchentes, gripe suína, etc. Para aumentar o tédio, um vento frio e irritante insistia em penetrar no ambiente, não obstante os esforços para vedar as frestas das janelas.
Uma cerveja... Pensou, sempre acalma e faz esquecer as chatices das mesmas tarefas, de movimentos monótonos e de enfadonha repetição. Ligou a tevê e logo lembrou de um bordão da mídia: “É isso que o povo gosta... vai começar o jogo”, como se o espetáculo realmente estivesse começando, justo naquele instante. Não estava. Era um vídeo-tape de sua memória. Hoje é terça-feira. Dia da reunião de amigos fissurados numa partida de pôquer. Marcos, Lima, Ody, Freitas e Dorinha. Continuou na introspecção. De repente, sentiu uma tonteira e tudo girando em sua volta, uma luz intensa emergiu esplendida. Parecia vindo de um poderoso refletor. Fechou os olhos e ao abri-los, paradoxalmente, viu-se cego. Naquele exato momento Mathias percebeu que não via, não ouvia nem sentia sabor. Perdera, também, os sentidos do olfato e do tato. Jamais em sua vida fora partícipe de uma cena tão aterrorizante. A situação era, realmente, de desespero. Sem tempo para raciocinar. Queria gritar, e pensava estar a gritar com plenos pulmões, mas não ouvia a sua voz.
Seguiu-se um instante não precisado e, embora lentamente, seus sentidos voltaram ao normal. Sua sala de 30 metros quadrados, talvez mais, talvez menos, transformara-se em uma grande área circular, uma espécie de anfiteatro. Uma arena a céu aberto, como se fora uma enorme concha. Ali bem no centro estava sozinho. Não estava nem sentado nem deitado. Não levitava, mas fazia um leve movimento de lado a lado, como um manômetro. Pressentia-se em tempo infinitésimo e, igualmente, de incalculável infinitude. Parecia-lhe estar num espaço onde não cabia nada, mas era ocupado por tudo ao mesmo instante. Do alto descia uma espécie de chuva que não molhava, seca também de cores e provida de luzes até então desconhecidas. Fenômenos indescritíveis por Mathias que, aparvalhado, testemunhava aquele cromatismo em tempo e espaço não convencionais. Tão irreal e assustosa que era essa vivência, que ocorreu ser personagem de um pesadelo. Sentia uma profunda tristeza, além de total ausência de pensamento e coordenação de idéias. Mas outras reações de seu corpo, muito instigantes induziam-no do contrário, de vez que, perplexo, numa astasia desconfortável, verificava estar plenamente consciente.
Numa sucessão rápida dos acontecimentos, encontrou-se rodeado por seis pessoas amigas, duas já falecidas e quatro ainda vivas. Tudo isto acontecendo com tal rapidez, que o passado, aquele instante e o porvir eram um só tempo. Ah, o tempo... uma fantasia de matemáticos e astrônomos, sugeriu a mente confusa. Todos os personagens estavam nus, envoltos em névoa transparentes. Translúcidos, os corpos físicos tinham uma visualização imaterial dos sentimentos, do caráter de cada um, exposição de suas próprias vidas, um curriculum vitae inusitado. Todos, sem exceção, gostariam de esconder algo, Mathias inclusive. Despidos das roupagens da mentira, todos portavam os trajes da verdade. O alardeado princípio ético passa a ser mera presunção na vida de mentira. Não cabia explicação de qualquer dos personagens. Nada de espanto, protesto, defesa ou acusação. Estavam todos no paraíso e no inferno a um só tempo. Não há atenuantes no mundo da verdade. O entendimento real dentro do universo irreal da verdade dava a todos esquisita sensação de alívio, como se traição, desamor, egoísmo, inveja, enfim todos os seus males tivessem sido anistiados, já que elas eram práticas comuns. Se ninguém estava isento de males, a praxe redimia a todos.
Passado o constrangimento inicial, um dos presentes propôs um jogo de pôquer. Como? Se ninguém pode blefar. Aqui todos vêem as cartas de todos. Realmente, sem a mentira não se vive, disse o outro. A mentira seria como o oxigênio. Se aqui não existe mentira, a conclusão é de que estamos todos mortos, disse outro alarmado partícipe. Estas observações alteraram o cenário da estranha assembléia, como se um comando mágico assim tivesse ordenado. Os personagens já falecidos desapareceram, e os participantes vivos se reconheceram desprovidos das visões metafísicas. A magia multicolorida havia desaparecido. O espaço ficou opaco. Uma cor fria de tempo fechado, igual a que precede às tempestades. O clima era era tenso e todos procuravam esconder o medo e a ansiedade que os assaltavam. Havia uma aparente cordialidade, constrangimento que não podia ser oculto.
Mathias não se considerava um exemplo de virtudes, mas depois da exposição sem elas, sem amarras e limitações da consciência ética e repressora, participar daquele jogo dava-lhe uma alegria perturbadora e de incitante cumplicidade. Vamos ao jogo, falou. Um jogo jogado dentro das regras, ou seja, um jogo de blefe, de astúcia e artimanhas, porém sem fiscelas. A fiscelagem é comum no jogo da vida, principalmente quando entre políticos. Noite adentro, entrando pela madrugada, a reunião transcorreu animada. Algumas discussões dos parceiros mais rabugentos, sem maiores consequências. Em um dado momento, Mathias recebeu suas cartas e, surpreso, verificou: Estavam em suas mãos Ás, Rei, Dama, Valete e Dez em sequência de ouro, o famoso “estrite-flexe” tão sonhado pelas aficionados. Apostas e repiques se sucederam. Mathias se esforçava para dissimular a emoção daquele momento sublime. Nisto algo perturbador aconteceu. Voltou ao jogo o fenômeno da translucidez. Não podia ser melhor, mas nem precisava, pensou. Estou com o jogo invencível, e ainda por cima tenho o perfeito conhecimento do jogo do adversário. Restaram dois jogadores em sua oposição. Um com um “flexe” e outro, sem nada, blefando, replicou: Seus 32 mais 32, disse, pondo na mesa R$ 640,00.
À sua frente, impassível, lá estava novamente a mentira como adversária, sem armas a apresentar, que não a dissimulação, sua razão de ser. Ansioso, Mathias esperou como nunca por este lance. Dizer ao antagonista que estava vendo suas cartas, e que ele não tinha jogo para tamanha aposta, certamente ele sorriria, aparentando muita tranquilidade. “Se acha que é blefe, paga para ver” seria sua resposta, um lugar-comum em jogos de pôquer. O certo é que a verdade nua e crua não é aceita. De outra forma, poderia repicar mais uma vez. A consciência justa, vestígios de honradez diziam-lhe: não é correto. Você está vendo o jogo dele, isto é roubo. Tossiu, sentiu a cabeça doer. Vou explodir, pensou.
Como é que é? É pra hoje? Paga ou não paga para ver? Com este atraso, devemos prorrogar o jogo por mais meia hora.
As perguntas irônicas, perturbadores, retiraram Mathias deste mundo imaginário, recompondo seus sentidos. Tudo neste mundo pode ser tão verdadeiro e falso ao mesmo tempo.
Não, respondeu firme e sereno, jogando sobre a mesa as cartas de suas fantasias.
Recebeu uma sonora gargalhada em resposta. Aquilo não estava em jogo. Ou melhor, ele é que não estava em jogo. Sentiu um choque, um calafrio. Estava sentado em frente a uma televisão. O telefone tocava.
“Alô Mathias... Estava dormindo? Vai jogar? Me parece que você está meio sonolento. Passo por aí daqui a meia hora para apanhá-lo. O jogo de hoje é na casa do Marcos.”
Mathias, diria o poeta, “acordou para a mesma vida para que tinha adormecido”.
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