Simpatia pela Tempestade
Emanoel


A chuva caia fina, quase imperceptível. Os ventos, no entanto, sopravam ruidosamente, provocando a agitação de grandes árvores e tornando aquele dia nublado ainda mais sombrio.

Fardelu torcia as mãos e portava semblante preocupado. Enquanto caminhava na direção de Carlin, parando constantemente para reler a carta amassada que trazia consigo, refletia sobre a real necessidade daquele embate que estava prestes a travar. A barba grisalha e a espada desgastada que levava nas costas evidenciavam sua experiência no combate corpo-a-corpo, porém a confiança nunca fora sua amiga.

Retardou os passos assim que avistou algumas construções, incluindo o castelo governado pela Rainha Eloise – erguido imponentemente ao leste. Pela primeira vez na vida, enquanto observava o tremular de bandeiras hasteadas, admirou sua cidade natal e desejou mais tempo para apreciá-la.

Assim que chegou ao rio que margeava o lado nordeste de Carlin, guardou a carta dentro de sua bota, agachou-se e molhou o rosto. A evidente preocupação desapareceu de sua face como se tivesse sido levada pelas águas plácidas. Decidido e preparado, levantou-se em um rápido movimento, ignorou a entrada da cidade e rumou para o cemitério que ficava ao lado, em frente a um pequeno grupo de árvores.

Após alguns minutos, o caminho de pedras irregulares deu lugar a uma trilha de terra batida que adentrava no terreno. Dois imponentes álamos, um de cada lado, guardavam a passagem.

– Você está atrasado – arguiu Aegos. O jovem de expressão sisuda e olhar profundo esperava-o sentado sobre uma lápide.

– Passei por contratempos... – respondeu Fardelu em tom vago.

O terreno era pequeno e retangular, possuía uma trilha de terra no centro, grama bem cuidada aos lados e baixos muros de pedra. Todas as lápides tinham o mesmo tamanho e forma arredondada, algumas estavam cercadas de belas flores e outras aparentemente abandonadas. Poucos metros adiante, Fardelu avistou o que deveria ser a casa funerária.

– Expulsei todos. Não teremos interrupções – afirmou o jovem, levantando-se e apontando para o nome grafado na lápide onde estava sentado. – Você deve estar se perguntando por que escolhi esse lugar. Pois aí está! Zabelin, assassinado em covarde emboscada – sua voz, naturalmente arrastada, ficava cada vez mais seca.

– Ele traiu nosso clã... – justificou o velho guerreiro. – Entregou segredos aos inimigos, provocou mortes desne...

– A família dele foi ameaçada! – gritou Aegos, interrompendo seu interlocutor.

– Você não mudou nada, continua sendo uma criança.

Naquele momento, Aegos desistiu de controlar sua raiva e empunhou uma espada longa e fina – o cabo dourado reluzia discretamente. Era o único artefato ostensivo que carregava, pois o jovem guerreiro utilizava simples vestimenta de couro, durável e confortável, porém pouco resistente.

Fardelu, calmamente, seguiu os passos de seu rival, retirou a velha espada da bainha e levantou um escudo redondo e polido até a altura da boca. A arma ofensiva apresentava diversas pontas laterais que lembravam espinhos, algumas estavam quebradas e outras sujas de sangue seco. No entanto, a peça defensiva parecia novíssima, combinava com o elmo prateado e com a armadura adornada com grandes ombreiras.

– Você sabe o que é uma guerra! Eu não tentarei me justificar – concluiu Fardelu, impassivelmente.

O primeiro movimento partiu de Aegos. Seus longos e finos cabelos negros esvoaçaram ao vento quando – em súbito ímpeto irascível – avançou brandindo horizontalmente a lâmina afiada. Enquanto defendia o golpe com o escudo, Fardelu finalmente compreendeu por que o guerreiro preferira usar vestimentas leves. Ele sabe que sou superior, pretende utilizar a agilidade para me desestabilizar e acabar rapidamente com o combate. O atrito entre os dois objetos produziu um ruído breve e irritante. Permaneceram muito próximos durante pouquíssimos segundos, até que Fardelu fez menção de ataque e provocou o recuo de seu rival.

A tensão era crescente e os três metros de distância pareciam servir como uma ponte de ligação entre os dois combatentes. Aegos arfava levemente, arrependido pela sua investida precipitada, enquanto Fardelu mascarava-se com expressão tranquila e esperava algum descuido do inimigo.

– Utevo gran lux!

A magia evocada produziu deslumbrante esfera de luz ao redor de uma terceira pessoa que se aproximava – trazendo consigo uma aljava. O velho guerreiro comprimiu os olhos – estava tão concentrado no combate que não percebeu o gradual anoitecer – e tentou compreender o motivo daquela interrupção. A conclusão só surgiu quando a moça armou uma flecha e o encarou temerosamente.

– Deixe-me ajudá-lo – finalmente falou a estranha. Fardelu percebeu que lágrimas discretas escorriam de seus olhos. – Eu posso acabar com isso, apenas... – engoliu em seco.

– Então você a conhece? – interpelou, encarando Aegos com um olhar fulminante.

O jovem encontrava-se tão nervoso e pensativo que baixou sua guarda de maneira irresponsável. Diante da situação indesejada, sentiu que toda a preparação para o duelo tinha sido em vão.

– Onde está sua honra, Aegos? – recomeçou Fardelu, visivelmente preocupado com a desvantagem numérica. Mantinha sua espada levantada e escudo voltado para a desconhecida. – Qual é o sentido de tudo isso se você não cumpre sua palavra?

– Não foi planejado! – proferiu Aegos enfaticamente. – Vá embora! É uma ordem! – prosseguiu, dirigindo-se a jovem, sem conseguir disfarçar o tom suplicante de sua voz.

Ela permanecia na mesma posição, mas desviava o olhar de um para o outro. Suas mãos vacilavam constantemente, porém sua intenção era clara.

A natureza parecia querer interferir no destino de Fardelu. A chuva, outrora tímida, engrossou subitamente, ao mesmo passo em que o sol desapareceu no horizonte e a magia de luz enfraqueceu até o ponto de emanar apenas uma leve claridade – sinal de que o efeito estava próximo do fim.

É um sinal, pensou o supersticioso guerreiro, enquanto avançava na direção da desconhecida que ameaçava sua vida. A escuridão era tanta que quase não enxergava. Concentrou-se em atacar brutalmente e eliminar o perigo, ignorando técnicas de combate, os gritos esganiçados de Aegos, as pesadas gotas de chuva que atingiam seu elmo e qualquer outro detalhe ou obstáculo que aqueles poucos metros de distância poderiam proporcionar.

Ataque e inesperado contra-ataque foram rápidos e bem sucedidos. Antes da espada de Fardelu transpassar a fina armadura de bronze e atingir o coração da moça, ele sentiu que fora ferido no ombro esquerdo por uma flecha. A dor lancinante fez com que largasse suas armas e apalpasse a região ferida, chegando à conclusão de que o projétil não tinha perfurado sua pele, mas apenas passado de raspão. Sem pensar duas vezes, concentrou-se e sussurrou a palavra mágica exura, estancando o sangue e eliminando a dor.

Aegos corria desesperadamente em sua direção. Farderlu, instintivamente, retirou a espada do corpo inerte – nesse momento, prostrado na grama – e resolveu aproveitar o momento de fraqueza emocional de seu inimigo para terminar o combate.

As espadas chocaram-se ferozmente, uma, duas, diversas vezes – ataques incessantes desferidos em curtíssimos intervalos de tempo. Lâmina contra lâmina, produziam os típicos ruídos metálicos que embalavam duelos mortais. Pingos de sangue salpicavam a grama, a espada de espinhos parecia prever outra desgraça. Apenas um deslize seria o suficiente para encarar a morte.

O jovem atacava com violência crescente, fitando seu inimigo com uma careta que misturava infelicidade e cólera. Fardelu, por sua vez, aparentava calma, mas percebia que sua força declinava inexplicavelmente. Sentia-se tonto e dolorido, perdendo mobilidade e disposição, como se sua energia estivesse sendo sugada. A batalha que parecia ganha a alguns segundos atrás, apresentava-se um enorme desafio. A cada novo ataque impetuoso de Aegos, sentia seus braços vacilarem, seu corpo pedindo por descanso.

Fardelu sabia que, naquelas condições, acabaria decepado na primeira demonstração de fraqueza. Apesar da ideia não ser de seu agrado, resolveu recuar e tentar compreender o que acontecia. Saltou para trás rapidamente e a finíssima lâmina de Aegos cortou o ar. Correu pelo terreno, tropegamente, torcendo para que a escuridão e a forte chuva encobrissem seus rastros.

A alguns metros de distância, agachou-se atrás de uma lápide e percorreu seu corpo com as mãos. Não existia motivo visível para a dor que lhe afligia internamente, mas, ao tocar a ferida seca em seu ombro, percebeu o que tinha acontecido. Dessa vez, murmurou exana pox e sentiu-se completamente aliviado – outro valoroso ensinamento de Trisha, famosa professora de magias que morava em Carlin. Considerou-se estúpido por não ter cogitado que a flecha poderia estar envenenada, mas não teve muito tempo para autocríticas.

Ouviu passos abafados e a respiração cortada de seu rival, evidências tão próximas que nem o forte vento e a pesada chuva conseguiam encobrir. Aegos aproximava-se afoitamente, cego pelo desejo de vingança.

Fardelu, mais uma vez, aproveitou o desleixo do rival, saltou em sua direção e atacou fulminantemente. As espadas chocaram-se verticalmente, depois horizontalmente – não pareciam simples lâminas, mas dois titãs medindo forças. Sem desperdiçar um segundo, aplicou intensidade absurda e – no terceiro e último choque entre as armas – desestabilizou seu inimigo. Aegos perdeu o equilíbrio e foi levemente empurrado para trás, o suficiente para que não conseguisse revidar o quarto ataque daquela sequência ininterrupta.

A dor – física e moral – que sentiu quando sua mão direita foi brutalmente decepada acabou sendo transmitida em um grito horrendo que ecoou pela noite. Fardelu poderia jurar que, naquele instante, Carlin inteira sabia do duelo que ocorria no estreito cemitério.

Os joelhos de Aegos cederam e encontraram a grama molhada, enquanto segurava seu braço direito com a mão esquerda e – desesperado – observava o sangue jorrando. O sentimento de fracasso sobrepujou a necessidade de vingança e, naquele momento, percebeu que morreria em vão. Ele, que pretendia vingar-se por um amigo, acabou presenciando a morte de sua amada e sendo derrotado de forma humilhante. A dolorosa verdade fez com que lágrimas pesadas escorressem de seus olhos.

– Ela estava grávida. Você matou seu primo, seu desgraçado... – revelou Aegos com a voz esganiçada. – Eu odeio você, Fardelu, eu odeio... – soluçava descontroladamente, atropelando a maioria das palavras.

Fardelu mantinha a espada em posição de ataque, preparando-se para o golpe final.

– Eu não sabia. Sinto muito – comentou apaticamente.

– Você é o pior... você é o pior tipo de pessoa que existe... – Aegos vomitava as palavras. – Eu tenho nojo de você...

– Li e reli sua carta, durante todo o percurso, e desejei que aquelas palavras fossem frutos de um momento passageiro de fúria. Deuses e humanos sabem que tentei evitar esse combate. Não me culpe pela sua mediocridade.

Trocaram olhares esguios durante alguns minutos, mas nada disseram. Aegos finalmente abrandou sua expressão, abaixou a cabeça e cerrou os olhos, aceitando aquele triste destino. A espada de Fardelu produziu breve zunido e decepou a cabeça do homem.

Enquanto mais sangue esguichava violentamente, a tempestade cessou; assim como a tensão inerente a todos os duelos mortais. Fardelu, que acreditava em uma profunda ligação entre homem e natureza, felicitou-se ao reparar que nenhum trovão tinha sido ouvido. É um bom sinal, pensou, imerso em sua lógica incompreensível.

O sobrevivente não perdeu tempo. Revistou os bolsos do cadáver mutilado e nada encontrou, mas acabou resgatando a espada do rival – os guerreiros do seu clã estavam cientes do duelo e poderiam requisitar uma prova do assassinato. Logo depois, recuperou seu escudo – que estava próximo ao corpo inerte da arqueira – e, antes de sair do cemitério, permitiu-se algum tempo de contemplação.

O rosto de feições suaves encontrava-se paralisado em expressão infeliz e desesperada. A moça que teve sua vida ceifada devido à imprudência, aparentava ser ainda mais jovem que seu falecido irmão. Fardelu ainda tinha dúvidas sobre a necessidade daquela matança, porém, mesmo enquanto encarava o rosto da inocência e pensava na família que acabara de destruir, não sentiu remorso.

A guerra perdurou durante décadas e originou diversos conflitos análogos. Os anos marcados por campos de batalha e banhos de sangue convenceram-no de que não existiam vencedores, perdedores ou honra inabalável. Fardelu acreditava que deveria fazer o melhor possível para continuar sobrevivendo e assim fez até o fim de sua longa vida.