Desgrama
Anônimo (Nouakchott)


Troll, troll, Jim o troll. Do pouco que sabia de muito continuava, de quem lhe bem-dizia, pouca gente confirmava. Lá no pântano de Vê vivia, dia após dia, catando mato e cuspindo verde por aí. Pouca gente sabe do que se passou mas eu vou falar agora mesmo.
- O, o, que que é isso aqui?
- Mato filho. Tô catando.
- O, o, tio, que você tá fazendo aí?
- Mato, filho. Tô catando.
- O, o, tio, que que isso tio?
- Vai te catar!
E matou o moleque. Assim que era com ele. Quem tava na hora viu tudo, pra eles tudo isso é comum. O cara surtar? Surta mesmo, pra você só ficar longe! O troll voltou a catar grama e parou pra pescar alguma coisa. Noite. Nisso que pula um peixe pra fora d'água, sem nem pedir.
Parecia um peixe normal, mas no que ele foi ver não tinha nada de normal. O peixe brilhava que nem o sol. Cada escama tinha uma cor diferente, quando ele olhava de cada lado virava outra coisa. Azul, rosa, cinza, vermelho, branco, amarelo, e muita cor que nem de peixe era. Deu verde e arco-íris adoidado, e quanto mais o troll olhava mais o peixe ficava estranho... e o peixe sumiu! Depois de brilhar tanto só ficou as escamas ali no chão, parecendo vidro quebrado. Ele foi pra perto ver que diabo era aquilo, e aí ele botou a mão naquele restinho...

Passou.

Passou a mão inteira pro outro lado. Atravessou'chão.

- Mas que... por mas mas que...

Antes de mais balbuciar, já tinha se destrambelhado de todo pra dentro do espelho. Caiu de olho fechado - se é que caiu, se é que tinha olho fechado, se é que... Ok. Deixe-me explicar. Ufa. Quando ele atravessou, ele "abriu" os "olhos" e "viu" onde estava. Pronto. Mas boto tudo entre aspas porque as coisas estavam muito mudadas. As coisas tinham cores que ele nunca viu antes, nem naquele peixe de lá. Olhou pras suas mãos e elas não tinham mais pêlos. Ele estava rosa e sentia algo estranho na cabeça, e percebeu que estava sentado. Agora: esse é o tipo de situação onde você não pode ficar sentado. Ou você deita ou sai correndo gritando de pânico, e foi isso que ele fez. Saiu correndo pelo pântano.

Só que agora, nem pântano tinha mais. Ele percebeu que estava enjaulado. Dentro de paredes de concreto, com só uma porta a sua frente. Nessa hora, ele nem lembrava mais do peixe. Pensou que tinham envenenado e armado pra ele. Pensou que tinha morrido, ou que estava sonhando. Uma tela brilhante, um monte de brinquedos, nada daquilo fazia sentido. Lembrou do menino, e aí que a porta se mexeu. Abre abre abre abre...

- Você tem que superar... se arruma. Tá atrasado. Vamos.

Falou isso uma mulher muito bonita, tão bonita que troll tinha esquecido de gritar. Nem pensava mais em fugir. Ele só pegou uma mochila que estava por ali, e seguiu a mulher... meio que por instinto. "Isso não é instinto de troll" pensou ele. "Nada aqui é de troll, pra falar a verdade"

Seguiu a mulher e depois de ter visto tanta coisa estranha só deitou numa cama móvel que ela tinha, pra descansar a vista. Quando acordou, já estava na frente de um lugar bem maior. "Essa deve ser a prisão definitiva" ele pensou. "Jogaram muitos trolls como eu por aqui, eu vejo eles entrando. Mas por quê?" Do lado dele a mulher perguntou "Você está passando bem?" Como assim? Essa era a prisão mais estranha em que ele já tinha ido. Raspam a gente, zoam nossos olhos, e ainda perguntam se a gente está bem...

Saiu da cama móvel num pulo e entrou no lugar. Seguiu pra onde todo mundo parecia ir. Subiu as escadas e entrou na jaula de uns veteranos, que foram muito simpáticos com ele, assim do nada. Ele sentou ali num canto, e nisso ficou quieto.

- Oooooi!

Chegou essa coisa pequena muito feia, já agarrando e se esfregando nele. Aquela prisão era estranha, ele era novato, mas ele não podia virar mulher na cadeia. Já sabia como essas coisas funcionavam. Empurrou a coisinha com tudo, dando uma bicuda no meio da cara. Caiu no chão duro, de barriga pra cima e da boca sangrando. - Rá! Quem mandou!

Bem, ninguém mandou mas mandaram ele sair da cela, quase que na mesma hora. Muita gente que era rosa ficou branca, e um troll que não perdeu a cor - "sortudo, deve ser o chefe daqui." - começou a gritar um monte de coisas sem sentido. " Como você faz isso com sua namorada? Mas que... vocês brigaram? Cara, isso vai dar cadeia... alguém chama a ambulância! Rápido! Você é louco...". Ele percebeu que tinha que sair rápido de lá: se a cadeia fez isso com a cabeça do cara, imagina o que faria com a dele!

Então ele saiu da jaula, e ficou ali nos corredores do segundo andar. Estava achando aquilo um saco, e se tivesse percebido que matar um zé mané qualquer ia dar tanto problema só teria respondido: Que desgrama, filho, que desgrama.

***

Ficou sentado ali olhando pro céu, lembrando dos seus tempos de detento nas torres de Venore. Muito melhor. "Pelo menos eles tinham ratos por lá." Viu um pouco de grama ali numa varanda, sem grade sem nada, a uns dez metros do chão. Troll, troll, troll, Jim o troll. O que você fez? Eu lembro de você lá nos pântanos, dia após dia, e olha agora onde você foi parar. Meio que pra descontrair um pouco, ele começou a se equilibrar lá na borda, catando um pouco do mato.

- O, o, que que isso aqui filho?
- Mato. Tô catando.
- O, o, filho, que você tá fazendo aí?
- Mato, tio. Tô catando.
- O, o, tio não! que que isso de "tio"?
- Vai te catar!

João, 18 anos. homicídio, suicídio.