Luzir - Uma pequena epopéia Rookgaardiana
Steve do Borel
E uma estrela cadente cruzou o céu.
Não uma qualquer, mas uma rápida, veloz, com o brilho tão intenso que seria capaz de ofuscar qualquer corpo que tentasse se opor em sua sublime trajetória.
Uma pena ter desaparecido tão rápido.
Alguns aventureiros tiveram a honra de quase a ver, mas tudo o que sentiram foi um repentino clarão, e a confundiram com um relâmpago ou qualquer outra coisa.
No entanto, do cume de uma montanha à nordeste de Rookgaard, talvez um dos pontos mais altos de toda a ilha, o espetáculo pôde ser visto de perto. E o ancião Hyacinth foi o único homem a ser agraciado com a visita da estrela.
Mesmo sem saber se o que via era real ou não, desejou. Suas palavras foram sinceras, ditas em um tom de voz suave e acolhedor, embora quase inaudível, de forma que apenas as paredes rochosas da montanha puderam ouvir seu mais sincero desejo.
E então a estrela sumiu.
***
Era uma bela manhã, e Sandro Dalarian acordou com o cântico dos pássaros e o suave farfalhar das folhas que caíam no outono. Era em momentos como aquele que a certeza de que Rookgaard é o lugar mais calmo e aprazível de todo o Tíbia se confirmava.
Sandro morava em um casebre rústico na parte sudoeste da ilha, um pouco distante de tudo e todos. Fazia parte de um diminuto grupo que podia chamar aquela cidade de lar, e se orgulhava disso, contrariando a opinião pública. Desde que decidiu tornar-se cidadão daquele pacato lugar, sofreu preconceito de diversas partes. Os patriotas, por não servir às potências do Grande Continente. Os aventureiros normais, por ser um tolo que não almeja desfrutar as aventuras que o espera mundo afora. Todos tinham um motivo.
A verdade é que Rookgaard é uma cidade que desde o princípio é tida como um lugar para se passar, e não para se ficar. Muitos a vêem como um simples treinamento para guerreiros antes que eles possam ingressar nos batalhões das cidades do Grande Continente, onde o real perigo se escondia. Na verdade, todos pensavam assim.
Todos exceto os rookers, pessoas que a escolheram como morada e não como caminho.
E Sandro, talvez um dos mais respeitados deles, estava terminando o seu desjejum e se arrumando para sua caminhada diária ao centro da cidade, onde os pequenos eventos costumavam acontecer (até porque Rookgaard não possuía grandes eventos).
A estrada era singela, de terra, adornada com flores, árvores e arbustos pela própria natureza. A caminhada foi serena, calma, e Sandro passou por alguns animais graciosos e alguns aventureiros perdidos. Como sempre acontecia.
A Praça Principal era um pouco tumultuada, mas muito mais pela falta de espaço do que pela concentração de pessoas em si. O comércio, as gritarias de Dixi e os sempre presentes aventureiros perdidos (que podiam ser encontrados nos mais inusitados cantos da ilha) contribuíam para isso.
Sandro passou rapidamente por ali e rumou um pouco para norte, onde se localizava a taverna de Norma, ponto de encontro dele e de seus amigos. Estavam quase todos lá, e saudaram-no com entusiasmo. Suri estava sentado em um banco em frente ao balcão, tomando um pouco de vinho, e entrou em êxtase quando o viu, com seu jeito espalhafatoso. Bradock, ao lado dele, manteve-se sentado, e o recebeu apenas com um sorriso convidativo. Ambos eram habitantes de longa data da ilha, e dificilmente podiam ser vistos tão alegres (cada um à sua maneira).
- Nossa, gente, tudo isso é alegria por me ver?
- Sheng está aí – disse Bradock, seco e sem rodeios, enquanto apertava a mão de Sandro.
- Sheng, o aprendiz? – perguntou ele, espantado.
- Ele mesmo – respondeu Suri. – Alec acabou de confirmar, mas teve que sair para resolver uns assuntos. – Sheng era um monstro que se auto-denominava aprendiz do poderoso Minotauro Feiticeiro, e aparecia de tempos em tempos em Rookgaard, não se sabe exatamente por quê. Diz que guarda segredos de seu mestre, e que a ilha se tornará deles. Mas sempre acaba derrotado por algum rooker e volta para onde quer que tenha saído.
- Eu vou até lá – disse Sandro, decidido, esperando alguma negativa.
- Sim, nós sabemos – disse Suri – E não vamos te impedir.
- Achamos que você está enfim preparado – completou Bradock.
Os dois pareciam já ter discutido aquele assunto suficientemente consigo mesmo.
- Nossa... Então já estava tudo preparado para essa hora e só eu que não sabia?
- Exato.
Aquele foi um dos diálogos mais rápidos que os três já tiveram antes de Sandro partir para o norte, fora da cidade, onde se encontrava a caverna que o minotauro habitava. Seus amigos não o acompanharam, e ele preferiu assim. Na verdade, ambos já sabiam que ele preferiria assim. Queria matar o monstro sozinho, sem ninguém por perto, e viver a solitária glória.
Desejaria apenas a presença de uma pessoa, mas que infelizmente não poderia estar lá.
Passou pela ponte que separava a cidade dos territórios além dela, e Dallheim, guarda da ponte, percebeu a tensão em sua face.
- Está tudo bem, jovem cavaleiro? – perguntou ele, colocando sua grande lança em seu caminho.
- Melhor impossível, Dal. Agora, deixe-me passar, que depois eu te conto tudo. – empurrou a lança para o lado e começou a correr.
Passou por um pouco de floresta, não muito densa, e entrou em uma caverna de corredores estreitos e escuros. Retirou de sua mochila uma tocha para iluminar o local, e segurou com a outra mão sua espada.
Aqueles eram momentos de tensão. Sandro chutou para os lados alguns ratos e aranhas que habitavam a entrada do lugar e se deparou com um trasgo – medonho para a maioria dos aventureiros – mas fraco para ele. Com apenas dois movimentos, cortou o monstro ao meio, que tombou ao chão como uma pedra gigante, ecoando por toda a caverna.
Conforme descia para os andares mais inóspitos e profundos, encontrava monstros cada vez mais fortes e horripilantes, mas sempre matava-os com certa facilidade. Chegou a um labirinto repleto de lobos e ogres, e teve a certeza de que o momento se aproximava.
Levou algum tempo para encontrar a saída, e avistou uma desgastada escada de madeira. Desceu-a e o que viu foram mais lobos e ogros, mas agora haviam também minotauros.
Depois de, com um pouco mais de dificuldade, liquidar todos, chegava a derradeira hora.
Uma escada de mármore manchada de sangue levava ao que chamavam de “Inferno dos Minotauros”. Desnecessário explicar a razão.
Sandro respirou fundo e uma golfada de coragem encheu seu coração. Desceu a escada brandindo sua espada, com um grito de guerra monumental.
Logo num primeiro momento, se viu cercado por inúmeros minotauros, todos enfurecidos. Jogou sua tocha em um deles, que queimou e tombou ao chão, mas ainda havia muitos. Foi aí que sentiu uma rajada azul de energia o atingindo em seu peito, e pôde perceber Sheng vindo em sua direção. Em um único golpe, cortou superficialmente três minotauros, e conseguiu se desvencilhar para ver a fera.
Tinha mais de dois metros e meio de altura, sendo um pouco maior que os demais minotauros. Possuía uma pelugem vermelha sobre a cabeça, que se assemelhava a um cabelo humano e descia até sua lombar. Segurava um imponente cajado mágico e tinha o corpo todo tatuado, com inscrições e símbolos que Sandro não conseguia decifrar.
Seu momento de contemplação foi interrompido quando dois minotauros o ergueram e o arremessaram contra a parede, o que o fez deixar sua mochila com mantimentos e poções de cura cair no chão. Arrastou-se para tentar pegá-la, mas um bando de hienas apareceu não se sabe de onde e devorou-a. A batalha estava muito mais dura do que se imaginava.
Sandro, contudo, não desistiu. Com alguns movimentos de espada, conseguiu facilmente feri-los e faze-los bater em retirada. Agora, só restava ele e Sheng. A fera manteve distância, e atacava com rápidas rajadas de energia e de fogo. Algumas eram absorvidas pela cota de malha que o aventureiro usava; outras acertavam-no em cheio. Mas o Aprendiz era fraco, de pouca resistência, e sem a proteção dos minotauros logo caiu ao chão, com um urro de dor.
Sandro ajoelhou-se, fincando a espada no chão como forma de apoio, e contemplou o chão ensangüentado da caverna. Pensou que sua aventura havia chegado finalmente ao fim, e que a partir daquele momento poderia considerar-se um verdadeiro rooker.
Mas o que aconteceu a seguir foi inacreditável.
Ainda de guarda baixa, ajoelhado, ouviu um som que parecia o de uma porta destrancando. Espiou sobre os ombros, mas tudo o que via era uma escuridão profunda. No entanto, um novo barulho surgiu, rítmico e crescente.
Quando Sandro percebeu que eram passos já era tarde demais. Até hoje não sabe se o que o apunhalou pelas costas foi uma porrada ou uma nova rajada de energia. O fato é que, depois disso, uma ofuscante luz surgiu e ele não se lembrou de mais nada.
***
Alguns dias haviam se passado desde o misterioso ocorrido. Sandro havia acordado em sua casa, com as feridas completamente saradas e como se nada tivesse acontecido. Contou sua aventura para todos os seus amigos, que acreditaram e o apoiaram (talvez por causa do vinho, mas isso não vem ao caso).
Naquele exato momento, contudo, ele estava solitário na orla de Rookgaard, em frente ao túmulo de Khone.
Sandro era seu melhor amigo, e o viu morrer em seus braços, há exatos oito anos, por uma doença desconhecida. E ainda não havia conseguido superar essa dor. Jogava flores em seu túmulo, quando sentiu alguém aproximando-se.
Era Hyacinth.
- Lembro-me dele como se fosse ontem – disse o eremita, com sua voz rouca e impactante, apoiado em uma rústica bengala.
- Eu também... – ratificou Sandro, ainda olhando para o mar, com a vista sobre o túmulo – Está vendo aquela ilha? – apontou para uma ilha envolta por fogo – Khone dizia que um dia chegaria até lá, e que encontraria os mistérios mais profundos de Rookgaard.
- Era um sonhador...
- Eu acreditava nele.
Eles não trocaram mais nenhuma palavra. Hyacinth apenas repousou flores em seu túmulo, e ficou a fitar o horizonte ao lado de Sandro. Os dois viram o pôr-do-sol juntos, em uma tarde em memória de Khone. E, de alguma forma, o jovem rooker entendia que aquele encontro estava intimamente relacionado com sua misteriosa sobrevivência na cripta do minotauro.
A chama rookgaardiana ainda estava acesa, e a ilha ainda veria inúmeras aventuras que seriam contadas nas próximas gerações por bardos e falariam de amizades, minotauros e espadas. Como a que acaba de ser contada.
E uma estrela cadente cruzou o céu...