Há, finalmente capítulo realmente novo.
Na minha cabeça vocês já tinham lido esse capítulo várias vezes...

É que só faltava o final dele e nunca saia nada. Mas agora saiu, e agora vocês lerão.
Espero que curtam.
Ah! Degustem a leitura, não sejam afobados ao lerem.
Cap. VI
A escuridão dominou todo seu ser, indo dá visão às sensações, da lucidez à loucura, da vida à morte. Ele não sabia onde estava, não sabia se estava. Seu corpo oscilava numa maré sem água e sua pele dormente era sufocada pela pressão do espaço... Era a morte ou apenas um sonho ruim. Mas, diferente de um pesadelo, ele não acordava e, para sua felicidade, o desconhecimento de como aparenta a morte não o levou ao desespero.
Quando as idéias tinham se acostumado àquele nada, o cavalgar ritmado de um cavalo começou a ecoar em sua cabeça, aumentando progressivamente, até o som passar ao seu lado e continuar circulando-o. O barulho veio acompanhado de ferro, ou melhor, cheiro de ferro; o metal estava em seu corpo, impregnado em sua carne, colado em seu rosto, dominando seu olfato e viciando-o naquela privações de sentidos. Porém, com o tempo, os outros perfumes do ambiente chegaram ao seu cérebro, inconfundíveis, incomparáveis: era o aroma do amor que declamam os poetas, o perfume das rosas que às mulheres encantam, o cheiro das águas salgadas do longo mar, o perfume delicado de um corpo feminino, o aroma de um ambiente de vida e felicidade.
O barulho seco e medonho do cavalo se substituíra por um leve e gracioso cantarolar de aves, o cheiro do ferro se dissipou, o sorriso se alargou e a saliva já era sentida... Seu olfato fora complementado, sua boca agora degustava. Reconhecia o salgado do mar, o doce do amor, o ácido de um corpo feminino.
A pressão da escuridão relaxou seu corpo e, finalmente, suas pernas mover-se-iam naquele êxtase de sensações. Mas andar para onde? Não tinha sua visão, necessitava-a. Nunca havia imaginado de como o fato tão normal de enxergar era essencial e de como tudo era incompleto sem ela. O tempo passava. A audição, o olfato, o paladar e o tato ficavam mais fortes, mas nada da visão, nada da luz penetrar seus olhos e ocasionar a ação mais simples e linda do corpo humano.
Aos poucos, seu desespero reaparecia e sua cabeça voltava a pedir o nada, a privação total...
Porém, a escuridão clareou. Algum deus prezava por ele, agora podia ver...
E viu. Viu tudo. Enxergara a raiva entoada pelos guerreiros, o resplandecer do sangue que jorrava dos corpos, o suor do esforço brilhar nos longos braços, a desfiguração total de um corpo mutilado, o horror de um ambiente de morte e tristeza. Uma guerra. Os olhos arregalaram-se, os cheiros se misturaram, o olfato se confundiu, o paladar se amargou e o tato se incitou. Não era mulher, não era o mar, não eram rosas, mas era o amor. Ou era o ódio? Nem ele sabia. A raiva estridente que balançava as espadas e esporeava os cavalos era, para ele, o seu amor, o seu desejo, a sua mulher e o seu êxtase. Sua boca pedia sangue, sua mão metalizada mexia a espada necessitando de sangue, seu nariz queria sentir o cheiro do sangue, sua cabeça pedia o sangue! A necessidade para sentir tal líquido vermelho-púrpura era tanta que suas pernas caminharam, seus olhos visaram e sua respiração cortou o ar.
Lá estava ele, sua vítima totalmente desprotegida com os olhos azuis turvos e os cabelos loiros desgrenhados, cambaleando no meio do campo de batalha com uma tontura; sem espada, sem escudo e sem armadura.
Movido pelo instinto, ele moveu seu corpo metálico e negro rapidamente, respirando depressa e sedento por dor. Sua vítima o viu, o encarou e o reconheceu; tentou fugir, mas os passos eram lentos.
Ele chegou para o abate. O infeliz virou-se e ambos os olhos arregalaram-se, ambas as bocas gritaram, mas só um braço se moveu, só uma espada atacou. A lâmina o atravessou. Cortou da cintura ao ombro e dividiu o corpo do infortunado em dois.
A boca do ser negro se escancarou, a gargalhada veio e a sensação de prazer estava no clímax. Não era só aquele cheiro de morte que o fazia feliz, mas a sensação de superioridade, a sensação de não ter limites. Necessitava de mais, precisava sentir aquilo mais uma vez.
Virou-se ávido para outra vítima, girando sobre os calcanhares para atacá-lo, porém o giro se estendeu, se transformou numa espiral, o revirou e ocasionou um vômito.
- Gostou? - a voz era assustadora.
- Que... Quem? O que? - replicou ele, ainda tossindo os restos de comida, totalmente confuso.
- Você gostou? Gostou do que sentiu?
Ele não respondeu, apenas levantou a cabeça e começou a procurar o interlocutor da conversa. Focalizando sua visão, se localizou deitado no chão de barro de um ambiente sem saídas e fracamente iluminado por chamas de fogo em suas extremidades. Pedras retorcidas que mais pareciam árvores saiam da terra e as verdadeiras árvores, as poucas que existiam, estavam secas e fracas. Escorpiões, aranhas, insetos passavam rapidamente e se escondiam na lama do chão. Tudo isso o incomodava, mas uma coisa o desesperava: não havia interlocutor.
- Estou esperando a resposta... - o som estremeceu seus tímpanos e ecoou no salão.
- E... Eu... Quem é você? - perguntou ainda assustado e confuso.
- Eu perguntei primeiro. Diga-me se gostou do que acabou de ver.
Sua memória começava a funcionar novamente. Aos poucos, lembrava-se daquilo tudo, de como era prazeroso, de como o deixara feliz apesar de parecer horripilante. Mas aquela voz e o fato de não saber de onde ela vinha mexia com cada nervo de seu corpo de uma forma nada agradável. Suas mãos suavam dentro das luvas, seus pequenos pêlos das costas se eriçaram e seu coração bateu tão forte que ele sentia que a qualquer momento ele cairia morto ao chão.
- Me diga, quem é você? O que está fazendo comigo e onde você está?! – forçou certa raiva, tentando camuflar o medo.
- Você já está me irritando...
- Me diga, quem é você?!
- Não seja tolo, estúpido! – a voz ressoou ensurdecedoramente, fazendo o corajoso guerreiro literalmente tremer. – Você acha que não sei que está se derretendo de medo?! E você acha que eu vou acreditar que você não me conhece?!
- Mas... Mas eu não te conheço.
- A moça está gaguejando de medo! – desprezou – Será que você não percebe que essa sua parte é totalmente ridícula?! – falou a voz totalmente enfurecida. – Uma donzela ficaria emocionada com essas suas atitudes!
Não houve respostas. O silêncio ressoou.
- Não irá se defender, mademoiselle? Patético... – a voz parou e por um momento deu a notar que ela pensava, que a voz onipresente avaliava a situação.
- Sabe, – continuou repentinamente – você realmente não deve saber quem sou... Então me deixe dize-lo com os mínimos detalhes para que nunca mais esqueça.
O guerreiro não se mexia e, mesmo se tentasse, não conseguiria. Estava paralisado com aquilo tudo, só conseguia escutar seu interlocutor que parecia se divertir com a conversa.
- Eu nasci quase na mesma época que você e cresci vendo você crescer. Sempre tentei fazer parte da sua vida, e até consegui em alguns momentos, mas a moça em você sempre chamava mais sua atenção. Não sei... Apesar de saber que era de mim que você mais gostava, ela era a mais recompensadora, vamos assim dizer.
Só que agora... – uma risada baixa e interna foi escutada com clareza. – Agora eu finalmente consegui fazer parte definitivamente de sua vida!
Sabe, Farrus, eu cansei! Cansei de ser humilhado, de ser disfarçado, de ser maquiado por você! Você sempre me apresentava com outro nome, com outro rosto... Mas deixe eu me apresentar para que não cometa mais enganos.
- Não sou o amor, muito menos a compaixão; não sou a empatia, nem me assemelho ao medo que tanto te aflige! Eu sou o que você sempre usou e sempre chamou de lealdade! Eu sou, meu caro amigo, o seu querido e prezado ódio! E, agora, não adianta tentar me cobrir com qualquer outra parte meiga de você, porque eu as comando, eu as lidero e eu as liderarei pelo resto de nossas vidas! Esqueça o seu nome, esqueça seus ideais! A partir de hoje, você sou eu e eu sou você!
A voz parara, como se tentasse respirar um pouco, e Farrus, como se estivesse seguindo o ritmo de cada palavra, desmoronara em si mesmo, congelado, sem mais se importar com o medo. Mas, aos poucos, seu coração voltava a acelerar, seus olhos reabriram-se e seu corpo se ergueu. A boca começou a abrir e o cérebro a sair do vazio.
- E não fique com medo de mim – naquele momento ele soube. A voz amedrontadora o dominara, era ele o seu próprio interlocutor –, afinal, você já me usou e sempre quis me usar de forma verdadeira...
Susto! Sede! O corpo suado levantou-se desesperadamente enquanto o rosto queimado pelo sol da tarde procurava freneticamente, ignorando a tontura da insolação, o rio que ele sabia que estava por ali por perto. Não perdeu tempo pensando no que estava imaginando antes ou durante o desmaio, nada importava agora a não ser a necessidade de água.
Olhou para os muros distantes de Lonsam, viu a posição do sol, localizou algumas árvores conhecidas e, então, correu loucamente na direção do caminho do pôr-do-sol. A garganta seca ardia a cada respiração e as pernas, ainda fracas, amoleciam a cada passo, mas, por fim, seus olhos conseguiram enxergar a claridade azul do pequeno filete de rio que cortava a planície verde.
Alívio. Não iria morrer para uma besteira...
Não esperou chegar ao pequeno rio para começar a retirar sua incômoda armadura que, naquele momento, só parecia um extremo estorvo. A cada passo, uma parte de metal ficava no chão. Luvas, ombreiras, torso, cota de malha, calças... Tirou tudo até ficar com as simples e puídas roupas de algodão.
Não agüentando o peso do próprio corpo, se jogou na terra às margens do riacho, arrastando-se até a água e finalmente, saciando a maldita sede.
Sorria enquanto bebia a mais fresca e limpa água que bebera na vida. Estava feliz, realmente estava. Ele sabia que nunca estivera tão feliz quanto àquele momento.
Arrastou-se mais um pouco, enfiou a cabeça na água e, ao retirá-la, esperou de olhos fechados, gargalhando, toda a água escorrer de seus cabelos, purificando-o, limpando-o. Se sentia uma criança ao ganhar um brinquedo novo, repetindo a brincadeira e rindo cada vez mais.
Finalmente parou e, quando a água do último mergulho da cabeça escorreu por completo, enxambrando seu rosto, abriu seus olhos. Seu reflexo no rio era claro como o produzido pelo mais perfeito espelho. Cada traço, cada cicatriz, cada pêlo, cada ruga era visível. Seus olhos negros brilharam e sua boca vermelha abriu-se num sorriso amarelo. Finalmente, falou:
- Não se preocupe, eu gosto de você.