Cap. IV
Meu rosto estava colado na mesa de madeira e minhas narinas inalavam o forte cheiro da pequena poça de vinho, que se formara perto do copo tombado, quando a dor de cabeça acordou-me do sono profundo.
Recuperando-me da sonolência, levantei a cabeça e me deparei com as mesmas pessoas das lembranças borradas de horas atrás. Porém, em vez de pessoas cantantes e ativas se embebedando, vi homens caídos banhados pela lama e mulheres nuas dormindo graciosamente nos lugares mais improváveis. A orgia tomara conta do lugar e derrubara até os guerreiros mais fortes.
Ainda cambaleante, levantei da cadeira e caminhei ao balcão da taverna. Atrás deste, Dleunar jazia caído e inconsciente, como todos os outros do bar, e com uma mulher com a boca semi-aberta, agarrada em suas pernas, babando nos pêlos de seu membro flácido.
Lembrando de um lema antigo da taverna que dizia: “Se estás de ressaca. Cure-a bebendo.”, peguei uma garrafa e a levei a boca sem hesitar, derrubando o líquido escuro e quente na garganta, acabando com a secura e, posteriormente, com a dor que apertava meu crânio.
Minutos se passaram e meu braço já levantava a terceira garrafa. As pálpebras pesadas, que embaçavam a visão e aumentavam o sono, lutavam para se manterem abertas e os olhos avermelhados procuravam o meu novo amigo pelo bar. Não o encontrei.
Por um momento, lembrei da expressão de ódio que flamejava em suas pupilas quando Eleno VI pronunciava suas palavras, mas logo apaguei isso de minha mente. Ele, como eu, estava muito bêbado e, além do mais, ninguém era louco o suficiente para desafiar o rei.
- Por Eleno! – bradei para os moribundos da taverna, levantando a garrafa de cerveja.
Ele não era louco...
* * *
Os passos pesados ecoavam pelas ruas escuras da cidade de Lonsam e a lâmina branca do machado de duas mãos sonorizava de forma estridente com o chão aquela marcha. A boca abria-se e fechava-se constantemente produzindo uma cantiga baixíssima, quase um sopro:
Cavaleiros, que mataram
Com corte alvo do machado
Majestosa espada, perfurado
Os inimigos q’odiaram
O homem caminhou pelas ruas da cidade durante alguns minutos, fazendo com que todos os guardas de plantão ignorassem sua presença. O olhar vago, o cantarolar baixo e o caminhar lento era típico de um bêbado qualquer.
De repente, o homem se calou e os ruídos produzidos pelo machado cessaram. Com uma expressão de raiva, ele admirou as trêmulas bandeiras, iluminadas por piras de fogo, localizadas nas muralhas que cercavam o castelo real. Este ficava localizado em uma ilha ligada por uma ponte ao resto da cidade e possuía torres em cada vértice do grande muro. Abrindo um pequeno sorriso, continuou sua caminhada em direção àquela fortaleza, passando pela pequena ponte e deparando-se com o segurança daquela noite.
- Aon... Aonde pensa que vai? O rei está... Dormindo agora. – falou o soldado em meio a bocejos, levando sua mão ao peito do homem supostamente ébrio.
- Você também deveria estar...
A resposta seca só fez sentido quando o olhar fundo do cavaleiro se tornou lívido. Num movimento indefensável, o homem segurou e torceu o braço do soldado, fazendo-o gemer de dor e girar sobre os próprios calcanhares, parando de costas para seu agressor. Desesperado, a vítima correu sua mão livre à bainha, mas não encontrou o que desejava.
Com uma força inimaginável, o cavaleiro de machado alvo acertou a nuca do guarda com o cabo da espada, fazendo-o cair lentamente e inconsciente.
- ... Durma bem. – falou o homem com um sorriso no rosto. – Depois lhe devolvo a espada.
Sem perder tempo, pegou seu grande machado e encaixou a espada roubada em uma fresta de seu cinto de couro. Ele sabia que não tinha muito tempo para que os outros guardas notassem o que fizera e reforçassem a segurança falha de um atípico dia depois de uma vitoriosa batalha. Por isso, saiu em disparada ao encontro do rei.
Subiu escadas não vigiadas, percorreu corredores e escondeu-se de outros guardas – também muito sonolentos – até chegar ao quarto real. Sem cerimônias, arrombou a porta cuidadosamente e deparou-se com o lugar mais bonito que já vira: o quarto possuía quadros espalhados por todas as paredes; uma grande e bonita pele de urso branco no centro; as janelas estavam espalhadas harmoniosamente com a mobília e deixavam penetrar os raios graciosos da bela lua; e dezenas de tesouros, como espadas, elmos e dinheiro, jaziam largados pelas mesas e guardados dentro de baús abertos.
Ao adentrar-lo, parou ao lado de um dos pés da cama. Esta era de madeira, com figuras celestiais talhadas em toda sua extensão e possuía um colchão de algodão e palha coberto por uma colcha vermelha.
- Quem é você?
A voz inconfundível saiu de suas costas e o assustou. Surpreender ao invés de ser surpreendido... Falha.
- Vamos, diga-me, quem é você? O que você quer aqui?!
Silêncio.
- Responda o que você quer e talvez deixe você viver! – exclamou o rei, agora impaciente.
- Respostas... – respondeu.
- Vire-se, cumprimente-me e pergunte. Faça como todos os outros fazem. Mostre respeito pelo seu rei.
- Rei... – falou o cavaleiro num tom de desdém, virando-se para seu interlocutor logo em seguida. Este estava a dois metros de distância e vestia trajes de dormir, seus cabelos estavam desgrenhados e sua aparência era de alguém que não dormia há séculos. – Que respeito mostraria eu para um rei que nem o próprio povo ele respeita? Que respeito eu mostraria a alguém que vendeu a própria honra, juntamente com a de todos nós?
- Do... Do que você está falando? – indagou com um ar de surpresa nos olhos.
- Você sabe do que estou falando... Sabe até mais do que eu.
- Juro pelos deuses que não sei do que se trata esta conversa... – falou ainda mais surpreendido. – Aliás, não sei nem o que o senhor está fazendo em meu quart...
- Jura!? – perguntou arrogantemente, interrompendo o rei e sentando em sua cama logo em seguida. – Eleno, você acha que eu vou acreditar que essa sua cabeça inteligentíssima, típica de um mago charlatão, não sabe do que estou falando?
Não houve respostas. Durante segundos, o barulho dos dois pares de olhos que se encaravam e brigavam a distância foi o único som que ecoou no local.
- Me diga, porque deixou nós lutarmos se iria fazer isso? Porque nos convenceu a odiar outro povo e fez com que derrubássemos a um outro exército? – continuou o cavaleiro, deitando o resto de seu corpo na cama.
O rei sorriu com a audácia daquele homem, mas logo fechou as expressões, falando em seguida:
- Seu rosto realmente faz diferença no meio da multidão, sabia?
- O que? – a pergunta surpreendeu o guerreiro, fazendo-o levantar a cabeça para contemplar o rei. Este estava caminhando para o outro lado do quarto.
- Seu rosto. – continuou o rei, parando em uma escrivaninha, abrindo a gaveta e retirando uma espécie de fumo de dentro. - Ele é... Impactante. – falou sentando numa cadeira que estava próximo. Em seguida, levou o fumo aos lábios e, com um cochicho pelo canto da boca, uma pequena chama de fogo saiu da ponta de um de seus dedos, acendendo o narcótico. - Desde a hora em que te vi bradando aquelas palavras pelos seus falecidos amigos, eu sabia que você se tornaria um problema.
- Ah! Então, finalmente, vai deixar de se fingir de bobo. – falou o homem levantando o seu tronco, sentando na cama de novo. A conversa estava tomando o rumo que ele queria.
- Você não entenderia se eu te explicasse o porquê de tudo que te incomoda. – disse calmamente.
- Não entenderia? Eu entendo. Eles nos atacaram, pegaram nossas mulheres e riquezas e depois fugiram. Nós perseguimo-los, matamos a muitos, ganhamos a batalha e, a vitória total seria o próximo passo! Era a nossa vingança! ... Então, você, num ato de heroísmo, acaba com isso tudo! – a raiva estava começando a aflorar. Sua cabeça se movimentava negando constantemente e seus dedos batiam ritmados seus joelhos. - Que droga de rei é você que sacrifica seus subordinados por alguns trocados? Que prefere um espólio a defender a honra de seu povo com a vingança, mesmo quando essa já está em mãos?!
- Sou um rei como qualquer outro do passado. Faço o que todos fizeram. – falou num tom de desapontamento.
- É isso que gostaria de entender... A covardia, o medo de conquistar. Porque não ser diferente de todos os outros? Porque não... Isso é triste.
- Você tem que entender... Acordos subjugam um povo e os deixam a mercê de outros. Tu só não consegue enxergar. Nós os dominamos, os conquistamos... Só que politicamente. – falou o rei, confiante.
- Mas eles não pensaram em domínio político quando deixaram nossas mulheres viúvas e nossas crianças sem mães! – o tom de voz saiu alto, surpreendendo o homem.
A nuvem de silêncio tomou conta do lugar, aumentando a tensão do guerreiro e amenizando os pensamentos do rei.
- Seja lá qual for seu nome, - começou indiferente em relação aos gritos. – as batalhas só começam os conflitos, o que os terminam é o...
- Domínio?! Mas que droga! – interrompeu aos gritos, levantando da cama. – Não era só a droga do domínio em jogo! Era também a honra! O amor!
- Qual o seu problema?! Por acaso você sente prazer com a guerra? Você sente prazer em matar? – interpelou o rei no mesmo tom, sem levantar da cadeira.
As palavras surtiram efeito na sanidade do cavaleiro. Num acesso de fúria, largou seu machado em cima da cama, sacou a espada que estava presa em seu cinto e voou para cima do homem. Parou a lâmina brilhante a poucos centímetros de sua jugular e colou seus olhos negros nos olhos azuis dele.
- Se você não nos vingar, eu mesmo farei com que Eleno VII o faça.
As palavras ameaçadoras, o metal frio da arma branca e o olhar furioso do homem não o assustaram. Sua boca estava abrindo-se para falar algo quando gritos saíram da porta aberta e penetraram o lugar.
- LARGUE A ESPADA! AGORA!
Sem olhar para os soldados, o cavaleiro continuou parado, olhando fixamente nos olhos dele. Sua boca estava começando a sibilar uma nova frase, mas, desta vez, ele foi o interrompido.
- JÁ DISSE! LARGUE A ESPADA!
O cavaleiro, então, cochichou algumas palavras para o rei em meio aos gritos do soldado, se afastando lentamente com um sorriso de felicidade e um olhar extremamente psicótico no rosto. Aquele, por sua vez, estava com uma expressão de extrema dúvida e sua boca se preparava para dizer algo. Mas não houve tempo. Em poucos segundos, o homem já havia sido retirado, os soldados haviam arrumado a bagunça e tudo havia voltado à suposta normalidade.
- Desculpe o incomodo, Vossa Majestade. – falou um dos homens que permanecera no local. – Foi uma falha minha e me responsabilizo por tudo.
- Não se preocupe. – falou pacientemente o rei, levantando-se da cadeira e colocando a mão no ombro do soldado. – Apenas faça com que esse homem não pise mais nesta cidade. Ele não a ama e, também, ele é perigoso... Não quero sujar minhas mãos de sangue por causa dele.
- Sim, senhor. Tomarei as providências.
O guerreiro saiu rapidamente do quarto, fechando a porta suavemente e deixando o rei num turbilhão de pensamentos.