A Herança de Tibiasula
Era quase meia-noite, quando Nienor, a mãe de Angelina e de Galdor, chegava a sua casa, ofegante.
— Angelina! Angelina! — gritava Nienor, aos prantos, batendo na porta. — Onde você está?
A jovem Angelina, que há dois dias completara seus quinze anos idade, saiu apressada da cama; chegou à porta de sua casa e destrancou-a apressadamente.
— Oi... Mãe! O que houve? — perguntou Angelina, assustada. Nienor estava com um ferimento grave na perna, e seu rosto estava coberto de fuligem.
— Não temos tempo fi... filha! — gaguejou Nienor, chorando. — Eu quero que você se esconda na despensa, junto com o seu irmão.
— Mas... — tentou argumentar Angelina. Galdor, que acordara com as vozes alteradas de sua irmã e de sua mãe, apareceu na cozinha, bocejando.
— Mamãe! — exclamou Galdor, caindo no choro.
— Não temos tempo para explicações — disse Nienor, tentando manter a calma. — Angelina, faça aquilo que eu lhe pedi e...
Nienor mal acabara de falar, quando uma forte explosão na casa vizinha fez a casa estremecer. Algo estava se aproximando, e a morte podia ser sentida no ar.
— Agora! — gritou Nienor.
Angelina e seu pequeno irmão, Galdor, esconderam-se na despensa. Nienor cobriu a porta com uma cortina e esperou que o pior acontecesse. No instante em que seus filhos se acomodavam no minúsculo esconderijo, a porta de sua casa foi aberta com violência. Silêncio. Angelina trancou a respiração de seu irmão. Por uma fresta, Angelina conseguia vislumbrar um homem alto, com um grande manto branco. Sua visão limitava-se a cintura do indivíduo.
— O que temos aqui... — disse o homem, com uma voz suave, analisando Nienor. — Ninguém mais irá ficar entrar nós? - perguntou o homem, maliciosamente.
— Não — respondeu Nienor, sem segurança. — Voc... você matou meu marido, não me resta mais nada! — disse Nienor. O ódio podia ser notado em sua voz.
— Matem-na! — disse o homem, impiedosamente.
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— Angelina, acorde! — exclamou Lynda, dando uma forte pancada na mesa onde Angelina estava encostada, dormindo.
— Não! — exclamou Angelina. — Ela não! Leve-me! — sua voz era um misto de terror e angústia. Lynda se assustou com a cena e tentou tranquilizar Angelina.
— Você sonhou novamente, querida? — perguntou Lynda, suavemente.
— Sim. O mesmo sonho. O mesmo pesadelo. O que restou de meus pais — disse Angelina, com os olhos marejados, recobrando a consciência.
— Foi há tanto tempo, Angelina... — disse Lynda, tentando ajudar ajudá-la. — A morte de seus pais, o ataque a Thais; tudo isso não deveria mais atormentá-la — disse Lynda, com firmeza. — Dez anos se passaram, os moradores de Thais apagaram esse momento trágico e seu irmão já é um homem, acabou de completar dezessete anos. Você, minha querida, terá um futuro brilhante como sacerdote da nova cidade construída no norte de Tibia.
— Você tem razão, minha amiga — disse Angelina, enxugando as lágrimas do rosto. — Onde foi que paramos?
— É assim que se fala! — respondeu Lynda. — O grande aprendizado dos sacerdotes é a prática do desapego. Espero que você, amparada pelo perdão, liberte-se daquilo que lhe desanima — disse Lynda, carinhosamente. — Bem, íamos começar o terceiro capítulo do livro cinco, que fala a respeito dos povos que desistiram da guerra na época do deus...
Lynda foi interrompida. Um elfo, de cabelos dourados e olhar profundo, adentrou o templo de Thais.
— Desculpem-me pela intromissão, mas o capitão Bluebear disse que eu poderia encontrar Angelina aqui — disse o elfo, com altivez. — Aliás, eu me chamo Karith, e sou o capitão dos navios de Yalahar.
— Olá, Karith — disse Angelina, levantando-se para cumprimentar o elfo. — Eu sou Angelina. O que trás você aqui?
— O grande Azerus, governante de Yalahar, precisa de seus serviços — respondeu Karith. — Imagino que você esperava minha visita na próxima semana, como os mensageiros haviam combinado, mas Azerus precisa de um sacerdote para o seu templo o quanto antes, e devo levá-la hoje.
— Entendo... — analisou Angelina, olhando para as suas mãos. — É agora ou nunca! Bom... você pode me esperar? Irei recolher minhas roupas e chamarei meu irmão. Iremos juntos! — disse Angelina, alegre.
Uma hora depois, Angelina já estava no porto de Thais, ao lado de seu irmão, Galdor. Ela e seu irmão levavam poucas coisas, pois, segundo Angelina, a recém-construída cidade de Yalahar lhes daria a oportunidade de começar uma nova vida.
— É aqui que eu me despeço de você, que... querida — disse Lynda, chorando. — Espero que você encontre seu caminho, e você também, Galdor — disse Lynda, virando-se para Galdor. — Venham, quero abraçar os dois. Prometam que vão me escrever!
— Claro! — exclamou Angelina, abraçando a amiga. — Em breve, voltaremos para visitá-la. Que os deuses a abençoem, Lynda! — disse Angelina, sorrindo. Depois de todos se despedirem, Karith entrou em seu barco e içou as velas.
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— Karith já foi buscá-las, senhor Azerus — disse Palimuth, com seriedade. — Em breve, Angelina e Galdor estarão sob o seu poder.
— Era o que eu esperava... — disse Azerus, apreciando um dos seus golems. — Esperei dez anos por esse encontro. A excitação é inevitável. Agora, sabendo que os dois estão vivos, e que o jovem Galdor está à caminho de Yalahar, poderei por um fim em mais um obstáculo — disse Azerus, sorrindo.
— Como devo recebê-los? — indagou Palimuth.
— Da mesma maneira de sempre, Palimuth — respondeu Azerus, sorrindo maliciosamente. — Trate-os com cordialidade, assim como você trata os outros aventureiros que enganamos. Não será a primeira, nem a última vez, que você desempenhará este papel, não?
— Certamente que não, senhor — respondeu Palimuth, sorrindo.
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O vento estava a favor. A viagem de Thais a Yalahar foi tranquila, sem muitos problemas. Após oito longos dias, em um final de tarde de verão, Angelina foi acordada por Galdor.
— Acorde irmã! — disse Galdor, animado. — Karith disse que estamos chegando.
Angelina foi ao convés e viu algo que a espantou. O barco estava adentrando em um grande porto. Atrás do porto, erguia-se uma grande construção. Luzes amarelas emanavam vale. Tudo era grandioso. Karith amarrou seu barco no cais e Angelina, assim como seu irmão, o seguiram.
— É impressionante, não? — indagou Karith. — O grande Azerus planejou cada detalhe de nossa cidade. Você está vendo o pequeno templo ao lado daquele barco? — Karith perguntou a Angelina.
— Sim — ela respondeu.
— É ali que você irá trabalhar — disse o elfo, sorridente.
— É adorável! Eu amo o mar. E será de grande auxílio quando eu ensinar os jovens aventureiros a respeito da história de Tibia. Onde estamos indo, Karith? — perguntou Angelina.
— Levarei vocês a Azerus. Ele precisa deixá-los a par das mudanças e das diretrizes da cidade — respondeu Karith.
Os três desceram os degraus do porto e adentraram na cidade. Cada lamparina, cada casa, cada pequeno detalhe da cidade, impressionava Angelina e seu irmão. Eles nunca haviam visto nada de tamanha proporção e beleza. Alguns moradores da cidade acenavam para os dois. O ar da cidade era puro e o mar podia ser ouvido à distância. Um turbilhão de ideias perpassava as mentes de Angelina e Galdor. Eles estavam diante de um futuro esplendoroso. Doce ilusão...
— Estamos chegando ao castelo de Azerus — disse Karith. — Antes, temos que falar com Palimuth. Ele trabalha para Azerus e nos dará permissão para entrarmos no castelo.
Ao entrarem, Palimuth os recebeu com alegria. E abriu as portas do castelo.
— Espero que dê tudo certo, Angelina — disse Palimuth, confiante.
Por dentro, o castelo era ainda mais impressionante. Um grande jardim ficava no meio da construção e o ambiente era elegante. Angelina e seu irmão estavam maravilhados, até que, antes que pudessem perceber, um grande robô se avolumou em frente aos dois. O susto foi inevitável. Angelina e Galdor se esconderam atrás de Karith.
— Fiquem calmos — disse Karith, sorrindo — Este é só um dos servidores de Azerus. Não irão lhes fazer mal.
— É assustador! O que eles são? — perguntou Angelina, sorrindo forçadamente, recuperando-se do susto.
— Azerus é um Yalahari inteligentíssimo — explicou Karith. — E seus servidores são parte de sua genialidade. Os golems foram criados para serem seus guarda-costas e, sobretudo, para defender Yalahar — disse Karith, enquanto os três caminhavam e o golem os seguia. — Algumas pessoas dizem que, no passado, eles serviram aos propósitos de guerra de Azerus, mas isso são somente boatos. Bem, é aqui que eu fico, voltarei para o porto. Siga e você chegará à sala onde está Azerus. Boa sorte! — disse Karith, sorrindo.
— Obrigada por tudo! — disse Angelina.
Juntos, Angelina e Galdor entraram na sala. Ao entrarem, encontraram Azerus, o senhor de Yalahar. Ele estava guarnecido por dois golems, ambos parados.
— Entrem — disse Azerus, com sua voz suave.
A voz de Azerus lembrava Angelina de algo, algo que, nos recônditos de seu subconsciente, abalava-a.
— Olá, senhor — disse Angelina, cordialmente — Eu me chamo Angelina e este é meu irmão, Galdor.
— Olá, senhor — disse Galdor, fazendo uma reverência.
— Olá, Galdor — disse Azerus, com os olhos brilhando. — Pode me chamar “Azerus”, Galdor. Vejo que você é um rapaz perspicaz e inteligente, é de pessoas assim que Yalahar precisa. Antes que eu converse com a sua irmã, indico que você siga um dos meus golems. Ele irá levá-lo para conhecer a cidade.
— Cla... Claro, senhor! Quero dizer, Azerus — disse Galdor, constrangido.
— Isso, rapaz. Sinta-se em casa — disse Azerus, com calma.
Enquanto Galdor saia do castelo, Angelina observava Azerus, com curiosidade. Foi pega de surpresa tanto quanto Galdor.
— E você — disse Azerus, sorrindo. — Espero que tenha gostado de nossa cidade, agora será seu lar, se assim você desejar.
— Claro que eu aceito, senhor — disse Angelina, empolgada. — Já posso ir para o templo? — indagou Angelina.
— Era exatamente isso que eu iria sugerir a você. Temos muito que fazer! — respondeu Azerus.
Já havia anoitecido quando Angelina saiu do castelo e dirigiu-se ao templo, próximo ao porto. Seus pensamentos voavam... tudo estava perfeito. De repente, algo sobreveio sua mente, algo que sempre a atormentara, algo que, em sua voz suave e incorpórea, seguia seus pesadelos. Choque e medo. Seus pais. Azerus. A armadilha fora armada habilmente. Angelina e seu irmão estavam presos, assim como Nienor fora, há dez anos, presa em sua casa pelo desconhecido, ou melhor, por Azerus, o Yalahari. Angelina não pensou duas vezes, saiu correndo pelas ruas de Yalahar. Um silencio aterrador assolava a cidade. Angelina começou a chorar, desesperada. Estava sozinha, rodeada de inimigos e longe de seus amigos. Chegando ao castelo, deparou-se com Palimuth. Ele estava na porta do castelo.
— Palimuth — disse Angelina. — Preciso que você me ajude a encontrar meu irmão. Você sabe me dizer onde ele está? — perguntou Angelina, tentando se controlar. Palimuth riu. Sua risada ecoava nos pátios da cidade.
— Você não aprende, não é Angelina? — indagou Palimuth, com desprezo. — Seu irmão terá o fim que merece, assim como você. Meu senhor esperou dez anos pela vinda de vocês, não será agora que você botará tudo a perder — disse Palimuth.
Antes que Angelina pudesse responder, algo a levantou pelo pescoço e a jogou na parede do castelo. Um grande golem estava parado em sua frente. Ao tentar levantar, Angelina levou outro golpe, na cabeça. Foi o suficiente para deixá-la desacordada.
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— Soltem-me! — gritou Galdor, assustado. — Angelina, ajude-me! — Angelina estava sentada em uma cadeira, em frente à Galdor, com os olhos inexpressivos.
— Nada do que você disser vai fazê-la voltar a si — disse Azerus, confiante. — Fiz questão de, pessoalmente, apagar todas as lembranças da mente dela. Em breve, a mandarei para o continente tibiano. Avisei a Lorbas, o monge, que ficasse atento quando a hora certa chegasse. Os monges também estão do nosso lado, rapaz idiota — disse Azerus, vendo a expressão espantada de Galdor. — Mas para você, eu tenho um destino diferente, algo que deixará você sob o meu controle, para sempre!
Os golems amarraram Galdor sobre uma grande mesa de pedra, vendaram os seus olhos e taparam sua boca. Um senhor, com uma barba volumosa, dirigia-se a mesa, trazendo um frasco com uma poção esverdeada e fumegante.
— Tamerin — disse Azerus. — Trate de terminar logo com isso. Finalmente vejo que seu conhecimento a respeito do cruzamento de animais nos foi útil. A poção possui algum antidoto? — indagou Azerus, curioso.
— Não, senhor Azerus — disse Tamerin. — A poção transformará o rapaz em um orc, e nada poderá ser feito para revertê-la.
— Ótimo! — respondeu Azerus, satisfeito.
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Duas semanas depois...
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— Senhor Azerus, trago notícias de Lorbas — disse Palimuth.
— Fale, Palimuth. O que o monge tem a me dizer — disse Azerus.
— Lorbas mandou uma carta dizendo que conseguiu prender Angelina. Como combinado, Angelina seguiu as suas instruções e foi para a Catedral Escura. Lá, disse estar seguindo uma ordem da humildade, e entrou no território dos monges. Foi fácil pegá-la e aprisioná-la, ela não reagiu — contou Palimuth.
— Era como eu esperava... — disse Azerus, absorvendo a notícia. — O controle que estabeleci sobre a mente de Angelina foi eficaz. Ela não se lembra de seu passado e realizou exatamente aquilo que ordenei...
— E o “garoto”? — perguntou Palimuth. — Continua dando problemas?
— Faz parte de nosso disfarce, caro Palimuth — disse Azerus. — Como orc, e aos cuidados de Dorbin, podemos ficar de olho em Galdor, ao mesmo tempo em que apagamos sua identidade de Tibia.
— Por que o rapaz, senhor? — indagou Palimuth. — Você é poderoso, poderia matá-lo facilmente.
— Sim, eu poderia — disse Azerus, friamente. — Mas o rapaz contém algo que eu quero. No passado, Palimuth, quando os deuses haviam despertado, Tibiasula foi destruída por Zathroth, o Grande. A morte de Tibiasula deu origem aos quatro elementos fundamentais do mundo tibiano. Em seu último suspiro, algo a mais saiu do âmago de sua alma, uma pequena parte de sua vida. Ninguém estava ciente disso. Nós, os Yalahari, guiados por Variphor, descobrimos que Tibiasula lançou parte de sua vida no vácuo, e lá, esperando por um humano digno e de coração puro, essa pequena partícula de energia da deusa voltaria à vida, no corpo de um ser humano. Achávamos que Maeglin, o pai de Galdor e Angelina, fosse o homem que a lenda contava, pois ele vem de uma linhagem nobre. Por isso, o matamos. Estávamos enganados! Nienor, com prudência, e para a nossa sorte, escondeu seus filhos na hora certa. Variphor havia me dito que parte do espírito de Tibiasula continuava vivo e, além disso, descobrimos que, com o espírito do rapaz em mãos, teríamos um trunfo para trazer a vida um poderoso um aliado...
— Que aliado? — perguntou Palimuth, interrompendo Azerus.
— No leste de Tibia encontramos, no fundo do mar, um grande templo submerso... — disse Azerus, com o olhar distante. — O demônio... As mil faces...
Palimuth empalideceu. Azerus sorria.