Concurso Taverna do Roleplay - 2010
Concurso Taverna do Roleplay - 2010
Categoria Off Tibia:
- Acordar - Steve do Borel
- Aquarela do meu Brasil - Drasty
- Malditos Sejam - Ldm
- "... Mas livrai-nos do mal, amém" - Thomazml
- Medo - Meltoh
- O Negro Destino de Marrom - Professor Girafales
- Os Áureos Campos de Centeio - Manteiga
Categoria Tibia:
- A Batalha nos Campos da Glória - Thomazml
- Cerco em Carlin - Meltoh
- De Heróis e Vilões - Professor Girafales
- O Fantasma do Corsário - Drasty
- Sem Título - Ldm
Categoria Poemas:
- Cordel - Wu Cheng
- Lanças - Meltoh
- Leviatã - Manteiga
- Meio Púrpura - Steve do Borel
- Poesia - Lucius Cath
- Quatro Gotas de Sangue - Drasty
- Roubaram minha Menina - Thomazml
Aquarela do meu Brasil - Drasty
Aquarela do meu Brasil
Drasty
– A branca serve pra que?
– Confia em mim, moleque, tu nunca vai usa a branca.
– Fala de novo então, pra eu tê certeza.
– Presta atenção, não vou repeti de novo essa porra. A vermelha é pra quando os alemão tá subindo. A preta é pra avisa que o morro tá em guerra. A azul é pra anuncia pros boy que a mercadoria chego.
E em seguida o Negão batia o revólver na coxa para ter certeza que tinha dito tudo. Depois caminhava pela laje, encostava o corpanzil na sacada e olhava o sol bater no morro. As dezenas de casas emaranhadas na encosta com mais cores que o arco-íris. Quando chovia forte ele achava que a montanha viria abaixo, lavando todas as casinhas e engolindo todas as pessoas. Afinal, aquelas construções não eram fortes – feitas de tijolo e cimento – e haviam sido feitas sem sequer um engenheiro para projetá-las. Foram montadas do suor daquela gente humilde esquecida no pôr-do-sol do bairro nobre que lá embaixo – na civilização – jazia.
“Bando de filhos-da-puta” pensava. “Fingem que se importam com agente, mas tão é cagando se agente vive igual bicho”.
O menino respirou fundo e recolheu as cinco pipas deitadas no chão. Seguindo o outro, vagou pelas passarelas arquitetadas pelo acaso da favela em que cresceu. Conhecia cada esquina, cada dobra, assim como sabia o nome de todos que ali moravam. Para ele, gente de bem, trabalhadora e esforçada. Sabia quem eram as “ervas”, como chamavam aqueles que optavam por seguir caminhos mais sombrios. Embora soubesse que o Negão fazia parte desse grupo, tinha para si que se tratava de um bom amigo e entendia os motivos que o levaram a se juntar ao Napoleão.
Napoleão era o dono do morro, se é que o morro podia ter um dono. Não era o tipo de pessoa com quem se tem um vinculo de amizade, nunca se podia esperar muita coisa vindo dele. Seu reinado tinha trazido a favela uma paz momentânea. Ele causava tanto medo à polícia que as investidas destes tornaram-se escassas até que quase não aconteciam mais. Há duas semanas, um grupo de quatro PM’s subira o morro para cobrar dinheiro do Zé, dono do bar. Nunca mais se ouviu falar desses quatro coitados, o Napoleão mandou matá-los e jogar seus corpos no rio que corria do outro lado da encosta. A delegacia só viria a encontrar os cadáveres meses depois.
Dessa forma a vida na favela ia sendo levada. O povo fingindo ter paz e a polícia fingindo não ter nada de errado lá.
Napoleão possuía diversos homens de confiança, entre eles o Negão, seu braço-direito. Ele buscava a mercadoria toda sexta-feira à noite e, também era quem cuidava de todo problema que os clientes pudessem criar. Com seu compadre achando solução para tudo, o Napoleão dormia tranqüilo enquanto enchia os bolsos.
O moleque sentia o Negão mais nervoso nos últimos dias, desde que ouvira na televisão a notícia da força especial, cuja polícia montava para subir o morro. A coisa estava ficando feia, tinha gente comentando até da possível presença do exército na missão. Ele sabia que se houvesse um confronto desse tamanho, seu amigo talvez não sobrevivesse. Seu coração doía em se conformar, afinal a paz do Napoleão não podia durar para sempre.
– Agora que cê trabalha pra nós tu vai ter que arranjar um apelido – disse.
– Pode se qualquer merda mesmo? – perguntou o moleque.
– Qualquer merda que tu quiser, moleque.
– Xuazinégue pode? Sempre quis ter esse nome.
– Essa porra é foda de fala, pensa em algo mais fácil, moleque.
Com um peso estranho nos olhos o garoto respondeu triste:
– Vai ser Moleque, cês só me chama assim mesmo.
O Negão riu calorosamente.
Empinar pipas não era difícil para o Moleque, brincava disso sempre, a diferença era que agora se tratava do seu ganha pão. Praticamente só a pipa azul subia até os céus. Quando o brinquedo surgia no topo da montanha dançando nos ventos demorava poucas horas para os clientes surgirem em massa. Pode acreditar, havia artistas de TV, filhinhos de papai e meninas vestidas como bonecas. De cima da loja do Napoleão, o Moleque trazia todo tipo de gente, parecia mágica.
Pouco a pouco ele foi ficando mais entendido dos assuntos da boca e se não fosse pelo zelo do Negão, o garoto embocaria nos mesmo caminhos tomados por tantos. Mal sabia ele, que isso viria a salvar a vida do menino das pipas.
Na tarde de uma quinta-feira cinzenta, o Moleque chegara à loja e notara a ausência de todos os vendedores. Napoleão e Negão também não estavam. Atônito com a incomum falta de estardalhaço no local, subiu a ladeira que dava para seu observatório e contemplou a enorme encosta se afogar em sombras. Na rua avistou uma movimentação estranha, havia carros de polícia e muitas luzes iluminando a cidade. Num susto, ele pegou a pipa vermelha e a lançou contra o ar. Seu corpo se encheu de pavor, não ventava. Nem uma brisa se quer ousava cortar o ar.
Esforçou-se para por a pipa nos céus, mas era impossível. Então decidiu buscar outro lugar para empiná-la. Tomou todas nas mãos e disparou morro a baixo. Enquanto descia pelas muitas vielas e esquinas, começou a ouvir barulhos repetidos estourando contra as paredes e carros. Decidiu sair da rua principal da favela, ali estava perigoso demais para se locomover, por isso adentrou uma estreita passagem que desembocava no bar do Zé. Totalmente camuflado pelas sombras, o Moleque avançava no seu trajeto. De repente, parou. Alguns metros a sua frente havia um corpo estirado contra a mureta de tijolos. Para sua surpresa, morto na sua frente, estava o Napoleão. Três balas penetraram seu peito, uma delas bem no local do coração.
O Moleque sentiu uma mistura de satisfação com pesar e por hora não lamentou ou comemorou a morte do seu chefe. Simplesmente continuou a correr, dessa vez ainda mais rápido. Seguiu assim até tropeçar em algo grande e cair.
– Ai porra.
Era o Negão. Deitado de bruços como uma jaca que acabara de cair de uma árvore.
– Moleque, é tu ai?
– Sô eu Negão. Tu tá bem, irmão?
– To todo fudido, moleque. Os alemão me acertaram.
– Cê vai morrer? – perguntou, embora conhecesse a resposta.
– Num sei. To me sentindo fraco e ta tudo meio frio e meio escuro – o Negão estava morrendo, tinha sido acertado por mais tiros que o dono do morro. Cinco nas costas e mais dois no peito. Só estava curtindo seus suspiros finais, como quem fuma o último cigarro antes de largar o vício.
– Moleque, cuida da tua vida, tá bom? Não faz merda como eu fiz não – disse tossindo.
– Tá bom, Negão.
Depois disso, um silêncio se estabeleceu. Um vento começou a soprar forte contra o rosto do menino. Ele escalou um compensado de uma casa daquele beco com as pipas de baixo do braço. Tomou uma nas mãos e arremessou contra o vento. A rabiola se desdobrou aos poucos e o brinquedo foi subindo. No céu da favela sem dono a pipa branca reinava, enfim sozinha.
"... Mas livrai-nos do mal, amém." - Thomazml
"... Mas livrai-nos do mal, amém."
Thomazml
- É John, você ta fodido – sibilou uma voz maligna, ecoando pelo pequeno cárcere. O ar estava frio, e não havia nenhuma fonte de luz para iluminar o local. John levantou a cabeça, assustado. Estivera deitado num amontoado de palha, que ele chamava de cama. Não dormia direito desde a semana anterior, o que provocara profundas olheiras em sua face magra e pálida.
- Quem está ai? – perguntou, num sussurro rouco. Sua voz, muito pouco utilizada nos últimos dias, saiu arrastada e pesada. Estava ofegante, com medo. Olhou para os lados, tentando ver a origem da voz grave. – É mais um guarda? – lamuriou-se – Já disse tudo o que eu sabia! Não sei mais nada! Por favor, não façam isso comigo!
O homem esquálido começou a soluçar, tremendo o maxilar e deixando escapar um filete de baba sobre o queixo peludo.
- Não John, não sou um guarda. Sou um... conselheiro. Um... amigo dos loucos. – respondeu a voz, pronunciando as palavras num tom intensamente zombeteiro.
- Mas eu não estou louco – murmurou o homem, arregalando os olhos, pensando na tenebrosa possibilidade. Será mesmo que não estava louco? Não era esse o veredicto do rei? Sua cabeça tremeu, e seus olhos cansados se encheram d’água.
- Claro, afinal, falar com uma voz imaginária é uma prova de que a pessoa é sã – ironizou a voz. John deixou uma lágrima rolar pelo rosto sujo. Então era verdade, ele era um louco.
- Você não existe? – perguntou, trêmulo, o homem. A voz soltou uma gargalhada fria, como uma criança maligna que consegue seu intento torpe. – Se existo? Não estou falando contigo neste exato momento? – respondeu a voz, com uma entonação jocosa.
- A pergunta, John, não é se eu existo. A pergunta é: até quando você vai existir? – a voz declarou a pergunta e soltou risadinhas mal abafadas. O homem abriu a boca ressecada, sem conseguir dizer a resposta. Outra lágrima escorreu pelo rosto magro.
– O que houve? O grande pensador não tem resposta? Deixa eu te ajudar: HOJE! – berrou a voz, no ouvido do prisioneiro, que soltou um gemido e se encolheu.
- Isso mesmo John, hoje você vai morrer. Sabe, é interessante isso! Porque, se você fosse religioso, estaria feliz por morrer e ir aos céus. Mas, não! O senhor perfeição, que clama ter a sabedoria da ciência lógica, nega Deus. E, pelo mesmo motivo que é levado a morte, não encontra consolo nela. Ironia, não? – a voz continuava, impiedosa.
- Não tenho medo de morrer – o homem respondeu, olhando para o chão. A voz riu, desdenhando da resposta. Até mesmo ele, John, duvidava do que acabara de dizer. Engoliu em seco e mordeu os lábios, impotente.
- Não tem medo, John? Realmente não tem medo de morrer? Não tem medo do que pode... vir? – insinuou, maliciosamente, a voz. O prisioneiro virou a cara como se tivesse levado um tapa. Não tinha certeza de nada, sentia-se abandonado por tudo, seu intelecto, sua convicção e seu brilhantismo.
- Vou te dizer uma coisa, John, é melhor você estar certo. Afinal, se existir um inferno, é muito provável que você vá para lá – falou a voz, num tom de um amigo que confessa uma coisa íntima. Mas esse clima confissão foi logo quebrado com um risinho malévolo da voz. O prisioneiro gemeu, sofrendo em suas terríveis dúvidas.
- Realmente, morrer por besteiras... se ainda fosse morrer por verdades! – suspirou a voz. O homem sentiu o desespero aumentar, agarrando a cabeça e arregalando os olhos. A voz riu de novo.
- Não... não! Eu não vou morrer por mentiras! Tudo o que eu disse é verdade! Tudo! – gritou o homem, mais para se convencer do que para qualquer outra coisa. Suas certezas, seus princípios, tudo, tudo se desvanecendo ante a cruel verdade da voz.
- Verdade? Qual verdade que disse? Que Deus não existe? Que o.... povo, é governado por um Rei que não dá a mínima para eles? – perguntou a voz, fingindo interesse.
- Sim! São verdades, inquestionáveis! – bradou o prisioneiro, pela primeira vez conseguindo ver um ponto lúcido em sua mente. Uma ponta de esperança, na qual ele agora estava agarrado firmemente.
- Inquestionáveis? São mentiras, são falácias! Quem é você para dizer que Deus não existe? Se ele não existisse, porque você, herege, será morto? Se o rei não dá a mínima para o povo, porque ele vai os presentear com um espetáculo hoje? – vociferou a voz, destruindo de vez a esperança do homem, que desatou a soluçar, balançando a cabeça, entregue ao desespero.
- O papo até que está bom, mas... ouça! Passos no corredor! – de fato, um barulho crescente de passos chegava da porta. Esta foi bruscamente aberta, deixando entrar um resquício de luminosidade. Porém, dois soldados logo encapuzaram o prisioneiro com um pano preto fedido, amordaçando-o.
- São seus últimos passos, John. Qual é sensação? – perguntou a voz, num tom falsamente curioso. – Ah! Esqueci, você está amordaçado. Sabe porque, não é? Porque você é um herege, e pode dizer coisas ruins para o povo. E sabe o porquê de estar encapuzado? Para não fitarem seus olhos esbugalhados, quando pender na corda - O homem, que cambaleava, sendo empurrado rispidamente pelos soldados, tentou falar uma coisa. Foi calado com um forte sono na sua costela.
-Shhh! Quietinho, John! Não precisa falar, eu sei o que você iria dizer. Iria dizer que o que você está fazendo é para o povo. – a voz soltou outro risinho de desprezo. A claridade ofuscou os olhos derrotados de John, mesmo encapuzado. Deviam ter saído para o pátio externo da prisão. O coração do condenado batia forte no peito magro. De repente, ouviu um rugido. O povo estava lá, gritando obscenidades parar ele, xingando-o.
- Vê o que o povo quer de você, John? Eles estão pouco se fodendo para suas teorias mirabolantes. Não dão a mínima para suas conspirações e falácias. Eles querem ver você pendurado, se mijando, enquanto morre, balançando na corda. – a voz continuava, acima dos ruídos intermináveis da massa, ao redor. John começou a chorar, embora não pudesse ver o povo. Sua respiração era rápida, entrecortada por soluços. Seus músculos tremiam e sua boca estava seca.
- Como você é tão detestável, John, nem vão ler sua sentença, vão direto para o enforcamento. Pena você não ter nenhum amigo para segurar teus calcanhares enquanto balança na corda. Sabe, o corpo humano agüenta diversos minutos, até horas, pendendo na corda. Isso se o laço não for tão eficiente. Dará tempo para você fazer todas as dancinhas que souber.
O carrasco colocou a corda, e firmou o laço. John chorou e olhou para os céus, levando logo um soco na cabeça, para ficar parado. Fechou os olhos, começando a rezar o pai nosso. O povo se calou, na expectativa.
- ... seja a feita a vossa vontade ...-
- Adeus, John – cortou a voz. O chão desapareceu, um corpo tombou e a multidão urrou.
O Negro Destino de Marrom - Professor Girafales
O Negro Destino de Marrom
Professor Girafales
Marrom, o pangaré, caminhava tranquilo pelo pasto, após os longos goles d'água que tomou no bebedouro. A grama estava verde, bem viva, após as chuvas da semana anterior. Foi de repente que Marrom se levantou sobre as patas anteriores, guinchando assustado. A cobra causadora do susto logo recuou, também assustada.
― Eita Marrom, não viu que sou eu? ― Disse a cobra.
― Ai Nádia, assim me mata do coração! Achei que era cobra malvada e não cobra amiga.
― Sabe que eu nem sou venenosa, e mesmo que fosse não iria nunca machucar um amigo.
Suspirando aliviado, Marrom perguntou:
― Mas então Nádia, o que tá fazendo aqui?
― Sabe como é né Marrom. Vim aqui visitar o gramado. Tá bonito, a chuva e o esterco de você e das vacas teve bom efeito.
― Pois é ... Eu vim aqui relaxar também, daqui a pouco vou levar o patrão lá no curral.
Algumas vezes por semana Marrom ia ao curral com seu patrão, para que este e os peões pudessem fazer os serviços da roça, como ordenhar o rebanho bovino. E lá vinha o patrão, nos seus quarenta e poucos anos parecia mais velho por causa da exposição as intempéries. Como sempre estava com a barba mal feita, fios grisalhos misturados aos fios negros. Usava um boné surrado com a propaganda de algum candidato a vereador, uma camisa xadrez e uma botina meio enlameada.
― Até mais Nádia, vou lá botar a cela e levar o patrão ao curral.
O patrão estendeu a mão e acariciou levemente seu cavalo predileto. Colocou nele o freio e com a corda o guiou até o barraco, onde o celou e terminou os preparativos para o passeio. Depois do córrego onde tinha sombra e água fresca, o curral era o local predileto de Marrom. Não pelo que podia fazer no curral em si, mas pelo caminho, no qual sempre via as bonitas éguas do fazendeiro vizinho.
Os dois, cavalo e cavaleiro então puseram-se a caminhar até o curral. Este não ficava muito longe. Havia somente dois pegadores no caminho, e entre eles o pasto no qual as vacas costumavam ficar se alimentando. Já afastados do barracão onde o cavalo foi celado, e da casa-sede do terreno, eles chegaram à primeira porteira. O cavaleiro não precisava descer para abri-la ou fecha-la. Bastava que o cavalo se posicionasse lateralmente para que ele fizesse o trabalho.
Os dois estavam agora no pasto estavam lá também todas as vacas. Surpreso, Marrom falou com uma delas, ainda com um pedaço de grama pendurado na boca:
― Ei Jurema, num era pra vocês estarem no curral?
― Nenhum peão veio buscar a gente, Marrom, hoje não é dia de tirar leite.
― Mas então porque eu estou indo lá com o patrão?
― Sei não Marrom... Quem tá lá é aquele peão novo, foi lá de trator...
― Eu hein...
E continuaram andando. Ao longe Marrom viu o motivo que lhe fazia ficar feliz sempre que precisava ir ao curral. Estavam ao lado da cerca, em outro terreno, 3 éguas:
― Oi Marrom, indo ao curral?
― Sim Amazona, é pra lá que vou. Estranho que as vacas não estão lá...
― Não?
Marrom sentiu uma leve chibatada no lombo. Era o patrão lhe apressando:
― Desculpa Amazona, tenho que ir.
Mais alguns minutos e eles estavam na porteira para o curral. Novamente o patrão a abriu e fechou de cima do cavalo, sem necessidade de descer.
Marrom viu o curral vazio, o chão sujo de bosta, e o trator parado no gramado ao lado de uma pequena goiabeira. "Porque o peão não veio no cavalo Damião?", "Porque só estou eu aqui?". As dúvidas povoavam a cabeça de Marrom, intrigado com tudo que estava acontecendo. Já dentro do curral, o seu dono desceu e o amarrou no cercado. Marrom continuava sem entender nada, quando viu o peão vindo em sua direção, um facão na mão. O dono e o peão começaram a conversar, enquanto o primeiro pegava uma garrafa com um líquido azul, que jogou em cima do facão. Com um pano que estava no bolso de sua jaqueta, o peão tirou o excesso de líquido do facão... E começou um momento inenarrável, o qual Marrom preferiria esquecer, mas do qual sempre se lembraria ao ver as éguas do vizinho. Ao olhar para elas novamente, nunca mais sentiria as emoções que antes sentida. Por mais que tentasse, não conseguia deixar de ficar indiferente.
Os Áureos Campos de Centeio - Manteiga
Os Áureos Campos de Centeio
Manteiga
- Está quase pronto. – Observou em distração o velho e rabugento Lenhard. Sua pele banhada em tonalidades de um ocre fosco e com total enrugamento suava rios salgados por todos os poros possíveis de se imaginar. O calor de quase quarenta graus, de um bizarro modo antitético, não era empecilho para a tarefa desempenhada por aqueles homens velhos de quem ninguém se lembraria na hora da morte.
- Tenho de concordar. – Falou uma outra voz mais atrás, e o velho constatou que era Gertrude. Sua melodiosa voz rouca de quem estava na casa dos sessenta anos não era ouvida por ele já há algum tempo, o que de certa forma fez aquele encontro valer a pena.
- Eu só queria estar em casa, cuidando dos meus filhos. Queria estar longe disso tudo... Mas este maldito espantalho tinha que nos reunir mais uma vez! – Acentuou Lenhard enquanto coçava com seus longos e sujos dedos o cavanhaque branco desgastado que possuía. Pequenas unidades de uma terra nociva ficaram impregnadas entre os fios curtos, provavelmente saídas das unhas do próprio.
- Não tente nos enganar Lenhard. Todos sabemos que você nunca criou ninguém. – Soou novamente a voz da mulher, desta vez muito mais áspera do que o velho se lembrava. – Minto... Talvez tenha criado alguma aberração.
Ela e os outros presentes mergulharam em gargalhadas fúnebres esmagadoras de ossos enquanto o velho bufava, passando suas nodosas mãos pelo objeto de trabalho do pequeno grupo. O altíssimo espantalho estava pregado em uma tora de madeira que fora cravada ali, no meio do campo.
- Isso deverá manter os corvos afastados por um bom tempo. – Disse ele finalmente afastando-se do boneco a fim de o observar melhor. Estava envolto em um sobretudo azulado que tapava-lhe quase todo o corpo, menos as pernas, que vestiam calças negras, e a cabeça, que estava escondida sob um chapéu roxo medonho. – Fizemos um ótimo trabalho com este, dessa vez. Ficou mais natural. – Ele deu um risinho debochado e se juntou aos demais: Gertrude e mais três homens.
- Acho que o modo com que foi concebido lhe dá esse tom sinistro tão apropriado. – Comentou um dos outros três velhos. Era obeso, usava roupas elegantes e tinha um monóculo no olho esquerdo. Seu cabelo lambido fazia um contraste estranho com os bigodes acentuados. – Não podíamos ter feito um trabalho melhor, imagino eu.
- Uma lástima que o inverno já esteja aí, não é? Tanto trabalho por tão pouco tempo... – Dessa vez quem falou foi um outro, baixo, calvo, com olhinhos miúdos e feios. – Mas lamento mais que esse trabalho não possa esperar. Confeccionar espantalhos é muito mais desafiador do que muita gente imagina.
- Você se faz de bobo, não é McLean?– Resmungou Gertrude chegando perto do espantalho e batendo um pouco de pó da manga que cobria o braço esquerdo. Examinou bem o boneco crucificado e abriu um largo sorriso desdentado. Os fios soltos de seu cabelo grisalho rodopiaram com o vento. Ela passou suas mãos pelos cereais ali plantados, que reluziam de um modo esplêndido perante o sol amarelado. – Nosso tesouro está aqui... Está nesses grãos. Não podemos deixar que os corvos consumam tudo pelo que lutamos para cultivar. Sabe bem disso. E é temporário.
- Você diz isso há vinte e dois anos, Gertrude. Fica difícil acreditar que um dia essa situação mudará.
- Devemos esperar. Muito se especula sobre nosso trabalho. As cicatrizes do que fizemos ainda estão abertas nessa cidade... – Ela fez uma pausa enquanto arrancava alguns grãos dourados e os deixava cair – O centeio ainda não está bom o suficiente. E este campo fica em minha propriedade. Eu devido quando fazermos a colheita.
- Eu sempre disse o que deveríamos ter feito. – Sibilou a voz cortante e áspera de Daurgh, o quinto e último integrante do cortejo. Ele era o mais alto dos cinco, o mais mal-vestido e o mais fedorento. Aproximou-se calmamente da lívida Gertrude, que parecia um vulcão em erupção. – Deveríamos ter entregue o Clark e ficado com o dinheiro. Te-lo gasto de começo, quando ainda valia a pena. Agora não está tão bom. É por isso que ainda guardamos tudo aqui.
- Fique calado! – Xingou a anciã enquanto olhava nervosamente para os lados, deixando os outros três homens trocarem idéias entre si. – O campo é denso o suficiente para que alguém esteja nos ouvindo. Quer nos condenar?
- Há! Que hilariante! Estamos colocando um espantalho em um campo de centeio! Aonde já se viu isso? Podíamos pelo menos ter usado um trigal! – Ele estava berrando. – Quem foi o imbecil que sugeriu essa palhaçada?
- Se me lembro bem – Interveio McLean, apaziguador como sempre. – Você não teve objeção alguma na época.
- Eu era um idiota. Todos éramos. – Acrescentou rapidamente enquanto passava os olhos pelos quatro companheiros. – Já era velho o suficiente para saber das coisas, mas eu era burro demais. Acho que a conseqüência do ato me fez amadurecer. Mas sempre achei que devíamos ter nos afastado dele e de tudo que ele fazia.
- Você tinha é medo de arriscar, infeliz. – Censurou-o Gertrude, ensandecida. – Sempre foi um medroso. Estava com medinho de ser descoberto não é? Suas putas não teriam gostado se soubessem que você era um ladrão, não é mesmo?
- Cale a boca sua mal-comida! – Berrou Daurgh, erguendo a mão para a velha. Parou-a de imediato, bufando e passando por ela, que o amaldiçoava com todas as palavras chulas que conhecia. Daurgh deu um empurrão no homem gordo e em Lenhard, aproximando-se do espantalho e erguendo sua face branca. Estava com os olhos verdes escancarados e a boca formava um arrepiante sorriso forçado por pregos. – Tanto trabalho por essa porcaria. Está até fedendo! Ah! Fedendo à morte! Eu disse que devíamos ter o perfumado, esfregado os grãos nele! Os corvos vão é voar em cima dessa porra! E me refiro aos corvos reais!
- Pois é melhor que seja assim. – Gertrude ressurgiu, mais ácida do que nunca. Os outros três já estavam longe, falando animadamente sobre qualquer coisa. – Se os corvos estiverem em cima, ninguém vai querer mesmo chegar perto. Você sabe como são esses caipiras supersticiosos.
- Somos todos tolos. – Disse McLean por fim, chegando perto dos dois velhos, com os outros integrantes do grupo seguindo-o de modo vagaroso. – O espantalho, o centeio, o roubo... Devíamos ter ouvido Daurgh... Clarck era um maldito, e por culpa dele estamos até hoje esperando. Quanto tempo faz que ele sumiu? O dinheiro nunca vai cair em nossas mãos! Vamos acabar com esse teatro ridículo e pegar as coisas que enterramos. Vamos entregar o Clark e esperar a recompensa. Não há mais o que fazer.
- Vai ficar bundão que nem esse maldito aqui? – Gertrude agora indicava Daurgh, que a fuzilava com os olhos quase escondido pelas pelancas.
- E o que você sugere então, senhora sabe-tudo? – Lenhard falou pela primeira vez após incontáveis minutos de discussão.
- Vamos esperar o inverno. E faremos a colheita. Não haverá nenhum metido para furtar centeio desta vez, garanto. – Ela olhou sombriamente para o espantalho sorridente, que fedia agora mais do que nunca. Ela teve a nítida impressão de ver um filete de sangue curto saindo de seu olho esquerdo. – Ele disse que escreveria no inverno... Sim... E então vamos vender o que roubamos. Repartimos o dinheiro e nunca mais vamos nos ver.
- Gertrude... Você nunca foi tola. Está esperando demais daquele desgraçado! Ele nos traiu! Nunca vai escrever! Ele levou o dinheiro, levou toda nossa esperança. Vinte e dois anos já se passaram. Esqueça-o. Vamos salvar as nossas peles.
- Desista Lenhard. – Rugiu Daurgh enquanto roia as unhas da mão direita. Ele olhou para o espantalho, assim como McLean e o gordo o faziam. – Ela está cega. Deixou a família toda morrer pra ficar com o Clarck. Mas ele a abandonou depois que roubamos aquela maldita vila. E Como você disse, ele nos traiu. Bem quanto íamos fazê-lo, mas contra o próprio.
- Feche-se seu imbecil! – Sibilou a velha com a expressão facial de uma naja. – Clarck fugiu para se salvar da polícia. Ele foi o único reconhecido... Mas ele vai voltar. Sabe que estamos com boa parte dos móveis daquele casarão, e que só vamos vender quando ele voltar.
- Sua velha burra. Vai esperar sentada. Achei que fosse a mais esperta de nós seis, mas parece que me enganei.
- Não há honra entre os ladrões... – Disse o gordo olhando para o solo. Era o mais calado de todos. Jamais se esquecera aquele outono vinte e dois anos atrás quando ele e os outros cinco roubaram a incendiaram uma pequena vila. Sempre fora da opinião de Daurgh, de que deviam ter entregue Clarck e fugir com o dinheiro, mas era covarde demais para admitir.
- Não... Clarck vai voltar. Embora realmente já faça muito tempo... – A voz viperina de Gertrude era agora um murmúrio introspectivo.
- Então reconhece que já esperamos demais. Não podemos ficar fazendo espantalhos para cada um que incursa aqui. Só estamos nos sujando mais e mais. E já deveríamos estar limpos. – Disse Lenhard, fitando o campo à sua esquerda pelo canto do olho.
Ouviu-se então o som característico do centeio sendo esmagado. Os cinco viraram-se na mesma direção, o nordeste. Houve uma movimentação no lugar aonde todos olhavam e então teve-se a certeza do que era. Gertrude simplesmente pegou um pequeno revólver do cinto de Lenhard e apontou na direção de onde viera o ruído, disparando. O som do tiro ecoou levemente, e os ruídos produzidos no campo cessaram. Os cinco se aproximaram e viram ali, caído no meio do campo, um garoto de aproximadamente doze anos, com um furo nas costas. Remexia-se fracamente, com o sangue manchando suas vestes e os olhos castanhos outrora cheios de esperança agora vazios de descaso.
- Vamos ter de fazer outro espantalho. – Observou a anciã. Lenhard a encarou perplexo com tamanha frieza. Baixou a cabeça e encarou a criança, imaginando-a pregada no meio da imensidão dourada. As palavras de Gertrude ecoaram em sua mente.
E faziam um mórbido sentido.
A Batalha dos Campos da Glória - Thomazml
A Batalha dos Campos da Glória
Thomazml
“Essa porcaria de chuva não para” pensou Harter True-Blue, olhando para o céu tenebroso. O aguaceiro tinha começado no início da semana e não dava trégua. O tenente olhou para trás, tentando ver os homens do outro batalhão. Conseguiu divisar um ou outro escudo vermelho entre a água que caía. Suspirou, com a água entrando pela abertura do elmo, relembrando os últimos acontecimentos.
A marcha estava se tornando desesperadora. Não era só a chuva que os importunavam. A batalha contra os orcs na Rocha de Ulderek fora longa e cansativa. A fortaleza estava com uma guarnição estranhamente pequena, mas isso não impediu aos orcs de fazerem uma ferrenha resistência. Ulderek, entretanto, caiu sob as pesadas botas da Legião Vermelha, que massacraram todos os orcs que ali estavam.
“Uma lição bem dada. Os animais verdes agora vão pensar duas vezes antes de roubarem nossos suprimentos e atacarem a cidade” pensou Harter, enquanto chapinhava na estrada de terra. Sua capa vermelha estava toda suja de lama, assim como suas botas e até mesmo sua camisa. As solas de couro estavam começando a se desfazer, causando ocasionais escorregões que levavam a quedas repletas de palavrões.
Além do mais, eles não estavam sozinhos na estrada. As Montanhas Fêmur, sempre perto da tosca estrada, estavam num rebuliço só. As vezes, no meio da marcha, uma chuva de pedras caiam em cima de um desafortunado. As pedras vinham acompanhadas com gritos estridentes e risos zombeteiros dos pequenos seres que habitavam as Montanhas: goblins.
“Era só o que faltava, soldados da Legião Vermelha morrendo para míseros goblins, como se não bastasse essa estranha doença!” se lamentou True-Blue. Para o terror dos legionários, uma estranha doença os assolava desde que massacraram os orcs. Ela era rápida e mortal, transformando em menos de duas horas um guerreiro numa massa fria de carne. Quase um terço do exército tinha perecido desta forma horrível, para o desespero dos impotentes curandeiros que os acompanhavam.
O tenente olhou para o que restava da sua companhia, arfando. Não pareciam nada com os gloriosos e temíveis guerreiros que deixaram Thais sob o olhar severo do rei. Não era só a exaustão da marcha e da batalha. Toda a campanha estava sendo um fiasco. Os trabalhadores revoltosos de Carlin tinham de ser mantidos a ferro e fogo. Harter presenciara execuções pavorosas, torturas aplicadas por obedientes membros da Legião nos esquálidos e acabados trabalhadores.
O tenente franziu o cenho, tentando encontrar uma razão para aquele inferno. Talvez os rumores estivessem certos. Talvez Tibianus I, o rei da lendária Thais, estivesse mesmo enlouquecendo com seu poder imensurável. Era certo mandar homens, mesmo que criminosos, para um destino de trabalhos forçados aterradores, somente para edificar uma cidade imponente, no meio das planícies desertas ao norte de Thais? Aquele lugar era amaldiçoado, como bem lembrava a cada hora seu segundo em comando, Geryr. Foi despertado dos seus devaneios justamente pelo subtenente.
- Senhor, vida longa ao rei, senhor! – saudou Geryr, batendo continência, era muito dado a formalidades o subtenente. Dentre os soldados, era o único que parecia limpo. Harter se surpreendia com a capacidade do subtenente em sujar só as solas da bota. Pena que não fosse tão eficaz assim em batalha, ascendendo ao posto devido ao um tio influente na corte.
- Vida longa ao Rei! – falou com a voz cansada True-Blue, respeitando o protocolo. – O que aconteceu, Geryr?
- O general Bistur Kahs quer falar com o senhor, senhor. – respondeu o subtenente. Harter meditou por um segundo. Estavam a menos de dois dias de Carlin e as Montanhas Fêmur já estavam ficando para trás, porque diabos o general queria conversar com ele? Bem, não era seu dever adivinhar, por isso suspirou mais uma vez e respondeu:
- Está bem, você está no comando até eu voltar. Ligur, comigo. – falou, numa voz possante. Normalmente, seu subtenente o acompanharia, mas Harter não gostava do sujeitinho. Ligur, um legionário duas cabeças maior que a média, assentiu devagar e se postou atrás do tenente. True-Blue gostava dele, assim como a maioria dos legionários. O gigante era um eximo guerreiro, e, embora usualmente calado, tinha um respeito enorme entre todos.
Avançaram por entre os legionários que paravam a marcha. Os sóis já tinham ido embora, e o acampamento já estava sendo construído. A exaustão e a infelicidade estavam estampadas no rosto de cada legionário que cruzava o caminho deles. Pelas regras do exército, as tropas só podiam dormir quando a cerca protetora e as barracas estivessem armadas. Ninguém dormiria em paz, sabendo que a qualquer momento uma sanguinária horda de orcs poderia atacar.
Harter avistou o general, cercado dos demais oficiais. Todos estavam com expressões preocupadas, em círculo, discutindo em voz baixa. O tenente se aproximou de Kahs, que estava calado e com a mão no cabo da longa espada. Ligur ficou mais afastado, ao lado dos outros legionários que olhavam os oficiais discutirem. A chuva começou a cair mais forte, encharcando qualquer coisa que já não estivesse encharcada.
- Já disse, e vou repetir: temos homens suficientes para esmagar esses rebeldes insolentes! Eles não são páreos para nossas lâminas! Covardes são aqueles que se negarem a fazer isso! Covardes e traidores! – vociferou o major Darotlim. O resto do conselho começou a discutir, em tons mais altos
- Basta – falou calmamente Kahs, calando todo mundo. – Basta de discussão. Vamos nos ater aos fatos. Recebi notícias que os rebeldes estão cada vez mais fortes, receberam suprimentos e armamentos. Sim, se lutássemos contra eles agora, iríamos ganhar. Mas, temos que pensar um pouco no futuro. Se ganharmos dos rebeldes, teríamos forças para rechaçar um ataque órquico?
A pergunta pairou no ar, e quando um tenente abriu a boca para falar, Bistur pigarreou, indicando que era uma pergunta que ele mesmo iria responder.
- Não, irmãos, não iríamos agüentar. Fiquei surpreso com a pouca quantidade desse seres nojentos em Ulderek. Não acho que os parentes daqueles que massacramos vão aceitar essa humilhação em silêncio. Não percebem que algo estranho está acontecendo? Essa chuva que não para, até mesmo essa... doença – o general terminou a resposta num sussurro. De repente, a noite começou a ficar muito mais sinistra que Harter pensava.
O tenente olhou ao redor. As Montanhas Fêmur estavam perto ainda, visíveis ao horizonte. Pareciam ameaçadoras. True-Blue pensou ter visto algumas luzes cintilarem em meio as cordilheiras das montanhas. Estremeceu e olhou para a chuva que caia, lembrando dos amigos mortos pela estranha doença. Realmente, não era natural. Até a lua parecia emitir um brilho tosco, malévolo, por entre o aguaceiro.
- Meu plano é o seguinte: iremos até Carlin, nos fortificaremos no castelo. Mandaremos mensageiros para o Rei, pedindo que ele traga Os Cães de Guerra e mais suprimentos. Com Os Cães lidando com os orcs, poderíamos garantir a construção da cidade. – explicou rapidamente o general.
Os oficiais ponderaram um pouco. Harter concluiu que era uma boa idéia. Os Cães de Guerra, como era chamado o grosso do exército thaiense, não eram tão mortíferos quanto a Legião, mas eles cobriam essa falta de habilidade com números gigantescos. Haveria alguns problemas, contudo. Precisariam de muito mais suprimentos, e a falta de disciplina dos Cães poderia ocasionar dificuldades.
Estava olhando para o céu tempestuoso quando houve um rebuliço perto dos oficiais. Um jovem legionário, com a cara apavorada, arfava. Ele estava todo enlameado, sua capa estava rasgada e sua armadura apresentava bossas em vários lugares. Perdera o elmo e o arco, símbolo da sua posição como batedor, estava quebrado.
- Senhor, eles estão vindo. E são milhares, senhor, orcs, ciclopes e até mesmo minotauros – balbuciou o aterrado batedor. Os oficiais começaram a falar alto de novo. Kahs abaixou a cabeça, franzindo a cara numa expressão desolada.
- Então eles vieram mais rápido que eu pensei – murmurou Bistur, de forma melancólica. Quando ergueu o rosto, contudo, sua face estava irada. – Se tem de ser assim, assim seja! Somos a Legião Vermelha! Vamos mostrar à eles nossas lâminas! Vamos adubar os campos de Carlin de corpos verdes! Vamos enfeitar a muralha do castelo com crânios rebeldes!
Todos os oficiais retiraram rapidamente as espadas de suas respectivas bainhas. Apontaram para o céu tempestuoso e berraram, loucamente. Harter os acompanhou. Era assim que a Legião saudava a batalha, com gritos e com uma vontade insana de guerrear. Faziam parte de um exército impiedoso, mortal e renomado. Não iriam recuar, não enquanto Bistur, o general, não o ordenasse.
A chuva ainda caia quando a claridade aumentou. Os campos estavam completamente enlameados. O céu estava cinza claro, mais claro que qualquer outro dia desde o ataque fático a Rocha de Ulderek. O vento vindo do leste estava mais forte e mais frio, castigando os legionários, acampados perto de uma floresta.
- Não gosto desse vento – confessou Harter para seus homens, que estavam a sua volta. Ele estava afiando a longa espada. Todos os legionários estavam se preparando para a batalha que viria. O tenente estava ansioso para a luta. Fazia duas noites desde que o batedor reportara o ataque. Bistur movera o exército para o norte de Carlin, que, por relatos dos poucos sobreviventes da Legião que tinham escapado, tinha caído na mão dos rebeldes. – Ele carrega um cheiro.. ruim -
De fato, um odor fétido chegava com o vento. Um odor de suor misturado com sangue velho. Um fedor de orcs. Eles estavam vindo, e andavam rápido. Os legionários estavam debatendo como seria a batalha quando um mensageiro chegou a eles, correndo.
- Senhor! Vida longa ao rei, senhor! O general Kahs ordenou que prepare o seus homens, pois a batalha começará daqui a pouco. Ele quer seus homens a esquerda dele.
O tenente sacudiu a cabeça, num gesto afirmativo. Sua boca estava azeda e tinha um ligeiro tremor no braço direito. Colocou o elmo e fez um gesto, chamando os homens. Não disse uma palavra, mas se encaminhou para a esquerda do batalhão do seu comandante, o maior. Sabia que era uma honra dada por Kahs, pedir que lutasse ao seu lado, mas lutar perto dos porta-estandartes trazia um contra: era onde o ataque inimigo ia bater com mais força. O general já estava na frente dos seus homens, olhando para a floresta do outro lado da grande campina.
Os homens começaram a cantar a canção de Banor, para fortalecer o espírito. Eram implacáveis, os melhores guerreiros de todo o Tibia. Não fugiriam, não se acovardariam. Estavam fazendo o que tinham nascido para fazer. O que tinha sido marretado em suas cabeças duras de legionários. Lutavam pela sede de sangue, pela fome de glória e por amor a Bistur, o general.
Foi quando um grande barulho ecoou pela campina. Parecia que centenas de trombetas, acompanhadas por imensos tambores, começaram a zurrar. Um grande grito, de muitas vozes, começou a aumentar de volume. Os legionários, impassíveis, continuaram a cantar, batendo suas armas contra os escudos vermelhos, tentando abafar a barulheira dos orcs.
Finalmente, o inimigo apareceu. Eram milhares. Desde imensos orcs, maiores que humanos, trajando equipamento completo de guerra, passando por minotauros silenciosos, portando machados de lâminas afiadas, grandes cicloples – gigantes com um só olho – que usavam malha metálica e enormes martelos de guerra e chegando em trolls e pequenos goblins.
Os legionários pararam de cantar, olhando estarrecidos para a enorme quantidade de inimigos, avançando pela campina. Foi quando Bistur, trajando sua armadura negra com detalhes em vermelho, começou a avançar, desembainhando a espada, com um sorriso no rosto. Os homens viram o seu comandante avançar, rindo da morte, rindo dos seus inimigos. E foram a trás. A Legião Vermelha ia para a batalha.
Se eu fosse transpor todo o horror, toda a glória, todo o sangue e todas as mortes que aconteceram naquele dia, não haveria pergaminho suficiente para escrever. Por isso, não vou me aprofundar na luta intensa de Kondax, o mago mais poderoso da Legião que, cercado de xamãs inimigos, invocou todo o seu poder, se explodindo para matar os mágicos adversários.
Nem vou falar do valente Arthurio, guerreiro renomado, que caiu sob as pesadas marretas dos Ciclopes, quando seu batalhão inteiro já tinha perecido. O que dizer de Darkus, o arqueiro, que após acabarem suas flechas acabou morto por machadadas dos impiedosos minotauros? O que falar de Bendor, o curandeiro, que pereceu transmitindo sua energia vital para os companheiros de batalhão?
Lágrimas chegariam aos olhos, se eu relatasse como Ligur, o legionário, morreu, defendendo o centro da Legião, sozinho, contra os mestres do Mooh’Tah. Quando conseguiu mata-los, foi morto por uma saraivada de setas, disparadas pelos besteiros dos minotauros. Até mesmo Geryr, o subtenente, lutou como um guerreiro ensandecido, matando uma grande quantidade de orcs até morrer devido aos seus múltiplos ferimentos
Mas a mais épica batalha foi a de Bistur, o general, contra o Rei Orc. O rei era um orc imenso, do mesmo tamanho do general. Os dois mataram um ao outro, tornando a batalha mais confusa ainda. Logo, não restava muitos legionários, suplantados pelo número esmagador dos inimigos. Mesmo assim, nenhum deles fugiu, nenhum deles pediu misericórdia, pois sabiam que ela não seria dada. Todos sucumbiram como guerreiros.
Harter True-Blue, o tenente mais leal de toda a Legião, morreu na batalha também. Morreu devido a um golpe de machado no peito. O golpe era destinado ao seu general, que estava batalhando com o rei, mas True-Blue usou seu próprio corpo como escudo, fincando sua espada no minotauro monstruoso e logo depois tombando, para nunca mais se levantar.
Os campos estavam abarrotados de corpos, e o inimigo não vibrava, mesmo tendo obtido a vitória. Seus mortos eram incontáveis. Nunca mais tal poderio em homens armados iria se levantar no continente, porque a Legião fora dizimada . Os bardos cantariam a glória do dia, porque ali, ao norte de Carlin, a cidade rebelada, a Legião tinha lutado até seu último homem. Lutado e morrido, com um sorriso na cara, enfrentando a batalha e a morte com a felicidade insana de Bistur Kahs, o último general da Legião Vermelha.
De Heróis e Vilões - Professor Girafales
De Heróis e Vilões
Professor Girafales
Carlin, 1357 da era de ouro, ano zero da era das trevas. O recém descoberto continente de Zao, desbravado a cada novo dia, revelava novas riquezas. A rainha Eloise de Carlin mantinha-se ocupada, seja negociando novos tratados comerciais com os anões de Farmine, ou cuidado de entrepostos comerciais que estavam sendo estabelecidos nas ilhas gélidas de Folda e Senja ou no vilarejo de Northport. O tempo gasto por ela e seus conselheiros governamentais cuidando dessas questões era tão grande, que sobrava pouco tempo para olharem para seu próprio quintal.
Aproveitando-se disso um culto demoníaco secreto, com poucos membros, bem selecionados, estabeleceu-se na cidade. Seu líder era o Barão de Ljungberd, um homem baixinho e barrigudo. O pouco cabelo que lhe sobrava na lateral do cocuruto era prateado, uma mistura de negro com grisalho. Ostentava um grande bigode. Era uma pessoa simpática, adorava crianças e estava sempre brincando com as pessoas, um estereótipo de bonachão. Ninguém poderia imaginar que participava de uma seita secreta.
Além do nobre, participavam do culto o jovem Fritz, garoto forte, de uns 20 e poucos anos, cabelos loiros e uma expressão sempre séria, que trabalhava no porto de Carlin. Também havia a jovem Caroline, irmã gêmea não idêntica de Fritz, tinha longos cabelos lisos negros, olhos azuis e um namorado que não fazia ideia da existência do culto. Outras figuras, de menor importância participavam.
Era numa noite, atipicamente fria, que o grupo se reuniu no porão de um casarão pertencente ao Barão. O porão empoeirado servia de depósito para toda sorte de artigos. Tapeçaria de Darashia, frutas exóticas de Port Hope e Liberty Bay, artesanato dos elfos de Ab’dendriel, entre várias outras coisas. Envolta de uma mesa, estavam de pé os principais membros do culto, o Barão, Fritz e Caroline. O vento que soprava do mar ao sul trazia boas notícias ao grupo, más notícias para Carlin. O barão tira um pequeno tubo, contendo um líquido prateado de um bolso interno de seu paletó, e diz:
― Amigos... Finalmente podemos dar início ao nosso plano ― o Barão abre um largo sorriso. ― Por anos estivemos reunindo os raros artigos necessários para criar o veneno mágico que nosso mestre me ensinou a fazer em minha visão.
― Salve o mestre Zathroth! ― Disseram os gêmeos, quase que ao mesmo tempo.
― Agora basta que Fritz espalhe o veneno no porto, e logo a maior parte dos habitantes de Carlin estará compartilhando de nossa visão para o mundo.
O Barão estende sua mão para Fritz, dando-lhe o frasco. Fritz pega o frasco e o fita por alguns segundos. Sua face não deixava claro suas emoções, era um misto de êxtase e nervosismo. Ele guarda o frasco em uma pochete de couro que trazia em sua cintura.
― Fico honrado com essa missão, e tenho certeza de que vou conseguir...
Caroline o interrompe e diz:
―Já está na hora de terminarmos a reunião. O plano começa amanhã e é, na verdade, bem simples.
Os três saíram do casarão um a um, dando um tempo, para não levantar suspeitas.
***
Tão logo os primeiros raios de sol começaram a bater no alpendre, Fritz já despertava. A ansiedade para por o plano em ação venceu rapidamente o sono. Ao som do canto dos galos e outros pássaros da alvorada, o jovem colocou seu uniforme de estivador e foi até a sala da casa desjejuar. Caroline, que também acordara cedo, havia lhe preparado o que comer.
― Tome, meu irmão, aqui está o seu café.
― Hmm ― murmurou o irmão, ainda sonolento.
― Está preparado para botar o plano em ação hoje mesmo?
― Claro que sim, quanto antes, melhor. Nem é tão difícil...
― Mas se alguém vê é perigoso mano... O sacerdote do templo poderia desfazer o feitiço, se for descoberto rapidamente.
― Tomarei todas as precauções, já discutimos isso umas quinhentas vezes.
― Tá bom, tá bom, boa sorte maninho! ― A irmã deu um beijo carinhoso no topo da cabeça do irmão e volta até seu quarto.
“É, a hora chegou...” Pensou Fritz. O rapaz foi andando, pensativo e ansioso, rumo ao porto. Logo ao sair de casa, percebeu que as ruas ainda estavam vazias. Um ou outro pássaro a cantar, folhas sendo empurradas pelo frio vento da manhã. Um ou outro comerciante abrindo suas lojas... A cidade ainda dormia, e isso era bom para Fritz. Precisava que o porto estivesse vazio, para que pudesse colocar o plano em ação, espalhar o veneno na comida que vinha de Thais.
Toda manhã ele era um dos primeiros, senão o primeiro, a chegar ao local. Tendo saído mais cedo que o normal, não foi diferente naquele dia. Ele pegou seu molho de chaves e abriu o portão. Foi andando até o armazém enquanto tirada a substância de um bolso interno de seu casaco. Ele abriu o vidro e o virou em cima das pilhas de alimento importado armazenado. O que se viu em seguida não foi um líquido caindo, mas sim uma nuvem negra estranha, como uma substância em sublimação, que começou a englobar todo o alimento. Não fosse a natureza mágica da substância, não haveria como isso acontecer. A nuvem então se dissolveu no ar, literalmente sumindo.
Essa parte do plano era a mais simples e se completou com sucesso. Bastaram poucos meses para que a maldição mágica que foi posta nos alimentos se espalhasse entre a maioria dos habitantes da cidade de Carlin. Ninguém sabia, mas as mentes dos amaldiçoados estavam prontas para obedecer aos comandos do Barão de Ljungberd sem questionamento.
***
Em um dia ensolarado, nuvens negras apareciam no horizonte, acima do mar, e se avizinhavam cada vez mais da cidade, como se estivessem trazendo a má notícia do dia que chegava.
A rainha Eloise havia acabado de acordar, e desceu de seus aposentos até o salão principal do castelo, para um dia que, ela imaginava, seria rotineiro. O Barão entrou no salão apressado:
― Minha rainha, preciso tratar de um assunto urgente com você, em particular!
A rainha olhou para os guardas e balançou a cabeça positivamente, sinalizando que eles poderiam se retirar.
― O que precisa falar, barão, que é tão urgente que fez você até se esquecer de falar comigo usando os pronomes apropriados?
― Se meu mestre permitir que você sobreviva, será você que deverá falar respeitosamente comigo.
A rainha se levanta, e apontando seu cajado real para o súdito, exclama, surpresa:
― Como ousa falar ― Mas foi interrompida bruscamente.
O barão tirou de seu casaco um amuleto e o apontou em direção a rainha. Um raio de luz púrpura saiu dele e atingiu em cheio a rainha, que foi jogada para trás e desmaio. Normalmente a magia do barão não seria páreo para a da rainha, mas ela se encontrava sob efeito da maldição.
Os guardas, alarmados, tentavam abrir a porta para o salão, mas ela parecia selada magicamente. O barão então sacou uma pequena adaga de prata e fez um corte no pulso da rainha. Ele pegou o braço e o esticou por sobre o amuleto, deixando que algumas gotas de sangue caíssem por cima do objeto, que começou a brilhar intensamente, como se estivesse incandescente.
O barão soltou o amuleto no chão e deu alguns passos para trás. O brilho se tornou um clarão insuportável, e foi necessário até que ele protegesse os olhos com o braço. De repente o brilho parou, e parado no local onde se encontrava o amuleto, estava uma figura assustadora. Três vezes o tamanho de um homem, pernas e braços extremamente musculosos e uma pele de cor escarlate, era um demônio, proveniente de um local aterrorizante, no qual nenhum homem jamais colocou os pés. O demônio então se dirigiu ao barão, com sua voz grave e alta, que ecoava pelos salões do castelo.
― Quem é o verme que ousa conjurar a presença de Morgaroth no plano terreno, em plena cidade de Carlin?
― Sou o Barão de Ljungberd, e não lhe chamaria se não tivesse a certeza de que o exército da cidade não irá lhe impor uma derrota como em outras oportunidades. Eles estão enfraquecidos.
― Estão mesmo? E por quê?
― Eu e meus parceiros amaldiçoamos a comida da cidade, e todos os habitantes estão enfraquecidos contra magias das trevas. Mesmo os mais valorosos guerreiros serão presa fácil.
― É o que veremos ― Disse o demônio, enquanto esticava seu braço, criando uma enorme bola de fogo em direção a porta na qual os soldados tentavam, desesperados, entrar.
O estrondo jogou todos para trás e abriu um buraco de tamanho suficiente para a passagem de Morgaroth. O que se seguiu foi um massacre. A cidade inteira foi rapidamente subjugada pelo demônio.
***
Desde o dia em que Morgaroth dominou Carlin, já haviam se passado três semanas. Com seu enorme poder e a ajuda de um exército de cidadãos de Carlin possuídos pela maldição demoníaca e dos orcs de Ulderek que se prontificaram a servir o demônio, derrotar uma a uma as principais cidades do continente foi uma tarefa fácil. Por onde passava o exército, ficava um rastro de dor e sofrimento. Os homens eram mortos em sacrifício ao deus Zathroth, suas decepadas e empaladas, apodrecendo. As mulheres eram estupradas e depois mortas. O exército do mal fazia as crianças presenciarem tudo, e depois as abandonava a própria sorte. Traumatizadas e sem capacidade de se sustentar, a maioria morria rapidamente.
Uma a uma as grandes cidades do continente caíram. Ab'dendriel e Venore agora não passavam de ruínas. Carlin e Ulderek estavam sob domínio demoníaco. Kazordoon e Mintwallin se isolaram embaixo da superfície. A certeza de que seus exércitos não representavam perigo fazia com que os demônios nem sequer se incomodassem com a ideia de tentar invadi-las. As cidades espalhadas em ilhas sofriam com a falta da ajuda das cidades do continente. Sem liderança, eram como formigas que tiveram a cabeça arrancada e corriam, desesperadas, a deriva.
Restava apenas Thais, o último bastião de esperança do mundo livre contra o domínio dos servos de Zathroth...
A hora se aproximava, e o Rei Tibianus sabia que os demônios iriam atacar sua cidade com força total. Olhando pela janela de seu quarto, o céu vermelho-sangue do alvorecer de alguma maneira lhe alarmava. Ele sabia que seria hoje, o dia da verdade.
Ele tirou seu roupão de ceda de Liberty Bay e abriu seu armário. Colocou roupas de baixo, e vestes de batalha. Um elmo dourado com detalhes prateados, e uma armadura pesada, e certamente resistente, forjada pelos anões, de cor avermelhada. Embainhou sua espada longa que emanava um brilho fraco, de origem mágica, e colocou seu escudo nas costas, herança de seus antepassados. Terminou com a coroa, ornada por joias de rara beleza, forjada em tempos imemoriáveis pelos ciclopes, usando minérios raríssimos, também herança de seus antepassados.
Enquanto foi descendo pelo castelo, era encarado pelos súditos e guardas, que percebiam, tanto pela expressão, quando pela maneira como o rei se vestia, que o dia não seria normal.
Mas para Tibianus tudo era silêncio. Não escutava o barulho dos frequentadores do castelo, não escutava o barulho da cidade, não escutava o vento e o mar. Tudo que conseguia pensar era na batalha longa que estava por vir. Ao chegar na sala da guarda real, o rei abordou o seu general, Linus.
― É hoje, Linus, eu sei.
Entendendo o que o rei queria dizer, o general saiu, esbaforido, certamente para reunir o exército da cidade.
Alguns minutos se passaram, e estavam o rei, seu general e alguns outros membros importantes do exército na parte que emcimava o portal norte. No chão estava o exército da cidade, bem como inúmeros voluntários, alguns maltrapilhos, carregando desajeitados qualquer arma que conseguiram achar. O rei começou a falar, com sua voz imponente:
― Como vocês já devem imaginar, hoje é o dia em que os demônios tentarão tomar Thais. Muitos de vocês nem eram nascidos quando Ferumbras invadiu e espalhou a desgraça em nossa querida cidade. Apesar da certeza de que a guerra que enfrentaremos hoje será muito pior do que a invasão do mago maligno, sei que só venceremos no final se mantivermos o mesmo espírito dos bravos guerreiros que o baniram de Thais. Hoje, assim como naqueles dias, lutarei lado a lado com vocês, pois sou mais um, um cidadão de Thais querendo defender o lar que tanto ama. É importante que mantenhamos ― O rei se calou tão logo escutou ao longe o rufar de tambores de batalha. A hora chegará e um frio percorreu sua espinha. ― Escutem! Os tambores de batalha dos inimigos! Devemos nos manter dentro da cidade e defendê-la! Não devemos deixar o exército inimigo perpassar nossos muros!
Ao longe já se via o exército inimigo. Manchas verdes eram Orcs, vermelhas eram demônios, e borrados multi-coloridos eram humanos, de diferentes etnias, trajando diferentes armaduras. Não tardou até que flechas, pedras catapultadas e magias ofensivas fossem trocadas de lado a lado. O exército demoníaco era demasiadamente numeroso, e era questão de tempo até que encontrassem uma brecha nos muros da cidade. Mas, de repente, o sítio à cidade cessou. Morgaroth, que apenas observava a batalha, começou a falar, e sua voz ecoou por toda a cidade, como mágica:
― Venha, Tibianus, vamos lutar mano-a-mano! Quero ter o prazer de lhe derrotar antes que acabe morto por algum mortal qualquer de meu exército!
O exército demoníaco abriu espaço, formando um corredor do portão da cidade de Thais até o local onde se encontrava Morgaroth. O rei veio andando, e novamente aquela sensação de silêncio invadia sua mente, até que se encontrava defronte o maligno Morgaroth.
― Vamos acabar com isso, aqui e agora! Derrotar-lhe-ei, usando o mesmo escudo e a mesma coroa que meu bisavô usou para banir Orshabaal na batalha de Jakundaf, o mesmo escudo e coroa que usei para banir Ferumbras da cidade de Thais!
O demônio gargalhou, esticou o seu braço e lançou um jato de energia em direção ao rei, que a barrou com seu escudo. Foram minutos de duelo, muito equilibrado. Por fim Morgaroth derrotou Tibianus. Com sua força descomunal, levantou o rei e lhe arrancou a cabeça do corpo, como se estivesse rasgando papel.
― Vejam! ― Exclamou, com o braço esticado, mostrando a cabeça do rei, como um troféu ― O rei de vocês está morto. O duelo foi árduo, devo reconhecer, mas agora sua linhagem está acabada, eu nunca serei derrotado!
Dentro dos muros da cidade, muitos choravam, e a maioria tirava seus elmos e largava suas armas e escudos no chão, desistindo da luta.
― Não! Não devemos desistir, não é isso que Tibianus queria! ― Gritou Linus ― Devemos lutar até o fim de nossas forças por nossa cidade!
As palavras de Linus pareciam em vão, o exército estava desmotivado, quase ninguém tinha forças para lutar. Mas ao longe, a esperança renascia. Ouviam-se gritos e tambores e exclamações de surpresa eram ouvidas de membros dos dois exércitos. Eram os anões que chegavam, trazendo sangue novo para a batalha. Como se tivesse sido combinado buracos começavam a se abrir no chão, levantando uma enorme poeira. Deles brotavam minotauros, que também vieram para ajudar.
A batalha recomeçou, e com as esperanças renovadas, os cidadãos de Thais pegaram em armas novamente para defender seu lar.
Linus sabia, no entanto, que o exército do mal ainda era muito mais numeroso, e ganharia a batalha mais cedo ou mais tarde. Deveria aproveitar a oportunidade que surgira com a inesperada ajuda de anões e minotauros para tentar vencer a batalha derrotando o líder Morgaroth. Mas se nem mesmo o rei não havia conseguido derrotar Morgaroth, será que ele conseguiria? “Depois do rei, certamente sou eu o guerreiro mais preparado, sou eu que devo derrotá-lo. É melhor morrer tentando do que esperar eles vencerem a batalha”.
Correndo por entre o exército inimigo, esquivando-se de golpes mortais e flechas certeiras, cortando através de fileiras de combatentes com sua espada, Linus avançava a passos largos rumo a Morgaroth, que agora, ao invés de apenas assistir a batalha, lançava bolas de fogo e esferas de dor e sofrimento concentradas, conhecidas como “morte súbita” em direção a cidade.
Morgaroth estava distraído e a oportunidade se apresentava, de pegar a espada de Tibianus que estava no chão e tentar derrotar Morgaroth. Linus lançou sua própria espada em direção ao demônio, atingindo-o no braço direito. Isso o distraiu, mas o fez também perceber a presença do oponente. Com uma cambalhota ágil, Linus pegou o escudo e a espada do falecido rei do chão e ajoelhou-se, defendendo uma rajada de morte súbita com o escudo. Tão logo defendeu o golpe, soltou o escudo, e, correndo em direção a Morgaroth, com uma mão lançava uma runa de magia no inimigo, e com a outra balançava a espada para trás. Com um pulo, empurrou a espada no peito do demônio.
― Não! ― Exclamou Morgaroth.
O demônio começou a brilhar e desapareceu, certamente banido ao plano das trevas. Os demônios menores que participavam da batalha também foram banidos, e ao mesmo tempo os humanos de Carlin, possuídos, retomavam sua consciência. Restavam apenas os orcs. Alguns se retiraram covardemente, enquanto outros ainda lutavam, mesmo sendo certa a derrota.
A batalha estava ganha e Linus era um novo herói.
***
Três meses se passaram desde a épica batalha, e a paz reinava em Tibia. As cidades destruídas eram reconstruídas com a ajuda de todos. Em Thais, era aclamado o novo imperador, herói da cidade, responsável por derrotar a ameaça demoníaca ao mundo livre, Linus.
"Acho que essa coroa ficou boa em mim"
O Fantasma do Corsário - Drasty
O Fantasma do Corsário
Drasty
No outono do ano que selou as batalhas em todo o continente, eu me tornei escravo. Uma corja me aprisionou em seu navio e com eles eu viajei os sete mares. Dos maus tratos eu sofri diversos: fui cuspido, espancado e trancafiado no calabouço. Passei com fome as piores noites do inverno, sem destino aparente apenas vagando com aqueles animais. Trabalhei! Todos os dias naquele gigante eu suei meu corpo, limpando o convés, jogando ao mar suas necessidades e cozinhando-os as refeições.
O capitão era um homem pouco civilizado. Andava forte com a perna-de-pau atropelando os pregos do chão. Suas longas barbas brancas eram a evidência de suas aventuras e, através delas ele contava as histórias. Pouco articulado e muito animado, por noites seus oficiais ouviram anedotas sobre as batalhas nos mares mais perigosos já navegados. Uma vez que todos estivessem ensopados de cerveja, ele sacava a sabre das tipóias e cantava canções embriagadas. A cantoria seguia firme até caírem no sono.
Nos meus aposentos eu tinha a companhia de uma vasta gama de ossadas. Provavelmente meus antecessores naquela cruzada. Nas sombras do crepúsculo conversava sozinho. Lembrava-me da minha família em solo firme. Vivi durante anos dessa vida em Thais, estudando em busca de algum dia ser alguém memorável. Porém esses sonhos já tinham sido assassinados pelas ondas do mar.
Depois de alguns meses, peguei a mania de cantar com os piratas. Diferente das canções sobre mulheres e tesouro que cantavam sobre minha cabeça, eu cantarolava as antigas melodias dos tempos de criança. Era a única forma de encontrar naquele inferno uma felicidade. Em uma dessas noites, algo estranho aconteceu. A água salgada que invadia o navio batia rápida nos meus pés machucados. Havia alguém além de mim no recinto.
Foi quando, através das barras de minha cela, surgiu a forma de um sobretudo. Dentro dele apenas o vácuo da escuridão. Flutuava em cima de si um chapéu de corsário com pontas e ornamentos. Sufoquei de medo ao ver a figura fantasmagórica. Recuei atrapalhado e cai sentado no caixote de pólvora. Seja lá o que aquilo era, continuava a se mover ao meu encontro. Então, ele parou. Estático ficou por alguns minutos. Tentei acreditar que fosse fruto de minha imaginação, afinal depois de tanta humilhação, uma hora eu ficaria louco.
Assim que a cantoria no convés teve fim, a figura começou a tremer inquieta. Entre seus tremeliques, se enrijeceu. Um pigarro altíssimo arranhou o assoalho e passou voando pela janela do barco. O chapéu virou para um lado e depois para o outro e finalmente focalizou em mim.
– Uman! Uman! – gritava uma voz rouca que emanava pelos botões do casaco. – Ave Uman! Vamos garoto, agradeça Uman comigo – com uma mistura de pavor e perplexo eu o acompanhei na sua oração.
Terminada a prece, o chapéu do fantasma se abaixou cabisbaixo. Supus que aquele ser não me faria mais mal do que os piratas haviam feito, então perguntei eufórico:
– O que estamos agradecendo, senhor?
– Ora, meu jovem! Se não é o fim dessa cantoria infernal. Nos meus tempos os tripulantes eram muito mais afinados – ele forçou uma risada, amassando todo o vestuário, fazendo o parecer uma pilha de roupa amarrotada.
– Que mau lhe pergunte, mas quem é o senhor?
Dessa vez, houve uma pausa longa. Ele flutuou da direita para a esquerda e saltitou insistentemente na cela. Em seguida, saltou no ar e parou sentado do meu lado. Vi um dos braços apoiar-se em meu ombro, mas nada senti.
– Se eu soubesse, eu te diria com o maior orgulho – disse tristonho. – Só sei de uma coisa, garoto. Sei que esse navio é meu! Essa corja barulhenta se apossou do que é meu! Crápulas! – agora a voz do fantasma não estava mais rouca, soava forte e cortante como um trovão. Levantou-se e caminhou à frente. Dessa vez, falava para si. – Preciso expulsá-los do meu bardo. Do meu barco!
– Isso mesmo, senhor! Tem que mandá-los embora! – vi minha chance de voltar a terra firme tornar-se real. Talvez meus sonhos não estivessem perdidos em garrafas vazias. – Sabe o que devia fazer? Devia matar um a um, afinal, o senhor é o verdadeiro capitão desse estupendo navio.
– É verdade, meu rapaz! É verdade. É meu, meu e somente meu – ele pigarreou de novo e agora mais comedido finalizou: – Ironicamente, o desembarque deles será feito na Baia da Liberdade.
Ainda ouvi a gargalhada do fantasma desaparecer com seu espectro. Sumiu como apareceu, indo sabe-se lá para onde. Nem tive chance de perguntar o que a última frase significava. A conversa com o espírito de um capitão possessivo tomara horas do meu sono. Deitei-me tranqüilo no assoalho do barco e adormeci.
Acordei no silêncio da manhã. Os raios de sol invadiam minha cela e tocavam meu rosto gentilmente. Notei que a porta da cela estava entreaberta. Segui o rumo da proa e batendo meus pés contra os degraus surgi nas imediações, agora empapadas de sol. Não havia ninguém ali. Estávamos ancorados e logo ao lado uma praia jazia.
Saltei ao mar e nadei. Meu corpo logo arrastava-se na areia. Já tinha desistido de acreditar que seria possível voltar a terra-firme.
Após andar alguns metros terra adentro, virei meu dorso e mirei o navio pirata atrás. A bandeira negra ostentando uma caveira maquiavélica balançava no topo do mastro. Pude ver o capitão fantasma acenar as mangas do sobretudo. Devia estar desejando-me boa sorte. Agradeci devolvendo o aceno. Acho que não vou precisar.
Meio Púrpura - Steve do Borel
Meio Púrpura
Steve do Borel
Eu não programo a minha vida
Pensando em besteiras
Futilidades que o amanhã nunca irá satisfazer
Quero mais é me perder com você
Ver o Sol nascer
Olhar pra frente, sonhador
Qualquer futuro lindo que for
Desses de cinema
Céu clarinho, meio púrpura
Da cor do amor
Quatro Gotas de Sangue - Drasty
Quatro Gotas de Sangue
Drasty
Na civilização o povo vivia com fome;
Então: come, come, come!
Na civilização o povo tinha sede de sangue;
Então: mate, mate, mate!
No mato o povo vivia com fome;
Então: mate, mate, mate!
No mato o povo tinha sede de sangue;
Então: come, come, come!
Nas montanhas o povo tinha sede de fome;
Então: come, come, come!
Nas montanhas o povo tinha fome de sangue;
Então: mate, mate, mate!
Nas sombras o povo não tinha fome:
Então: mate, mate, mate!
Nas sombras o povo não tinha sede de sangue:
Então: mate, mate, mate!
Roubaram minha Menina - Thomazml
Roubaram minha Menina
Thomazml
Olho nos teus olhos castanhos mentirosos
Vejo teus sorrisos vazios e inúteis
Qual alegria eles passam, nervosos?
Quais não-sentimentos, pensamentos fúteis?
Cadê a minha menina, e sua molecagem?
Cadê a minha garota, fazendo besteiras?
Quem é essa mulher, cantando vantagem?
Cadê a minha guria , e suas brincadeiras?
Esse malvado tempo eterno, que passa depressa
Essa maldita máscara de mulher, que a menina se prende
Onde estará minha garota? Será que regressa?
Será que esse velho menino, que muito pretende
Não entende que o funesto tempo tem pressa?
A menina crescida, já mulher, ele não compreende.