Capítulo I
Um novo pilar
Dessa vez não havia dúvida. Era segunda-feira e não tinha escapatória. Seu traje e seus apetrechos já o esperavam e tão igual como sempre, ele os vestiu. Escovou os dentes e fez a barba. Pegou a chave atrás do mesmo abajur e abriu aquela mesma gaveta. Lá estava o velho aparelho celular. Duas chamadas não atendidas saltavam de sua quadrangular tela. “À noite eu retorno” pensou Carlos. Em seguida, o de sempre: trancar a gaveta e camuflar a chave.
Enquanto caminhava em direção a porta viu sua esposa se remexendo nos lençóis de linho cor acinzentada. Devia estar tendo um pesadelo, mas ele não ligava. Só se importava mesmo com o que ela faria para passar seu tempo agora que decidira se aposentar. Já pressentia um salto nas contas no fim do mês. Se ao menos o sexo fosse bom, ele consentiria simplesmente. Não lhe restava nada a não ser lamentar.
Fora do quarto, ele olhou a porta dos gêmeos entreaberta. Ali dentro os dois filhos de Carlinhos fermentavam os mais belos sonhos. E assim como todo pai, desejo-lhes os melhores, mesmo que no fundo também não se importasse muito. Fechou a porta hipocritamente e seguiu pelo corredor.
Movia-se hipnotizado e cego sempre. Pelo menos até chegar à cozinha, onde Carlos era alguém. Um gordinho desajeitado que passava o aspecto de sujo. Não era o suor que sempre lhe caia testa abaixo, nem o cabelo oleoso ou a barba mal-feita. Na verdade, não era nada. No entanto, o aspecto não mudava. Estava encravado no seu ser.
O café-da-manhã mudava a cada dia. Às vezes aveia com bananas e mel, outras mamão com açúcar, havia também cereal com leite e omeletes de presunto. Tudo sempre muito bem preparado. Um suco para cada dia, de todas as frutas que o mercado vendia. E o café. Ele o adorava. Nunca tinha faltado, nenhum dia sequer.
De repente, Carlos se pegou pensando na vida. Como sempre fazia nas manhãs geladas do inverno carioca. O frio lhe dava uma tristeza. Acabava se lembrando de todo o passado, lembrava dos sapos que tinha engolido: o velho irritante, as roupas da mulher, os filhos inquietos, o cachorro falecido e até a mãe superprotetora.
Feliz ou não, ele tinha o emprego dos sonhos, uma esposa linda e dois filhos maravilhosos. No entanto, algo doía em seu peito. Todo o ano estava lá. Um pesar. E agora na cozinha de sua mansão, aquele homem chorava discretamente. Naquele instante ele não podia recorrer ao uísque, o seu remédio para dor.
Tão subitamente como havia começado a se amargar, voltou ao mundo. Levantou-se rapidamente da cadeira e foi até a entrada.
– Baptista P3TU – disse baixinho. O som esganiçado deslizou pela sala de novo. – Chame um taxi e ligue pro Camargo, diz pra ele ir separando a papelada.
Logo em seguida Carlos abriu a porta da frente. Lá fora, o táxi já o aguardava. Os passos lerdos do gorducho levaram-no até o pequeno automóvel. Dentro dele, um painel de cores saltitantes ostentava a espera de ordens. Com dois cliques na tela o táxi começara a ser mover. Em linha reta ele cruzou dois quarteirões bem amplos. Depois dobrou seguidamente duas vezes para a esquerda. Haviam passado o centro residencial e agora só altos edifícios jaziam nas suas laterais. Entre eles estava um de tamanho e forma distinto, ele abrigava a Baptista Eletrônicos, a maior empresa do ramo tecnológico em toda a América Latina. .
O táxi deixou Carlos Baptista na calçada. Ele colocou uma grande moeda prata num compartimento externo da condução. Aquilo produziu um zumbido dentro da máquina. O motor se ligou de novo e ela partiu.
Carlos seguiu em frente. Entrou pelo hall principal onde um enorme tapete com a logomarca da empresa jazia no chão. Deu bom dia para as duas belas recepcionistas que trabalhavam ali e pegou o elevador. Quando se encontrava sozinho dentro das quatro paredes, ele decidiu que jamais daria bom dia de novo àquelas meninas. Eram apenas funcionárias dele. E além do mais, só as havia contratado pelo rostinho bonito. “Afinal de contas tem que se ter uma cara bonita pra receber as pessoas” pensou. Ele também sabia que aquelas duas não conseguiriam emprego melhor e por isso sentia prazer em desdenhá-las.
Um sorriso debochado surgira em sua face quando a porta do elevador se abriu.
Camargo estava ali parado com seus óculos redondos. Tinha o ombro meio curvado e uma estruturava bem atrofiada. Vivia espirrando para tudo que era lado. Os cabelos sempre bem lavados tentavam esconder a caspa a qual nunca ia embora. Quando andava, parecia capengar, como um velho de bengala. Todavia, Carlinhos sentia que aquela era a única pessoa no mundo que podia confiar. Era como seu fiel escudeiro, seu Sancho. Criara um vínculo enorme com aquela criatura. E sabia que este também o adorava. Vivia se preocupando, organizando sua agenda, trazendo seus remédios, perguntando sobre a vida. Camargo vivia para Carlos.
Eram nove e meia quando Carlos terminou de assinar a papelada. Camargo suspirou fundo. Agora a empresa não seria responsabilidade integral de seu patrão. A partir daquele momento a Baptista Eletrônicos apoiar-se-ia em dois pilares, mais fortes do que o solitário anterior.
Por um minuto Carlos sentiu um peso deixando suas costas. Diferente do que seria comum, ele detestava aquilo. Gostava de ter trabalho sempre e não se importava com pressão. Sabia que com um sócio e um novo capital a empresa continuaria sendo a maior, mesmo que uma parte dele tivesse morrido naquele dia.
Então ele pediu um café. Costumava usá-lo para ligar as turbinas.
Em seguida, pediu que Camargo saísse. Fechou as janelas e cortinas. Carlos pegara um grande papel cartolina e uma linda lapiseira toda remendada de uma gaveta na mesa ao lado. Ele começara a criar seus filhos. Pela primeira vez no dia inteiro, aquele homem podia ser autêntico.