De Heróis e Vilões - Professor Girafales
De Heróis e Vilões
Professor Girafales
Carlin, 1357 da era de ouro, ano zero da era das trevas. O recém descoberto continente de Zao, desbravado a cada novo dia, revelava novas riquezas. A rainha Eloise de Carlin mantinha-se ocupada, seja negociando novos tratados comerciais com os anões de Farmine, ou cuidado de entrepostos comerciais que estavam sendo estabelecidos nas ilhas gélidas de Folda e Senja ou no vilarejo de Northport. O tempo gasto por ela e seus conselheiros governamentais cuidando dessas questões era tão grande, que sobrava pouco tempo para olharem para seu próprio quintal.
Aproveitando-se disso um culto demoníaco secreto, com poucos membros, bem selecionados, estabeleceu-se na cidade. Seu líder era o Barão de Ljungberd, um homem baixinho e barrigudo. O pouco cabelo que lhe sobrava na lateral do cocuruto era prateado, uma mistura de negro com grisalho. Ostentava um grande bigode. Era uma pessoa simpática, adorava crianças e estava sempre brincando com as pessoas, um estereótipo de bonachão. Ninguém poderia imaginar que participava de uma seita secreta.
Além do nobre, participavam do culto o jovem Fritz, garoto forte, de uns 20 e poucos anos, cabelos loiros e uma expressão sempre séria, que trabalhava no porto de Carlin. Também havia a jovem Caroline, irmã gêmea não idêntica de Fritz, tinha longos cabelos lisos negros, olhos azuis e um namorado que não fazia ideia da existência do culto. Outras figuras, de menor importância participavam.
Era numa noite, atipicamente fria, que o grupo se reuniu no porão de um casarão pertencente ao Barão. O porão empoeirado servia de depósito para toda sorte de artigos. Tapeçaria de Darashia, frutas exóticas de Port Hope e Liberty Bay, artesanato dos elfos de Ab’dendriel, entre várias outras coisas. Envolta de uma mesa, estavam de pé os principais membros do culto, o Barão, Fritz e Caroline. O vento que soprava do mar ao sul trazia boas notícias ao grupo, más notícias para Carlin. O barão tira um pequeno tubo, contendo um líquido prateado de um bolso interno de seu paletó, e diz:
― Amigos... Finalmente podemos dar início ao nosso plano ― o Barão abre um largo sorriso. ― Por anos estivemos reunindo os raros artigos necessários para criar o veneno mágico que nosso mestre me ensinou a fazer em minha visão.
― Salve o mestre Zathroth! ― Disseram os gêmeos, quase que ao mesmo tempo.
― Agora basta que Fritz espalhe o veneno no porto, e logo a maior parte dos habitantes de Carlin estará compartilhando de nossa visão para o mundo.
O Barão estende sua mão para Fritz, dando-lhe o frasco. Fritz pega o frasco e o fita por alguns segundos. Sua face não deixava claro suas emoções, era um misto de êxtase e nervosismo. Ele guarda o frasco em uma pochete de couro que trazia em sua cintura.
― Fico honrado com essa missão, e tenho certeza de que vou conseguir...
Caroline o interrompe e diz:
―Já está na hora de terminarmos a reunião. O plano começa amanhã e é, na verdade, bem simples.
Os três saíram do casarão um a um, dando um tempo, para não levantar suspeitas.
***
Tão logo os primeiros raios de sol começaram a bater no alpendre, Fritz já despertava. A ansiedade para por o plano em ação venceu rapidamente o sono. Ao som do canto dos galos e outros pássaros da alvorada, o jovem colocou seu uniforme de estivador e foi até a sala da casa desjejuar. Caroline, que também acordara cedo, havia lhe preparado o que comer.
― Tome, meu irmão, aqui está o seu café.
― Hmm ― murmurou o irmão, ainda sonolento.
― Está preparado para botar o plano em ação hoje mesmo?
― Claro que sim, quanto antes, melhor. Nem é tão difícil...
― Mas se alguém vê é perigoso mano... O sacerdote do templo poderia desfazer o feitiço, se for descoberto rapidamente.
― Tomarei todas as precauções, já discutimos isso umas quinhentas vezes.
― Tá bom, tá bom, boa sorte maninho! ― A irmã deu um beijo carinhoso no topo da cabeça do irmão e volta até seu quarto.
“É, a hora chegou...” Pensou Fritz. O rapaz foi andando, pensativo e ansioso, rumo ao porto. Logo ao sair de casa, percebeu que as ruas ainda estavam vazias. Um ou outro pássaro a cantar, folhas sendo empurradas pelo frio vento da manhã. Um ou outro comerciante abrindo suas lojas... A cidade ainda dormia, e isso era bom para Fritz. Precisava que o porto estivesse vazio, para que pudesse colocar o plano em ação, espalhar o veneno na comida que vinha de Thais.
Toda manhã ele era um dos primeiros, senão o primeiro, a chegar ao local. Tendo saído mais cedo que o normal, não foi diferente naquele dia. Ele pegou seu molho de chaves e abriu o portão. Foi andando até o armazém enquanto tirada a substância de um bolso interno de seu casaco. Ele abriu o vidro e o virou em cima das pilhas de alimento importado armazenado. O que se viu em seguida não foi um líquido caindo, mas sim uma nuvem negra estranha, como uma substância em sublimação, que começou a englobar todo o alimento. Não fosse a natureza mágica da substância, não haveria como isso acontecer. A nuvem então se dissolveu no ar, literalmente sumindo.
Essa parte do plano era a mais simples e se completou com sucesso. Bastaram poucos meses para que a maldição mágica que foi posta nos alimentos se espalhasse entre a maioria dos habitantes da cidade de Carlin. Ninguém sabia, mas as mentes dos amaldiçoados estavam prontas para obedecer aos comandos do Barão de Ljungberd sem questionamento.
***
Em um dia ensolarado, nuvens negras apareciam no horizonte, acima do mar, e se avizinhavam cada vez mais da cidade, como se estivessem trazendo a má notícia do dia que chegava.
A rainha Eloise havia acabado de acordar, e desceu de seus aposentos até o salão principal do castelo, para um dia que, ela imaginava, seria rotineiro. O Barão entrou no salão apressado:
― Minha rainha, preciso tratar de um assunto urgente com você, em particular!
A rainha olhou para os guardas e balançou a cabeça positivamente, sinalizando que eles poderiam se retirar.
― O que precisa falar, barão, que é tão urgente que fez você até se esquecer de falar comigo usando os pronomes apropriados?
― Se meu mestre permitir que você sobreviva, será você que deverá falar respeitosamente comigo.
A rainha se levanta, e apontando seu cajado real para o súdito, exclama, surpresa:
― Como ousa falar ― Mas foi interrompida bruscamente.
O barão tirou de seu casaco um amuleto e o apontou em direção a rainha. Um raio de luz púrpura saiu dele e atingiu em cheio a rainha, que foi jogada para trás e desmaio. Normalmente a magia do barão não seria páreo para a da rainha, mas ela se encontrava sob efeito da maldição.
Os guardas, alarmados, tentavam abrir a porta para o salão, mas ela parecia selada magicamente. O barão então sacou uma pequena adaga de prata e fez um corte no pulso da rainha. Ele pegou o braço e o esticou por sobre o amuleto, deixando que algumas gotas de sangue caíssem por cima do objeto, que começou a brilhar intensamente, como se estivesse incandescente.
O barão soltou o amuleto no chão e deu alguns passos para trás. O brilho se tornou um clarão insuportável, e foi necessário até que ele protegesse os olhos com o braço. De repente o brilho parou, e parado no local onde se encontrava o amuleto, estava uma figura assustadora. Três vezes o tamanho de um homem, pernas e braços extremamente musculosos e uma pele de cor escarlate, era um demônio, proveniente de um local aterrorizante, no qual nenhum homem jamais colocou os pés. O demônio então se dirigiu ao barão, com sua voz grave e alta, que ecoava pelos salões do castelo.
― Quem é o verme que ousa conjurar a presença de Morgaroth no plano terreno, em plena cidade de Carlin?
― Sou o Barão de Ljungberd, e não lhe chamaria se não tivesse a certeza de que o exército da cidade não irá lhe impor uma derrota como em outras oportunidades. Eles estão enfraquecidos.
― Estão mesmo? E por quê?
― Eu e meus parceiros amaldiçoamos a comida da cidade, e todos os habitantes estão enfraquecidos contra magias das trevas. Mesmo os mais valorosos guerreiros serão presa fácil.
― É o que veremos ― Disse o demônio, enquanto esticava seu braço, criando uma enorme bola de fogo em direção a porta na qual os soldados tentavam, desesperados, entrar.
O estrondo jogou todos para trás e abriu um buraco de tamanho suficiente para a passagem de Morgaroth. O que se seguiu foi um massacre. A cidade inteira foi rapidamente subjugada pelo demônio.
***
Desde o dia em que Morgaroth dominou Carlin, já haviam se passado três semanas. Com seu enorme poder e a ajuda de um exército de cidadãos de Carlin possuídos pela maldição demoníaca e dos orcs de Ulderek que se prontificaram a servir o demônio, derrotar uma a uma as principais cidades do continente foi uma tarefa fácil. Por onde passava o exército, ficava um rastro de dor e sofrimento. Os homens eram mortos em sacrifício ao deus Zathroth, suas decepadas e empaladas, apodrecendo. As mulheres eram estupradas e depois mortas. O exército do mal fazia as crianças presenciarem tudo, e depois as abandonava a própria sorte. Traumatizadas e sem capacidade de se sustentar, a maioria morria rapidamente.
Uma a uma as grandes cidades do continente caíram. Ab'dendriel e Venore agora não passavam de ruínas. Carlin e Ulderek estavam sob domínio demoníaco. Kazordoon e Mintwallin se isolaram embaixo da superfície. A certeza de que seus exércitos não representavam perigo fazia com que os demônios nem sequer se incomodassem com a ideia de tentar invadi-las. As cidades espalhadas em ilhas sofriam com a falta da ajuda das cidades do continente. Sem liderança, eram como formigas que tiveram a cabeça arrancada e corriam, desesperadas, a deriva.
Restava apenas Thais, o último bastião de esperança do mundo livre contra o domínio dos servos de Zathroth...
A hora se aproximava, e o Rei Tibianus sabia que os demônios iriam atacar sua cidade com força total. Olhando pela janela de seu quarto, o céu vermelho-sangue do alvorecer de alguma maneira lhe alarmava. Ele sabia que seria hoje, o dia da verdade.
Ele tirou seu roupão de ceda de Liberty Bay e abriu seu armário. Colocou roupas de baixo, e vestes de batalha. Um elmo dourado com detalhes prateados, e uma armadura pesada, e certamente resistente, forjada pelos anões, de cor avermelhada. Embainhou sua espada longa que emanava um brilho fraco, de origem mágica, e colocou seu escudo nas costas, herança de seus antepassados. Terminou com a coroa, ornada por joias de rara beleza, forjada em tempos imemoriáveis pelos ciclopes, usando minérios raríssimos, também herança de seus antepassados.
Enquanto foi descendo pelo castelo, era encarado pelos súditos e guardas, que percebiam, tanto pela expressão, quando pela maneira como o rei se vestia, que o dia não seria normal.
Mas para Tibianus tudo era silêncio. Não escutava o barulho dos frequentadores do castelo, não escutava o barulho da cidade, não escutava o vento e o mar. Tudo que conseguia pensar era na batalha longa que estava por vir. Ao chegar na sala da guarda real, o rei abordou o seu general, Linus.
― É hoje, Linus, eu sei.
Entendendo o que o rei queria dizer, o general saiu, esbaforido, certamente para reunir o exército da cidade.
Alguns minutos se passaram, e estavam o rei, seu general e alguns outros membros importantes do exército na parte que emcimava o portal norte. No chão estava o exército da cidade, bem como inúmeros voluntários, alguns maltrapilhos, carregando desajeitados qualquer arma que conseguiram achar. O rei começou a falar, com sua voz imponente:
― Como vocês já devem imaginar, hoje é o dia em que os demônios tentarão tomar Thais. Muitos de vocês nem eram nascidos quando Ferumbras invadiu e espalhou a desgraça em nossa querida cidade. Apesar da certeza de que a guerra que enfrentaremos hoje será muito pior do que a invasão do mago maligno, sei que só venceremos no final se mantivermos o mesmo espírito dos bravos guerreiros que o baniram de Thais. Hoje, assim como naqueles dias, lutarei lado a lado com vocês, pois sou mais um, um cidadão de Thais querendo defender o lar que tanto ama. É importante que mantenhamos ― O rei se calou tão logo escutou ao longe o rufar de tambores de batalha. A hora chegará e um frio percorreu sua espinha. ― Escutem! Os tambores de batalha dos inimigos! Devemos nos manter dentro da cidade e defendê-la! Não devemos deixar o exército inimigo perpassar nossos muros!
Ao longe já se via o exército inimigo. Manchas verdes eram Orcs, vermelhas eram demônios, e borrados multi-coloridos eram humanos, de diferentes etnias, trajando diferentes armaduras. Não tardou até que flechas, pedras catapultadas e magias ofensivas fossem trocadas de lado a lado. O exército demoníaco era demasiadamente numeroso, e era questão de tempo até que encontrassem uma brecha nos muros da cidade. Mas, de repente, o sítio à cidade cessou. Morgaroth, que apenas observava a batalha, começou a falar, e sua voz ecoou por toda a cidade, como mágica:
― Venha, Tibianus, vamos lutar mano-a-mano! Quero ter o prazer de lhe derrotar antes que acabe morto por algum mortal qualquer de meu exército!
O exército demoníaco abriu espaço, formando um corredor do portão da cidade de Thais até o local onde se encontrava Morgaroth. O rei veio andando, e novamente aquela sensação de silêncio invadia sua mente, até que se encontrava defronte o maligno Morgaroth.
― Vamos acabar com isso, aqui e agora! Derrotar-lhe-ei, usando o mesmo escudo e a mesma coroa que meu bisavô usou para banir Orshabaal na batalha de Jakundaf, o mesmo escudo e coroa que usei para banir Ferumbras da cidade de Thais!
O demônio gargalhou, esticou o seu braço e lançou um jato de energia em direção ao rei, que a barrou com seu escudo. Foram minutos de duelo, muito equilibrado. Por fim Morgaroth derrotou Tibianus. Com sua força descomunal, levantou o rei e lhe arrancou a cabeça do corpo, como se estivesse rasgando papel.
― Vejam! ― Exclamou, com o braço esticado, mostrando a cabeça do rei, como um troféu ― O rei de vocês está morto. O duelo foi árduo, devo reconhecer, mas agora sua linhagem está acabada, eu nunca serei derrotado!
Dentro dos muros da cidade, muitos choravam, e a maioria tirava seus elmos e largava suas armas e escudos no chão, desistindo da luta.
― Não! Não devemos desistir, não é isso que Tibianus queria! ― Gritou Linus ― Devemos lutar até o fim de nossas forças por nossa cidade!
As palavras de Linus pareciam em vão, o exército estava desmotivado, quase ninguém tinha forças para lutar. Mas ao longe, a esperança renascia. Ouviam-se gritos e tambores e exclamações de surpresa eram ouvidas de membros dos dois exércitos. Eram os anões que chegavam, trazendo sangue novo para a batalha. Como se tivesse sido combinado buracos começavam a se abrir no chão, levantando uma enorme poeira. Deles brotavam minotauros, que também vieram para ajudar.
A batalha recomeçou, e com as esperanças renovadas, os cidadãos de Thais pegaram em armas novamente para defender seu lar.
Linus sabia, no entanto, que o exército do mal ainda era muito mais numeroso, e ganharia a batalha mais cedo ou mais tarde. Deveria aproveitar a oportunidade que surgira com a inesperada ajuda de anões e minotauros para tentar vencer a batalha derrotando o líder Morgaroth. Mas se nem mesmo o rei não havia conseguido derrotar Morgaroth, será que ele conseguiria? “Depois do rei, certamente sou eu o guerreiro mais preparado, sou eu que devo derrotá-lo. É melhor morrer tentando do que esperar eles vencerem a batalha”.
Correndo por entre o exército inimigo, esquivando-se de golpes mortais e flechas certeiras, cortando através de fileiras de combatentes com sua espada, Linus avançava a passos largos rumo a Morgaroth, que agora, ao invés de apenas assistir a batalha, lançava bolas de fogo e esferas de dor e sofrimento concentradas, conhecidas como “morte súbita” em direção a cidade.
Morgaroth estava distraído e a oportunidade se apresentava, de pegar a espada de Tibianus que estava no chão e tentar derrotar Morgaroth. Linus lançou sua própria espada em direção ao demônio, atingindo-o no braço direito. Isso o distraiu, mas o fez também perceber a presença do oponente. Com uma cambalhota ágil, Linus pegou o escudo e a espada do falecido rei do chão e ajoelhou-se, defendendo uma rajada de morte súbita com o escudo. Tão logo defendeu o golpe, soltou o escudo, e, correndo em direção a Morgaroth, com uma mão lançava uma runa de magia no inimigo, e com a outra balançava a espada para trás. Com um pulo, empurrou a espada no peito do demônio.
― Não! ― Exclamou Morgaroth.
O demônio começou a brilhar e desapareceu, certamente banido ao plano das trevas. Os demônios menores que participavam da batalha também foram banidos, e ao mesmo tempo os humanos de Carlin, possuídos, retomavam sua consciência. Restavam apenas os orcs. Alguns se retiraram covardemente, enquanto outros ainda lutavam, mesmo sendo certa a derrota.
A batalha estava ganha e Linus era um novo herói.
***
Três meses se passaram desde a épica batalha, e a paz reinava em Tibia. As cidades destruídas eram reconstruídas com a ajuda de todos. Em Thais, era aclamado o novo imperador, herói da cidade, responsável por derrotar a ameaça demoníaca ao mundo livre, Linus.
"Acho que essa coroa ficou boa em mim"
O Fantasma do Corsário - Drasty
O Fantasma do Corsário
Drasty
No outono do ano que selou as batalhas em todo o continente, eu me tornei escravo. Uma corja me aprisionou em seu navio e com eles eu viajei os sete mares. Dos maus tratos eu sofri diversos: fui cuspido, espancado e trancafiado no calabouço. Passei com fome as piores noites do inverno, sem destino aparente apenas vagando com aqueles animais. Trabalhei! Todos os dias naquele gigante eu suei meu corpo, limpando o convés, jogando ao mar suas necessidades e cozinhando-os as refeições.
O capitão era um homem pouco civilizado. Andava forte com a perna-de-pau atropelando os pregos do chão. Suas longas barbas brancas eram a evidência de suas aventuras e, através delas ele contava as histórias. Pouco articulado e muito animado, por noites seus oficiais ouviram anedotas sobre as batalhas nos mares mais perigosos já navegados. Uma vez que todos estivessem ensopados de cerveja, ele sacava a sabre das tipóias e cantava canções embriagadas. A cantoria seguia firme até caírem no sono.
Nos meus aposentos eu tinha a companhia de uma vasta gama de ossadas. Provavelmente meus antecessores naquela cruzada. Nas sombras do crepúsculo conversava sozinho. Lembrava-me da minha família em solo firme. Vivi durante anos dessa vida em Thais, estudando em busca de algum dia ser alguém memorável. Porém esses sonhos já tinham sido assassinados pelas ondas do mar.
Depois de alguns meses, peguei a mania de cantar com os piratas. Diferente das canções sobre mulheres e tesouro que cantavam sobre minha cabeça, eu cantarolava as antigas melodias dos tempos de criança. Era a única forma de encontrar naquele inferno uma felicidade. Em uma dessas noites, algo estranho aconteceu. A água salgada que invadia o navio batia rápida nos meus pés machucados. Havia alguém além de mim no recinto.
Foi quando, através das barras de minha cela, surgiu a forma de um sobretudo. Dentro dele apenas o vácuo da escuridão. Flutuava em cima de si um chapéu de corsário com pontas e ornamentos. Sufoquei de medo ao ver a figura fantasmagórica. Recuei atrapalhado e cai sentado no caixote de pólvora. Seja lá o que aquilo era, continuava a se mover ao meu encontro. Então, ele parou. Estático ficou por alguns minutos. Tentei acreditar que fosse fruto de minha imaginação, afinal depois de tanta humilhação, uma hora eu ficaria louco.
Assim que a cantoria no convés teve fim, a figura começou a tremer inquieta. Entre seus tremeliques, se enrijeceu. Um pigarro altíssimo arranhou o assoalho e passou voando pela janela do barco. O chapéu virou para um lado e depois para o outro e finalmente focalizou em mim.
– Uman! Uman! – gritava uma voz rouca que emanava pelos botões do casaco. – Ave Uman! Vamos garoto, agradeça Uman comigo – com uma mistura de pavor e perplexo eu o acompanhei na sua oração.
Terminada a prece, o chapéu do fantasma se abaixou cabisbaixo. Supus que aquele ser não me faria mais mal do que os piratas haviam feito, então perguntei eufórico:
– O que estamos agradecendo, senhor?
– Ora, meu jovem! Se não é o fim dessa cantoria infernal. Nos meus tempos os tripulantes eram muito mais afinados – ele forçou uma risada, amassando todo o vestuário, fazendo o parecer uma pilha de roupa amarrotada.
– Que mau lhe pergunte, mas quem é o senhor?
Dessa vez, houve uma pausa longa. Ele flutuou da direita para a esquerda e saltitou insistentemente na cela. Em seguida, saltou no ar e parou sentado do meu lado. Vi um dos braços apoiar-se em meu ombro, mas nada senti.
– Se eu soubesse, eu te diria com o maior orgulho – disse tristonho. – Só sei de uma coisa, garoto. Sei que esse navio é meu! Essa corja barulhenta se apossou do que é meu! Crápulas! – agora a voz do fantasma não estava mais rouca, soava forte e cortante como um trovão. Levantou-se e caminhou à frente. Dessa vez, falava para si. – Preciso expulsá-los do meu bardo. Do meu barco!
– Isso mesmo, senhor! Tem que mandá-los embora! – vi minha chance de voltar a terra firme tornar-se real. Talvez meus sonhos não estivessem perdidos em garrafas vazias. – Sabe o que devia fazer? Devia matar um a um, afinal, o senhor é o verdadeiro capitão desse estupendo navio.
– É verdade, meu rapaz! É verdade. É meu, meu e somente meu – ele pigarreou de novo e agora mais comedido finalizou: – Ironicamente, o desembarque deles será feito na Baia da Liberdade.
Ainda ouvi a gargalhada do fantasma desaparecer com seu espectro. Sumiu como apareceu, indo sabe-se lá para onde. Nem tive chance de perguntar o que a última frase significava. A conversa com o espírito de um capitão possessivo tomara horas do meu sono. Deitei-me tranqüilo no assoalho do barco e adormeci.
Acordei no silêncio da manhã. Os raios de sol invadiam minha cela e tocavam meu rosto gentilmente. Notei que a porta da cela estava entreaberta. Segui o rumo da proa e batendo meus pés contra os degraus surgi nas imediações, agora empapadas de sol. Não havia ninguém ali. Estávamos ancorados e logo ao lado uma praia jazia.
Saltei ao mar e nadei. Meu corpo logo arrastava-se na areia. Já tinha desistido de acreditar que seria possível voltar a terra-firme.
Após andar alguns metros terra adentro, virei meu dorso e mirei o navio pirata atrás. A bandeira negra ostentando uma caveira maquiavélica balançava no topo do mastro. Pude ver o capitão fantasma acenar as mangas do sobretudo. Devia estar desejando-me boa sorte. Agradeci devolvendo o aceno. Acho que não vou precisar.
Meio Púrpura - Steve do Borel
Meio Púrpura
Steve do Borel
Eu não programo a minha vida
Pensando em besteiras
Futilidades que o amanhã nunca irá satisfazer
Quero mais é me perder com você
Ver o Sol nascer
Olhar pra frente, sonhador
Qualquer futuro lindo que for
Desses de cinema
Céu clarinho, meio púrpura
Da cor do amor
Quatro Gotas de Sangue - Drasty
Quatro Gotas de Sangue
Drasty
Na civilização o povo vivia com fome;
Então: come, come, come!
Na civilização o povo tinha sede de sangue;
Então: mate, mate, mate!
No mato o povo vivia com fome;
Então: mate, mate, mate!
No mato o povo tinha sede de sangue;
Então: come, come, come!
Nas montanhas o povo tinha sede de fome;
Então: come, come, come!
Nas montanhas o povo tinha fome de sangue;
Então: mate, mate, mate!
Nas sombras o povo não tinha fome:
Então: mate, mate, mate!
Nas sombras o povo não tinha sede de sangue:
Então: mate, mate, mate!
Roubaram minha Menina - Thomazml
Roubaram minha Menina
Thomazml
Olho nos teus olhos castanhos mentirosos
Vejo teus sorrisos vazios e inúteis
Qual alegria eles passam, nervosos?
Quais não-sentimentos, pensamentos fúteis?
Cadê a minha menina, e sua molecagem?
Cadê a minha garota, fazendo besteiras?
Quem é essa mulher, cantando vantagem?
Cadê a minha guria , e suas brincadeiras?
Esse malvado tempo eterno, que passa depressa
Essa maldita máscara de mulher, que a menina se prende
Onde estará minha garota? Será que regressa?
Será que esse velho menino, que muito pretende
Não entende que o funesto tempo tem pressa?
A menina crescida, já mulher, ele não compreende.