O fruto milagroso
Prólogo
Batidas retumbavam pela Broca.
A escuridão cercava cada centímetro de toda sua extensão.
Estava tudo escuro, indivíduos olhavam uns para os outros a procura da mais ínfima esperança.
Ninguém sabia o que estava acontecendo. Eram prisioneiros, foram sequestrados, alguns foram pegos recentemente e outros lá permaneciam há anos. Pessoas conheceram-se, famílias inteiras formaram-se naquele local. A aceitação daquela situação por cada um dos prisioneiros favoreceu a formação de uma comunidade, como em qualquer outra cidade.
Mas agora parecia estar finalmente chegando a hora.
Unhas pareciam arranhar as paredes e gritos vinham de algum lugar, juntamente com os gemidos agonizantes. Homens que antes eram ranzinzas uns com os outros, abraçavam-se, esquecendo as desavenças passadas.
O fim estava próximo.
Uma mãe olhou para o filho e disse:
— Tudo vai terminar bem, querido.
Os gritos avizinharam-se. Talvez não fosse um final tão feliz assim.
Órfão – Kazordoon – 3 dias atrás
O garoto havia acabado de deitar. Seu pai dera-lhe um beijo de boa noite e a mãe dissera “durma com os Deuses, meu filho”.
O pai era um velho negociante e juntara uma boa fama entre os anões. Tinham muitos amigos naquela região, porém ficavam isolados de seu próprio povo, pois não moravam outros humanos por ali. Eram eles no meio de toda aquela população anã.
O menino tinha vontade de brincar com outras crianças, mas entendia a necessidade do pai de permanecer naquele comércio da mineração.
Enquanto pensava sobre isso, com sua cabeça pousada suavemente no macio colchão de penas, a porta da casa abriu-se com uma força desproporcional.
O barulho o sobressaltou e ele andou até o limiar de seu quarto.
— O que está acontecendo? — pensou, com medo dos monstros que continuamente apareciam em seus sonhos.
Ouviu o pai falar de um modo tão ríspido e alto que o deixou arrepiado. Ele nunca ouvira o pai falar daquele jeito. Algo muito sério estava acontecendo.
De repente um grito e, novamente, silêncio.
Correu para o quarto da mãe. Duas criaturas encapuzadas a seguravam. Havia sangue em suas roupas. Uma terceira apareceu e agarrou o garoto por trás.
Arrastaram os dois para fora, tanto o filho quanto a mãe. Um corpo e uma cabeça pendente estavam próximos à porta.
— Papai? — falou o menino.
~~ ~~
Tudo estava um caos. A mente de Júnior entrou em colapso ao ver uma cena tão chocante dos pedaços de seu pai. Entrou em uma espécie de transe, estava em choque. Sua mãe gritava e esperneava ao seu lado, mas ele simplesmente não tinha forças para mexer sequer um dedo.
— Se não ficar quieta vai morrer, sua estúpida. Igualzinho ao seu marido. — ameaçou um daqueles monstros dignos do pesadelo do menino. — Fica quieta!
A mulher não parava de gritar e de se contorcer. Ela parecia querer morrer, pois preferia isto a viver como prisioneira daqueles assassinos e talvez até ser submetida a diversas situações inimagináveis.
Mas isso, por um lado, foi um pensamento um tanto egoísta, mas não se pode culpá-la, já que talvez tenha esquecido por um pequeno instante que seu filho ainda precisava de sua ajuda.
Porém, finalmente, após dar uma mordida na orelha do maior dos homens, ela conseguiu o que queria. Uma espada penetrou-a na barriga. Um fino ramo descendente de sangue escarlate deslizou como uma nascente sobre o corpo da mulher. No último minuto de sua vida, a mãe olhou para o filho com uma expressão de desculpas, como se acabasse de se lembrar dele novamente.
Chefe
Chefe, era como o chamavam. Talvez fosse o mais antigo do cativeiro, estava lá fazia quase cinco anos, pelos cálculos dele.
Foi sequestrado junto com um grupo de amigos, mas deles, apenas ele ainda restava.
E agora, a cada dia chegavam mais prisioneiros. Daquela época pra cá, o número aumentou exponencialmente. Eles deviam ser mais de 20 mil pessoas distribuídas por toda a região chamada de “A Broca”. Havia vários andares, e cada um deles estava saturado de pessoas.
Ele tinha várias teorias do porquê de estarem prendendo uma quantidade tão grande de pessoas naquela base. Uma delas, e talvez a que ele levasse mais em consideração, era a de que todos ali, em um momento ou em outro seriam submetidos a algum tipo de experiência. Boatos diziam que gnomos estavam por trás de tudo aquilo.
O solo naquela região era pedregoso, mas por incrível que pareça, árvores frutíferas exóticas conseguiam nascer naqueles lugares. As pessoas aprenderam a cultivá-las e, agora, a cidade de prisioneiros mantinha-se basicamente desse único alimento como fonte nutritiva.
Comércio baseado em trocas de objetos, materiais e frutas, era o que movia o dia a dia. Muitas pessoas aprenderam a gostar uma das outras e a ser solidárias com as recém-chegadas, pois sabiam que não era nada fácil o que passaram para chegar até ali.
Todos eram homens, mulheres e crianças. Não havia anãos, nem elfos, ou nenhum outro tipo de raça.
O que será que era aquilo tudo?
O Chefe viu próximo às portas um pequeno tumulto e já soube do que se tratava. Os mascarados traziam os mais novos moradores. Magos ficavam logo atrás das portas, impedindo qualquer um que tentasse fugir. O próprio Chefe já tentara armar diversos planos de fuga, mas nenhum deles dera certo, os feiticeiros eram poderosíssimos.
Dentre os novos prisioneiros, o que mais lhe chamou a atenção foi um garotinho que não devia nem ter dez anos ainda.
Era especialmente triste para o Chefe ver uma criança daquele jeito. Crianças deveriam estar brincando, fazendo besteiras e preocupando os mais velhos. Mas aquele menino e muitas outras crianças que chegavam haviam perdido a infância e foram marcadas para sempre.
Aproximou-se do menino e estendeu sua mão para ele. O garoto não viu, ou então não se importou. O Chefe então o pegou no colo e o levou para o interior de sua nova casa.
O chefe e o órfão
Durante três dias o órfão nada falou. Só comia as frutas por persistência do Chefe. Talvez ele nunca se acostume com isso, pensou.
Foi então que gritos pareciam vir da direção da entrada.
— Algo não está certo. — falou ele, esperando uma resposta do menino que não falava há três dias.
Mas não adiantou, além de não escutar resposta alguma, os gritos apenas foram aumentando.
Não perdeu tempo. Pegou o menino e o levou correndo contra o fluxo. Muitas pessoas iam em direção aos gritos, mas não ele. Agora havia uma vida em suas mãos, e ele não a sacrificaria de mãos beijadas.
Foi descendo andar por andar, até chegar ao último, que continha muitas das árvores que cresciam entre as rochas. Subiu numa delas com o menino e esperou todo aquele caos acabar.
Não acabou.
Piorou.
O plano
Há anos um grupo de gnomos encontrou uma substância em meio às rochas. Pensaram, naturalmente, que se tratava de alguma fonte potável de água que havia por entre aquelas pedras. No entanto um deles encostou seus dedos no líquido e o provou.
Caiu no chão, contorcendo-se, e seus olhos pareceram refletir a própria luz de tão brilhantes. Seu rosto assumiu uma coloração mais avermelhada que o normal, e tratou de atacar o próprio amigo que estava ao lado.
Este último, após ser mordido, assumiu a mesma atitude do primeiro. Era como uma espécie de possessão demoníaca, descontrole emocional, ou seja lá como se chama.
Os outros ficaram perplexos, tinham que fazer algo. Então, o mais sangue frio deles, pegou uma pedra que estava por perto e tratou de atacá-los. Matou ambos.
— É alguma espécie de ataque demoníaco — Disse ele. — Essa substância é algum tipo de maldição. Mas toda maldição pode ser usada a favor de quem a controla. — E a partir daí começou o plano do jovem gnomo, que futuramente viria a se chamar Gnomevil.
Algum tempo depois, ao conseguir levantar uma boa quantia em dinheiro com o comércio de pedras preciosas, o gênio do mal contratou um grupo de mercenários para iniciar seu plano maior: conquistar o mundo.
Adquiriu o lugar ideal. Chamavam-na de “A Broca”. Foi um centro de reservas de cultivo de recursos, com aquelas malditas árvores frutíferas, depois passou a ser uma base de segurança máxima, com seus imensos portões de ferro soldado, e agora era uma arma.
Ele a tinha transformado em uma arma biológica, e quando as portas finalmente se abrissem, o mundo ajoelharia a seus pés.
E, claro, os principais alvos eram aquela raça medíocre, a raça humana. Seu ódio por aquela arrogância barata estava quase conseguindo o que queria.
O chefe e o órfão – Parte II
Os gritos iminentemente chegaram ao último andar e junto a eles, pessoas correndo e se matando. Lá de cima da árvore, os olhos já haviam se acostumado à escuridão, e o que se viu foi chocante até para o Chefe. A brutalidade da cena era surreal. Homens batiam em mulheres, mulheres mordiam crianças, filhos arranhavam o rosto dos pais.
Os portões ainda permaneciam fechados, tudo conforme os planos de Gnomevil. Um grande contingente de exército Zumbi que quando finalmente fossem liberados, atacariam o que quer que estivesse no caminho.
Mas, claro, nem o Chefe nem o órfão sabiam disso, e a única preocupação deles neste instante era manter-se silenciosos sobre as árvores. Muitas outras pessoas, na pressa, subiram nelas, e estas, por sinal, nesse momento pareciam não originar frutas, mas sim pessoas.
Outros três indivíduos haviam conseguido subir na mesma em que os dois estavam. Para o chefe, quanto mais pessoas subissem ali pior seria, pois o risco de serem descobertos multiplicaria, mas ele resolveu alterar sua forma de pensar, porque os outros tanto mereciam viver quanto ele.
Horas passaram-se e ninguém mais restara abaixo deles. Ou melhor, nenhum movimento vivo. Os mortos dominaram. Mortos andantes.
— Como sairemos daqui? — Pensou ele. — Estamos mortos. Morremos. Fim. — quis jogar-se de uma vez, acabar com aquele sofrimento, deixar-se ser devorado. — No entanto, olhou para o menino, e de uma forma ou de outra não agiu como a mãe dele. Não o abandonou. Permaneceu ali, abraçado com o órfão, ambos agarrando-se ao galho da árvore que os dividia entre a vida e a morte.
~~
Na árvore à direita de onde estavam, havia um grupo maior. Doze pessoas encolhiam-se sobre seus galhos. Uma delas foi mover-se e bateu com força no tronco, fazendo um alto barulho e um gemido de dor. Não houve perda de tempo, as criaturas que agora não eram mais humanas, amontoaram-se e conseguiram escalá-la, matando um por um.
Nada pôde ser feito, apenas assistir àquele show de horrores.
~~
O Chefe percebeu que todo lugar onde haviam caído os frutos e liberado seus líquidos, todo zumbi parecia evitar. Era como se fosse um repelente.
Tratou de observar quantos frutos era possível reunir de onde estavam. Foi catando todos que conseguia, sem fazer barulho e sem fazer os outros desconfiarem. Afinal de contas, eram eles ou nós. Não havia o suficiente para todos. Ele nem sabia se teria para ele e o garoto. Teria que carregar aquele peso na consciência durante todo o resto de tempo que tivesse.
A prática que adquiriu de tanto tempo comendo aquilo o permitiu furar facilmente o fruto. Não tardou a agir, abriu quatro e jogou-as em cima da cabeça, dos ombros, das costas do menino. Apenas duas sobraram para si.
— Espero que seja o suficiente. — Imaginou ele, jogando o máximo que deu sobre seu corpo.
Os dois desceram e mergulharam num mar de pessoas mortas.
Os que ficaram em cima da árvore gritaram:
— Ei! Voltem aqui!
Já era tarde demais.
~~
O tempo não estava a favor deles e nem sequer sabiam o que encontrariam no primeiro andar. Talvez nada houvesse o que fazer lá.
Realmente, um raio de zona segura os envolvia. Aquele líquido milagroso os mantinha vivos, mas a qualquer momento seu efeito passaria. Era preciso ser rápido.
O Chefe pegou o menino no colo e correu o máximo que conseguiu. Aquelas criaturas tinham pedaços de carne em volta das mandíbulas e pele sob as unhas.
— Isso não vai ficar assim, seja quem for que fez isso vai pagar. — Jurou o Chefe.
Finalmente chegaram ao primeiro andar e ao longe se via a penumbra da gigantesca porta. Estava fechada.
— É o fim. — Disse ele, em voz alta.
Criaturas o fitaram, e algumas se aproximaram. Ele sabia que por ter jogado menos líquido em si, ele estava voltando a ser vulnerável.
Ele botou o menino no chão e o olhou nos olhos.
— Garoto, me responde, por favor. Preste atenção no que vou lhe dizer. Corra em direção à porta e grite. Seja lá o que aconteceu contigo antes de tudo isso, utilize essa raiva, esse sofrimento a seu favor. Lutar pela vida não é nenhuma desonra. Grite por ela, implore por ela, é sua única chance.
E após isso deu um pequeno impulso nas costinhas do garoto, que respondeu sem olhar para trás:
— Tá bom, papai.
E correu para fazer exatamente no que fora instruído.
~~
Chegou, gritou e esperou.
Gritou e implorou até sua voz ficar rouca.
Do outro lado
O mercenário estava do outro lado da porta. Até para ele, aquilo era um sofrimento. Ele sabia que lá dentro devia estar um inferno, e agora um diabo de um garoto viera implorar por sua vida. Era demais. Nem todo o dinheiro do mundo o faria suportar aquilo.
Começou a girar a manivela. Os outros mercenários pareceram não se importar, já estavam saturados. Era hora de acabar com aquilo.
Uma brecha abriu-se, e um menino que não tinha nem um metro e meio atravessou o portão , e logo após sua passagem a porta novamente foi lacrada.
A comoção e a culpa imposta por essa cena foi tão forte, que pela primeira vez na vida tiveram um vislumbre de justiça.
Foram atrás de seu mandante, Gnomevil, que fugiu e escondeu-se na região chamada de Zona de Guerra.
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Após esse período de conturbada agitação e perseguição, homens como aqueles que haviam sequestrado e matado em nome de Gnomevil, lacraram completamente a porta.
Um dos magos criou um teleporte para o interior daquele inferno, onde apenas humanos poderiam entrar para destruírem todo o mau que ali era armazenado.
As árvores com os frutos que tornavam as pessoas imunes, de uma forma um tanto estranha, foram ficando cada vez mais escassas, até que todas morreram. Talvez o ambiente fosse tão brutal que nem sequer elas suportaram.
O lugar até hoje está amaldiçoado, e mesmo com a coragem de alguns guerreiros por aquelas regiões, o mau ainda persiste, e outras criaturas além dos zumbis surgiram.